sábado, 5 de outubro de 2013

Continuando, outra vez um novo partido

Na entrada anterior, afirmei enfaticamente que, para mim e creio que para muita gente que já não acredita em fadas nem em virtudes de meninos de coro, seguros ou inseguros, o conjunto partidário nuclear que, para já, pode dar sustentação institucional a uma esquerda coerente e consequente, é constituído pelo PCP e pelo BE. Aliás, nem é preciso grande trabalho porque, ao que se sabe, o seu entendimento, principalmente na Assembleia da República, não tem sido muito difícil. 

Mas não basta. Nestas últimas eleições, tiveram, em conjunto, 15,1% dos votos (assembleias municipais, voto menos personalizado, e em termos de votos validamente expressos). Se, passe algum erro do exercício, distribuirmos proporcionalmente aos votos de cada partido os votos das listas (considerando só PS, PSD e CDS, porque não creio que tenha sido significativa a votação de eleitores do PCP e do BE nessas listas) e também proporcionalmente ao PSD e CDS os das suas coligações, o resultado eleitoral seria: PS –  39,1%; PSD – 24,5%; CDU – 12,0%; CDS – 4,8%; BE – 3,2%.

O PS consegue formar governo em aliança (coligação plena ou acordo parlamentar) com o PSD e, muito provavelmente e graças ao benefício do método de Hondt, com o CDS. Até, eventualmente, com o BE. Porque iria fazê-lo com o PCP, mesmo que na versão suavizada de aliança de esquerda (PS–PCP–BE)?

Faltam votos a esta esquerda coerente e firme que defendo. Onde ir buscá-los em tempo útil, para eleições que, o mais tardar, serão em 2015?

Bom número de pessoas de esquerda, eu incluído, vem desde há bastante tempo a proclamar a necessidade de um novo partido de esquerda. Pela minha parte, leia-se aqui, aqui ou aqui. Também, por exemplo, José Vítor Malheiros ou André Freire ou, ainda mais enfaticamente, Jorge Bateira, como ainda há poucos dias no iOnline.

Temos posição comum em relação ao que pensamos serem as características essenciais de tal projecto partidário. Escrevi-as, conforme a minha opinião, nesta entrada. Também, por outras palavras e mais resumidamente, Jorge Bateira: “Um partido de esquerda, socialista, que assuma a ruptura com o neoliberalismo como condição necessária para que o país se possa desenvolver. Que diga ao país que uma saída do euro, a decidir em momento próprio, comporta sacrifícios, porém temporários e sem comparação com os da situação asfixiante em que nos encontramos. Um partido capaz de formular uma estratégia de transformação democrática do nosso capitalismo periférico, imbuído de um europeísmo realista - sem ilusões federais -, introduziria no espaço público português a lufada de ar fresco por que muita gente desespera”.

Deixo de lado os aspectos práticos, de logística. Montar e manter inicialmente um partido é coisa difícil. Lembro-me do que nos custou, à gente do MDP, mantê-lo depois da cisão com o PCP e a perda das subvenções da Assembleia da República. Porque muitos companheiros sentiam terem-se esgotado os meios, foi fácil ao grupo de ex-PCPs liderado por Miguel Portas fazer aquilo que costumo chamar a OPA sobre o MDP. Direi mais alguma coisa em nota final, porque não é o que mais conta agora.

Essencial, em relação a um novo partido, é o seu programa (e as suas bandeiras ideológicas e princípios éticos e de comportamento partidário) e o seu posicionamento em termos de “geografia partidária”. Tem espaço? As duas questões estão muito relacionadas mas não completamente, por haver outros factores de atracção do eleitorado. Como já dei referências de ligações em que se discute o programa, vou-me centrar na geografia eleitoral.

Não tenho visto discutir a oportunidade de ocupação de um espaço entre o PCP e o BE. Creio que há e que é discussão muito interessante, embora eu prefira situar o PCP, o BE (com algumas dúvidas minhas) e um novo partido num espaço comum de valorização conjunta e de diversificação atractiva das razões de simpatia do eleitorado.

É diferente a questão estafada do “verdadeiro partido socialista”, do espaço “histórico” entre o PS e o PCP. Isto ainda podia fazer algum sentido no tempo da social-democracia mas hoje, quando esta, em Portugal e por toda a Europa, se rendeu ao liberalismo, senão mesmo ao essencial do neoliberalismo mais extremo, o espaço vazio que existe não pode ser preenchido por propostas conciliatórias. O eleitorado que, mais cedo ou mais tarde, com a crise, vai ser perdido pelo PS irá votar em novas forças de esquerda, como na Grécia e na França ou, em relação a camadas mais tradicionais e moderadas, das duas uma: encontra uma nova posição do PS, o que não se vê, ou engrossa a abstenção activa e passiva.

E, se os partidos socialistas passaram da velha social-democracia para o neoliberalismo, que sentido faz estimulá-los a regressar a uma perspectiva hoje ultrapassada e que só foi possível, economicamente, quando a riqueza do pós-guerra permitiu o estado social? O entendimento terá de se fazer com novas formações socialistas de esquerda resultantes de clivagem interna. Utópico? Talvez, mas será isto ou nada. 

Acresce que, nesta fase de crise, de sismo do sistema económico e político europeu, de derrocada previsível da construção do euro, é a política em relação a isto, bem como o balanço entre perspectivas euro-utópicas e euro-realistas, que é a pedra de toque da ideologia moderna de esquerda. Isto vai contra o embuste político de se fomentar a ideia de que a solução – impossível, para já – é a unidade entre a “esquerda coerente”, em que vemos um novo partido, e a herança da social-democracia. Neste sentido, o BE é que tem maior tendência para ocupar esse espaço, dado que, no que é hoje essencial – a política anti-austeridade e contra a falta de solidariedade na zona euro – pode facilmente pendular para a ambiguidade do PS.

No entanto, não estou a pretender desvalorizar a importância de um novo partido conseguir penetrar no eleitorado do PS menos tolerante com o seu desvio à direita. Acho é que o lugar – e logo a orientação eleitoral – desse partido não se esgota nisso e não deve condicionar o seu programa, sendo também importantes, por exemplo, a recuperação dos abstencionistas, o novo eleitorado jovem e a fixação do eleitorado do BE, aparentemente em fuga.

Dito tudo isto, é realisticamente possível vermos a criação atempada de um novo partido? Voltarei a discutir isto mas, para não ficar preso por esta perspectiva, a que me agrada, escreverei sobre outros contributos para o fortalecimento da esquerda real, nomeadamente o dos movimentos políticos e sociais não partidários.

NOTA – Não seriam displicentes os recursos de um eurodeputado como suporte logístico da criação de um novo partido. Fiquei interessado quando a ideia foi abordada, mesmo que muito ambiguamente, por Rui Tavares, numa série de reuniões em 2012. Afinal, com a sua infantilidade (?) política e algum sentido da sua carreira pessoal, ficou-se por um banal “Manifesto para uma esquerda livre” (contra uma esquerda presa?), que se perdeu na história como tantas outras coisas tontas, assim como, mais tarde, outro seu manifesto (já é mania) a favor das listas de cidadãos para a eleições legislativas. O que não é honesto é que, tempos depois, venha novamente defender a criação de um partido, em entrevista ao i, para agora estar mais virado para as eleições europeias e o eventual apoio do seu amigo ex-Dany Le Rouge. Não há pachorra! 

Politicamente correcto

Sem desconsideração pelos meus amigos americanos que foram ou são "hippies", fãs de Woodstock, liberais ou mesmo radicais, lembro que inventaram coisa de que não gosto, o "politicamente correcto".

Há coisas no “politicamente correcto” que, para não dizer mais, considero patetas, pueris e atentatórias do que devia ser a dignidade e seriedade das instituições que lhes dão acolhimento. Muitas vezes, são tiros nos pés, quando não se ficam – o que já não seria mau – por causarem uma boa gargalhada. Quando são coisa de guerra entre pedreiros de andaime e feministas extremadas, como no caso do piropo e do BE, fica-se por aí.

Pior foi agora com uma decisão da Assembleia parlamentar do Conselho da Europa. Suspeito que, como se viu noutras ocasiões, por exemplo em relação a vacinação e a organismos geneticamente modificados, fortemente influenciadas pelos sentimentos de culpa que ainda perduram numa geração alemã cinquentona, que mais valia que olhasse para o que está a ser o exercício de hegemonia pelo seu país.

Decidiu a Assembleia que era condenável qualquer agressão física contra crianças, nomeadamente as de raiz religiosa, pondo em plano quase idêntico a mutilação feminina e a circuncisão judaica. Quanto a esta, apenas com a ressalva de a admitir, em idade posterior, com consentimento do menor. Diga-se que idade em que a prática da circuncisão é muito mais desagradável e difícil.


Como talvez não estejam muito convencidos, aduzem argumentos médicos, equiparando as duas práticas, o que revela ignorância completa. De facto, a circuncisão, até muitas vezes advogada por não judeus, é uma prática com vantagens médicas, profilácticas.

Mais espantoso é que se diga que “a missão do Conselho da Europa é promover o respeito pelos direitos humanos, incluindo os direitos das crianças, em pé de igualdade com a luta contra o racismo, o anti-semitismo e a xenofobia”. Não dá para acreditar. Combater uma prática inofensiva mas de grande significado religioso para os judeus é combater o anti-semitismo? 

Já agora, talvez eu tenha sofrido mais com o que me impingiram de imagens dantescas do inferno.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os partidos e a troika – BE

As entradas que precederam, sobre o PS e o PCP, centraram-se nas posições dos partidos sobre a política troikista de austeridade, a posição em relação à dívida e sua eventual reestruturação e a atitude, mesmo que só de princípio, em relação ao abandono do euro. As posições e propostas do PS, moles, acomodatícias, dentro do arco de governação com respeito pelo consenso de Bruxelas e pelo derrotismo da social-democracia pós-Blair e Schröder (e Guterres e Sócrates), e, no extremo oposto, as posições do PCP contra a hegemonia neoliberalista que nos querem impor a pretexto de um projecto europeu fraudulento, ficaram expressas. E o bloco de Esquerda (BE)?

Ainda tenho alguma dificuldade em compreender o BE. Tem uma história curta e indefinida, com aspectos pessoais marcantes para mim. Era eu dirigente do MDP e fui encarregado de promover contactos – porventura irrealistas e prematuros – com o PSR e a UDP. Falharam redondamente, com recusa liminar de Louçã e com um encontro surrealista com Fazenda, a tentar-me convencer (já nos anos 90) da luminosidade do camarada Enver Hoxha. O grupo do Manifesto ainda não era nada. Voltando ao MDP, não tentou nenhum contacto, contra o namoro, depois roto, dos dissidentes do PCP que se passaram para o PS. Só mais tarde é que a Plataforma XXI fez a OPA partidária sobre o MDP, a demonstrar a dificuldade de se começar um partido sem bases infraestruturais.

Apesar desta história, creio que continuarmos a falar das tendências fundadoras é um pouco folclórico. Trotsquismo? Albanismo? Não sei o que valem hoje mas suspeito de que pouco dizem à grande massa dos aderentes posteriores ao BE, principalmente jovens, intelectuais e estudantes, membros da pequena e média burguesia profundamente afectados por novas condições de vida (precariedade, dependência da casa familiar, etc.).

Por isto, também me parece culturalmente jusificável o apoio que o BE granjeia em relação ao que, com sobranceria, a comunicação social lhe assaca como defesa das “causas fracturantes”. Prefiro chamar-lhes transversais, cruzando interesses de classe. Só não percebo bem é como um PCP, por exemplo, perdeu essa bandeira para o BE, quando foi pioneiro, lembre-se, da luta pela descriminalização do aborto, nem BE havia. Mas também quando a líder da luta foi Zita Seabra, o que pode dizer muito sobre o desnorte no PCP.

Também me parece importante perceber de onde emana o apoio ao BE, aonde em momento de crise ou de voto útil podem voltar os seus apoiantes. Embora sem dados seguros, penso que principalmente do PS. A atitude do BE na crise do verão, entrando e saindo rapidamente de reuniões com o PS, entretanto comprometido com conversas com os seus companheiros do arco troikiano da governação foi, no mínimo, infantil. Infantilidade que nunca me surpreendeu vinda da nuvem toldante do narcisismo de Louçã, mas que não esperava do traquejo, da minha geração, de um homem como Semedo.

Passemos então ao que conta nesta série de entradas, a posição do BE em relação à crise e às suas soluções.

Considero a sua posição ambígua, com guinadas de percurso, a revelar algum oportunismo. Também me parece necessário considerar duas fases, pré e pós saída de Louçã, figura demasiadamente marcante num partido que rejeita o culto da personalidade. 

Factor permanente, em todo este tempo, a condicionar ideologicamente a política do BE é o seu eurofilismo utópico, transferindo para o terreno europeu o principal de uma luta que só tem hoje instrumentos eficazes (organizações políticas e sociais, identidade colectiva mobilizadora, sindicatos, garantias jurídicas como as do Tribunal Constitucional, etc.) a nível nacional. É óbvio que não há corpos intermédios a nível europeu! Enquanto o BE insistir nesta orientação, está a defraudar as pessoas e a fechar-lhes portas de eficaz luta política, por muito que se masturbe entre amigos de elite pensante.

A posição inicial do BE em relação ao resgate foi de nim. Muita retórica de protesto mas, como então comentei, apenas propostas que rapidamente foram absorvidas pelo PS: renegociação (não reestruturação – a insustentável leveza das palavras!) da dívida, apenas em termos de prazos e juros da dívida institucional (troika), nada de “cortes de cabelo”, nada de perdões, nada de suspensão do serviço. E, acima de tudo, nada de saída do euro, “drama” contra o qual escreveu repetidamente o seguro Louçã. Lutando por “um euro melhor”, o BE engana as pessoas, porque todo o euro é forçosamente mau e contra esse mal luta-se melhor a nível nacional, fora da hegemonia centro-europeia. 

Inicialmente, o BE não se afastou muito do PS, apesar de um discurso mais radical, principalmente em relação às consequências da política austeritária e à necessidade de lutar contra ela. Mas com que meios? Com o que resta de financiamento, aceitando um serviço de uma dívida que já vai em quase 130% do PIB? Aceitando as metas da troika, com uma atitude vaga de “renegociação” do memorando? Criticando os cortes e as “medidas estruturais”, sem apresentar alternativas?

Mais tarde, em proposta de resolução apresentada à Assembleia da República, já com a direcção Semedo-Catarina, propôs a denúncia do memorando, a reestruturação da dívida e o seu corte em 50%. No entanto, tudo isto é bastante errático e tenho dúvidas sobre se a maioria das pessoas sabe mesmo o que o BE defende. Também não sei se esta evolução é resultado de uma discussão amadurecida se de influências de membros influentes do BE, principalmente economistas. Por exemplo, ouço dizer que alguns dos “ladrões de bicicletas” são membros do BE e certamente têm posições mais fundamentadas, que talvez venham a influenciar mais o partido.

Dito isto, e não adiantando o BE nada, no plano da economia política, às propostas do PCP, consegue ao menos ganhos de imagem e “credibilidade” de partido mais “aceitável” como partido de poder? Creio que não, que aparece como coisa de jovens imaturos, sem presença nos terrenos de luta real, sindical e autárquico, com habilidade retórica sem substância de propostas políticas a configurarem um programa consistente e um projecto político que mereça confiança. Estou a exagerar? Gostaria que não.

E bem gostaria porque considero que PCP e BE são o conjunto partidário que, no curto prazo, com o contributo de outras forças de que falarei a seguir (é pena que um novo partido já não venha a tempo), podem ser a única alternativa para uma alternativa de esquerda coerente e consequente. Para um socialismo sem submissão ao capitalismo, muito menos à forma neoliberal, globalizante e geradora de hegemonias do capitalismo. Para uma democracia real de cidadãos verticais. Para o reino da ética, da solidariedade. Para que a globalização não seja a cada vez maior diferença entre os povos. Para que os recursos dos países libertados não vão parar às mãos de quem traiu a luta por essa libertação. E até para relembramos coisa tão velha como "liberdade, igualdade, fraternidade". Quem diria que ainda seria hoje actual!

Há quem diga que a palavra esquerda está queimada. Mas isto que disse está queimado? E não foi, é e será a esquerda? E o que falta a esta esquerda para chegar ao poder? De entre muito mais, um programa mobilizador, a congregação (não instrumentalizadora) dos "novos movimentos", a conjugação com modernidade de posições populares e de perspectivas actuais de nova "sociologia política" (o envelhecimento, a vida urbana, o trabalho moderno, as aspirações individuais, as minorias, etc.), a luta em aliança com as esquerdas dos países periféricos pela afirmação da soberania nacional, e, acima de tudo, a conquista da hegemonia cultural (incluindo a da comunicação social).

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O PCP, ontem e hoje

RESUMO: De como o PCP se mantém como partido consequente de esquerda mas não se consegue afirmar, para muita gente, como alternativa de poder. Por culpa de muitos preconceitos, de desinformação mas também por muitas culpas próprias.

* * * * *

Publiquei algumas entradas sobre a posição dos partidos de esquerda, PS e PCP, em relação à crise, à política das troikas (interna e externa), à minha perspectiva de emergência de uma verdadeira alternativa que não se confunda com o discurso ambíguo do albergue espanhol de todas as “esquerdas” (mais uns indivíduos que disto precisam para o seu carreirismo político), albergue em que tanto se quer meter coisas espúrias que o fato de “outlet” rebenta pelas costuras. Interrompi a meio de algumas reflexões sobre o PCP, depois desta e desta entrada. Acho que fiz bem nessa pausa, porque posso agora retomar a escrita tendo em conta os resultados eleitorais.

Deve discutir-se a questão fundamental: o PCP tem, a meu ver, a posição mais consequente acerca da configuração de uma política anti-austeritária; recolhe um movimento significativo de protesto, com tradução eleitoral; mas é visto como partido em que não se confia para exercer o poder. Porquê? A meu ver por preconceitos, por grande agressão ideológica por parte dos instrumentos da hegemonia mas também por muitas culpas do PCP, talvez não tanto actuais mas principalmente por ainda não ter sabido combater eficazmente as prisões em que o encarceraram (muitas vezes com a sua cumplicidade). Pesam muito ainda os factores que, a meu ver, limitam consideravelmente um papel de liderança do PCP numa esquerda consequente (isto se nos limitarmos à lógica do quadro democrático institucionalizado no sistema parlamentar).

O que escrevi antes tentou testemunhar o que sabia do PCP, no tempo da luta antifascista. Pareceu-me importante para elucidar muita gente honesta que não a viveu e também para me posicionar como não anticomunista irracional, o que mais vai por aí. Alertei para a incerteza de dúvidas que então se poderiam colocar, porque, em plena guerra fria, se jogava uma feroz guerra de propaganda e de contrainformação. 

Volto a chamar a atenção para o facto de muitos dos que hoje dizem que tinham então tais certezas mentem, porque as suas certezas sobre os males do comunismo à soviética só serviam então para a sua militância maoísta agora esquecida em Bruxelas e noutras partes, certamente muito menos louvável em termos de abertura mental e de reflexão sobre o marxismo e a própria democracia (fora dos esquemas, porque também são esquemas, da social-democracia). Não me interessam agora os esquemas e as críticas teóricas, quero manifestar aqui as críticas reais, balanceadas com as coisas positivas, também reais. Por parte de quem as viveu, umas e outras.

Terminei as crónicas anteriores com a primavera de Praga. Primeiro, porque foi um acontecimento marcante na minha juventude política. Segundo, e relacionadamente, porque foi a primeira vez em que, na tal guerra de propaganda, pudemos perguntar: se é a direcção de um partido comunista e o seu secretário-geral a dizerem isto, a porem em prática medidas necessárias de liberalização, de efectivação de direitos (expressão, manifestação, participação política), de liberdade de imprensa, de novas relações entre o partido e a sociedade, na perspectiva do “socialismo de rosto humano”, pode o aparelho de propaganda do PCUS e aliados vir desmentir? Aliás, se não me engano e se recordo as informações que nos eram dadas pelo “controlo” partidário, o PCP começou por ter simpatia pela primavera de Praga, mudando de posição só na altura da intervenção do Pacto de Varsóvia.

É assim que, sem prejuízo de bastante actividade política posterior, sem ligação partidária, mas com contacto estreito com eurocomunistas, experiência muito interessante, só com o 25 de Abril voltei a reatar a ligação ao PCP, com a promessa de que, sem prejuízo da prioridade das tarefas revolucionárias da altura, tudo isso seria discutido. Não foi, como nem sequer foi feita a análise séria do 25 de Novembro e de algum comportamento do PCP que ajudou a esse golpe. No entanto, creio que o PCP, apesar disto, tentou e conseguiu, com a ajuda da inteligência de militares de elevada qualidade política (Costa Gomes, Melo Antunes, Rosa Coutinho, Martins Guerreiro) minimizar as consequências do que até poderia ter sido uma guerra civil. Todavia, dizem, foi o PCP que fez e perdeu o 25 de Novembro.

Do PCP pós-25 de Abril há uma visão localizada a alguns historiadores, como Raquel Varela, que, insistindo num grande tacticismo defensista e até oportunista do PCP, leva a água ao moinho esquerdista dos seus autores, eles os únicos revolucionários. É uma posição sem muito impacto, face à visão muito divulgada de um PCP raivoso, extremista, termidoriano. É sobre isto que é mais útil falar. Segundo dizem, o PCP simbolizou o extremismo revolucionário, a desordem, a que só faltaram as armas de as bombas (que o ELP usou com fartura).

Começo pelos preconceitos e pelas manipulações da história. A que principalmente perdura até hoje é a de o PCP ser apenas um partido de protesto, sem propostas. Afinal, sendo uma dicotomia arbitrária entre o que se presume serem partidos de governo (em ciclo vicioso de auto-perpetuação alternante), passa-se a ideia de que PS e PSD têm programas partidários e de governo, o PCP e o BE não. Mas alguém já os leu, esses dos partidos de governo? É com base neles que se vota? É claro que se pode discordar dos programas de congresso e eleitorais do PCP, mas jurar pela ausência de propostas – em regra muito mais sólidas e fundamentadas – mesmo que discutíveis, é ir pela manipulação mediática. Todavia, dizem, o PCP é só um partido de protesto.

Deturpação é também, de longe a de maior impacto, a ideia de que o PCP, se conquistasse o poder, teria implantado uma ditadura, contra a democracia mesmo que considerada meramente burguesa e formal. Não podendo pôr as mãos no fogo, creio que, honestamente, nada permite dizer isto. É certo que havia uma atitude ideológica triunfalista e sectária, que discutirei adiante, propícia à restrição dos direitos e liberdades formais, mas o caso mais falado, o do República, foi totalmente fabricado pelo PS, com ajuda de toda a imprensa da “Europa connosco”. Sabe-se bem que toda a movimentação foi esquerdista e que o PCP só tinha uma influência residual no jornal. Todavia, dizem, se tivesse ganho o poder, estaríamos em outra ditadura, se calhar pior do que o salazarismo. 

Outro quadro determinante da actuação do PCP, extremamente complexo, foi o do MFA, das suas indecisões, carências ideológicas e divisões internas. O PCP teve de lidar com isto, com a agravante de, no primeiro semestre da revolução, ter de a garantir contra ameaças sérias por parte dos revanchistas acantonados atrás de Spínola. Depois, penso, pessoalmente, que foi um terreno em que o PCP cometeu muitos erros, deixando-se arrastar para lutas um pouco infantis e de fraca substância política e ideológica entre grupos militares. 

No entanto, creio que ainda é difícil fazer essa história. Por exemplo, tendo eu vivido alguma coisa, fragmentária, do verão quente de 75, tendo lido tudo o que se tem publicado sobre os “golpes de rins” do PCP (Fabião, conversas com o grupo dos 9, posição em relação ao documento do COPCON, assembleia de Tancos, governo Pinheiro de Azevedo), ainda continuo confuso. Muito mais quem hoje só sabe alguns “sound bites” de jornalistas que quase ainda não eram nascidos nessa altura. Todavia, dizem, toda a gente hoje sabe tudo daquela época e não precisa de se informar mais, porque o PCP, e outros actores da história, ficam logo arrumados nas classificações da história, com etiquetas mal escritas. Também associado à figura de Vasco Gonçalves, perpetuada como de louco, um homem certamente com muitas culpas políticas mas que ninguém hoje estuda.

Muito relacionado com isto, também com uma feroz luta internacional de bastidores, no quadro da guerra fria, foi a descolonização. É voz corrente que o PCP foi o principal responsável pela descolonização, pelo regresso dos retornados, pela perda dos seus bens, o que qualquer pessoa, obviamente, considera um drama, uma das muitas dores da história. É o que ainda hoje ouço dizer a filhos de retornados (e lá vem sempre, fraca memória, o “comunista”, que nunca foi, Rosa Coutinho, regressado a Lisboa muito antes das cenas de tiroteio em Luanda). 

Comparado com o MFA, graças principalmente à confiança ganha junto dos movimentos por causa da sua atitude no terreno a seguir ao 25 de Abril, e com o PS (Mário Soares e Almeida Santos), até certo ponto coniventes com Spínola, o papel do PCP foi reduzido e de bastidores, só se tendo valorizado com a maior influência no MFA a partir do 28 de Setembro. De qualquer forma, e principalmente no que toca a Angola, independentemente do que é hoje o MPLA, perguntem-se os naturais de Angola o que lhes teria acontecido se não tivesse sido possível suster a força da FNLA apoiada por Mobutu e pelos EUA. Todavia, dizem, o PCP e o MFA são culpados do “crime” da descolonização, de não terem conseguido o milagre de fazerem esquecer pelos povos africanos séculos de opressão.

Mas não houve erros, até a perdurar até hoje? Claro que sim e muitos. Salientaria desde logo o erro de análise de se ter sobreestimado grosseiramente a força do movimento popular antifascista. Afinal, os movimentos grevistas, estudantis, as manifestações de rua do 1º de Maio, as movimentações legais das CDEs ou o Congresso de Aveiro eram coisa de poucos milhares de pessoas. O Largo do Carmo encheu-se com poucos milhares. De onde apareceram as centenas de milhar de manifestantes do 1º de Maio?

Este foi o primeiro momento de uma grande e continuada onda de voluntarismo, de sectarismo, de triunfalismo. O “assim se vê a força do PC” fica como marco negativo na história partidária desse tempo. É verdade que a direcção do partido alertava contra isto, mas nada se conseguia, até numa altura em que recrutar, recrutar, recrutar não só era palavra de ordem mas também credencial de mérito para o que se pensava serem algumas veleidades de carreira política (felizmente, com grande limpeza a seguir ao 25 de Novembro). Da mesma forma o culto de personalidade que indiscutivelmente testemunhei, e que combati, como dirigente intermédio, podendo testemunhar que era instrução “de cima” (embora haja muitas maneiras de fazer as coisas, e Cunhal era subtil). Também o prestar serviço, muitas vezes com sabujice, chegando-se, como comprovei, a transmitirem-se informações erradas – em particular sobre coisas militares – para se mostrar que se era muito importante.

Mais grave, mais triste, os ajustes de contas pessoais, os saneamentos. Não falo dos de autênticos criminosos, antes ligados à Pide ou à legião, ou descapitalizadores de empresas, mas de pessoas reaccionárias que, lá por isto, não tinham de ser privados do pão familiar. Isto aconteceu. Até ainda hoje me pesa ser acusado, com total fantasia, de o ter feito. Creio é que foi uma situação ocasional, em geral por vinganças pessoais, tal como outras situações “selvagens”. Nenhuma revolução é asséptica.

O que resta hoje de tudo isto? Honestamente, não sei, porque muito foi conjuntural, fruto da época revolucionária. Mas é provável que tenha havido factores estruturais que perdurem. Parece-me detectá-los  nas posições e no discurso do PCP.

A revisão do seu dogma marxista-leninista não é de somenos. As minhas convicções continuam – e julgo que continuarão – muito enraizadas no marxismo, relido à luz dos marxistas ocidentais e, também muito “et pour cause” dos marxistas latino-americanos (onde estão os portugueses?). Mas, de Lenine, fora a teoria geral da revolução, fica-me a rejeição do centralismo democrático e do papel dos funcionários partidários, a meu ver coisas lesivas de uma prática democrática que o partido deve mostrar à sociedade, como exemplo, e de uma cultura aberta da prática política.

Também a ênfase colectivista, menorizadora da escala individual e das suas novas aspirações, com a realização individual realizada no colectivo. Também a valorização de outras influências ideológicas, como a religiosa. Também a libertação da cultura da influência instrumentalizadora da política (sei do que falo, fui responsável pelo MUTI). O respeito pela autonomia das novas formas de intervenção social. A análise profunda dos grandes fenómenos mundiais, civilizacionais, como a globalização, a emergência de novas economias de “capitalismo selvagem”, a importância da educação e das novas tecnologias na formação do capital, etc.

Importante também a influência nos jovens, quando se fez a imagem do PCP como partido de velhos. Não sei, embora possa admitir que o BE tenha tirado ao PCP algum eleitorado jovem, urbano, de pequena e média burguesia, com destaque para intelectuais e estudantes. Mas só uma análise sociológica e o estudo dos resultados das mesas de voto dos eleitores mais jovens poderá dar indicações seguras.

Podia o PCP ser hoje diferente se tudo isto tivesse sido diferente? A história faz-se com factos, não com “ses”. O que não impede que a discussão sincera do que se podia desejar que tivessem sido as respostas a esses “ses” possa ser muito importante para o presente e o futuro.

Concluo com um aspecto essencial pouco discutido até mesmo, por razões compreensíveis, pelo próprio PCP e pelos seus teóricos. O que é hoje um partido socialista revolucionário? O que é hoje o PCP como partido revolucionário (não estou a falar de tiros e atentados, como é óbvio)? O PCP é um partido com uma luta intensa centrada na oposição aos governos de direita (e seus cúmplices objectivos) e na expressão do protesto popular. Mas, compreensivelmente, consolidada a democracia institucional, luta no quadro dessa democracia, indo longe os tempos de clara distinção das suas propostas revolucionárias como, certa ou errada, a revolução democrática e nacional. Mais importante, fica preso do respeito por esse quadro formal, não propondo a sua reforma radical. É por vezes distinguir, no seu programa, o que não é gestão “progressista” do capitalismo.

Não jogando no terreno revolucionário tradicional, resta-lhe a revolução “por dentro do sistema”, provavelmente tendo de passar por um compromisso com o capitalismo, sob severo controlo – o que não é o mesmo que respeito pelos seus fundamentos. Mas, para isto, e nesta fase, tem de ganhar o sistema segundo os termos do sistema, isto é, eleitoralmente. Como? Não certamente só com um bloco dos dois partidos de esquerda radical, também com um leque alargado de forças e movimentos sociais, e determinantemente boa parte do eleitorado do PS. O PS-aparelho é que não adianta, como estou farto de escrever, porque em nada seria “ganhar o sistema”.

Na foto: um homem a estudar cada vez mais, Antonio Gramsci.

Descamisados

Um dos resultados destas autárquicas que certamente mais fará pensar é o de Oeiras. Por interposto candidato, figura burlesca que só vi na noite de domingo, um criminoso condenado ganhou as eleições do mais escolarizado concelho do país. Ambas as coisas merecem atenção mais cuidada.

Isaltino “roubou mas fez”. Isto pode significar uma atenuação do significado do roubo por parte das pessoas comuns? Não me parece que seja assim, tanto mais quanto se ouve todos os dias a vociferação contra os ladrões do governo. É que o sentir neste caso do governo é diferente, é de gente que sente que lhe estão a ir ao bolso. O governante está a roubar o país, nem se pondo a questão da corrupção, e, com isto, rouba o indivíduo concreto a quem diminui salário, pensão e benefícios sociais.

Isaltino não está condenado por roubo mas por corrupção. Enriqueceu, mas não directamente à custa de indivíduos, que não o viram ir-lhes ao bolso. Claro que, indirectamente, foi. Se fez uma obra por 100, ficando com 30, a obra podia ter sido feita por 70 e os 30 terem beneficiado o município e a sua população. E nem vou entrar na questão da ética do serviço público, na pedagogia democrática da despenalização cívica do criminoso.

A tal coisa do concelho culturalmente avançado é um mito. Vivi alguns anos em Oeiras (embora oficialmente na fronteira com o concelho vizinho) e sei que essa tal elite tem Oeiras apenas como dormitório. Nem às reuniões da escola dos seus filhos vai. Esses votaram nos partidos convencionais. Quem eu vi na sede da campanha isaltiniana, na noite de domingo, foi a classe baixa e imigrantes dos antigos bairros degradados, depois recuperados por Isaltino. Se os educados se demitem, a democracia pode correr riscos de populismo e caciquismo. 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

É complicado resolver a fraude académica?

Porque é que temos sempre de nos embrulhar em discursos redondos, inconclusivos, retóricos? Porque é que a decisão necessária, claramente assumida, tem de parecer o jogo da cabra cega do Goya? O iOnline de há dias publica uma notícia sobre o plágio entre os estudantes universitários. Aparentemente, 40-60% dos nossos estudantes já caiu nisto. Não me surpreende, já apanhei muitos. Em boa parte, é incúria dos professores. A descarga de textos da net é muitas vezes evidente, principalmente pelos brasileirismos, e há instrumentos informáticos poderosos – tenho-os na minha universidade – para detectar o plágio. 

Simplesmente, muitos professores estão-se nas tintas, aqueles que, nas públicas e principalmente nas privadas, têm um arranjinho de duas a quatro horas por semana, com aulas preparadas há cinco ou dez anos atrás e nunca actualizadas. E até nem culpo inteiramente as universidades por esta situação. Em muitos casos, são esses “professores”, políticos, empresários, que querem um título universitário para abrilhantar o currículo. O caso Relvas foi caricato, mas há outros mais “sofisticados”.

O que me surpreende no artigo do jornal é andar a divagar sobre diversas caracterizações do fenómeno sem ir ao essencial. Que é “um problema muito sério, fraturante e global”, lá tinha de vir o discurso redondo de vazio semântico. Que contribui para o baixo nível de desenvolvimento social, económico e político de um país. Ídem. Que acaba por formar “ativos tóxicos” (tem graça, esta).

E lá vem o efeito social: “são pessoas que vão para o mundo do trabalho sem terem as qualificações necessárias para a sua futura vida profissional”.

E ninguém diz, preto no branco, o essencial: estes jovens, por jovens que sejam, são criminosos, desprovidos de ética e não merecem estar numa universidade que gasta com eles muitos dos nossos recursos de contribuintes. Pura e simplesmente, a fraude académica deve implicar a expulsão da universidade. Sem mais, é tudo. Leiam o código de conduta de Harvard e das outras da Ivy League.

Visão heterodoxa dos resultados de ontem

A tendência geral, na análise dos resultados eleitorais, é a de contrapor principalmente o PS e a direita no governo. Talvez não seja a perspectiva mais significativa, em termos de grande tendência e do que pode vir aí como resultado das próximas legislativas.

Claro que o PS foi o principal oponente da direita, numas eleições em que, entrando em jogo muitos factores locais, também pesa o desejo de penalizar o governo e a sua política austeritária. Assim, linearmente, o PS parece capitalizar essa penalização.

Mas será assim, como tendência eleitoral, mormente em próximas legislativas e até nas europeias? Tenho dúvidas, porque, mesmo nas declarações de vitória do PS (com excepção do discurso “nacional”, muito hábil, de António Costa), não há nada que mostre o aproveitamento pelo PS destes resultados eleitorais para afirmar uma alternativa firme de política nacional e internacional. Não se confunda este plano com o plano simbólico dos casos exemplares, como Lisboa, Sintra ou Gaia.

A vitória do PS é inegável mas tem alguma coisa de vitória de Pirro. Não vou contar câmaras nem transferências de bastiões, ficando-me pelas percentagens nacionais. Sei que têm alguma coisa de enviesado, porque os factores locais pesam muito. Minimizando um pouco esse risco, vou usar os resultados para as assembleias municipais.

O PS obteve 35,02% dos votos em 2013 e 36,67% em 2009. Com 1.697.630 votos, perde um pouco mais de 386 mil votos (18,6%). Não se pode falar em derrota, mas também não é uma vitória, muito menos espectacular. A direita, PSD mais o CDS e as suas coligações, fica com 1.723.040 votos (39,87 %) e perde 590.575 votos (25,5%).

Isto são números relativos a movimentos dentro de um grande conjunto, o dos partidos troikianos, em versão dura ou em versão xaroposa. Não me interessando agora analisar essas pequenas oscilações intra-sistema, que nada contribuem para uma verdadeira alternativa, lembro que, nas eleições de 2011, em resultado tão elogiado por Gaspares e todo o clube de troikianos, esse “arco” – PS, PSD e CDS – teve os célebres 78,41% de votos apoiantes do resgate (também chamado de “ajuda externa, como se viu), em números absolutos 4.381.897 votos. Ontem, tiveram 3.420.670 votos, perdendo 22%. Para onde foram esses votos? O que significa a perda?

Foram para a abstenção? Ela cresceu de 4.035.539 votos (41,93%) em 2009 para ontem, 4.557.026 votos (47,35%). Estes cerca de 500,000 votos ficam a meio caminho de explicar a quebra de quase um milhão de votos do arco troikiano.

A meu ver, há duas principais razões da mudança eleitoral, com consequências previsíveis – saiba-se ver a tempo – para as legislativas: a votação na “esquerda radical” (não gosto do termo, mas uso-o por conveniência) e os grupos de cidadãos ou movimentos independentes (designação também dúbia).

O conjunto PCP-BE fortalece a sua posição. Se pudermos transpor isto para a escala nacional, significa a afirmação da alternativa política clara à política troikiana, mesmo que esta disfarçada com falinhas doces de menino de coro. Nas autárquicas de 2009, teve 706.795 votos (12,77%), agora 730.825 (13,08%), mais 24.030 (0,31%). Se corrigido para o aumento da abstenção, o aumento da votação foi de 0,35%. Note-se que nestes dados globais se tem de contar com a absorção pela CDU da quebra dos resultados do BE. 

O PCP está a fortalecer-se, como oponente mais consequente (a meu ver) à política troikiana, face a um BE indeciso, sem posição clara sobre o euro e até sobre uma verdadeira reestruturação da dívida? Tentarei discutir isto mais tarde. Para já, é importante estudar uma situação que os actuais dados ainda não me revelam: o PCP ganhou posições só nos seus bastiões tradicionais, recuperando perdidos, ou também avançou em zonas determinantes, como as zonas urbanas litorais, de população mais jovem e de maior nível educacional e cultural? 

Quanto ao BE, que se cuide!

O outro grande fenómeno foi o da participação de grupos de cidadãos, mais geralmente conhecidos como independentes (6,31%). É difícil a análise, porque tanto parecem significar apenas tricas partidárias internas, como em Portalegre, como genuínos aglutinadores de movimentações de massas, como no Porto ou em Matosinhos. A sua expressão eleitoral foi eloquente e mostra como as gentes se estão a libertar das tutelas partidárias. Mas não sem ambiguidades. Afinal, Rui Moreira, combatendo o candidato oficial da direita, é menos à direita do que Meneses? E o homem de Oeiras é exemplo para algum filho nosso que queiramos educar no respeito pela lei e pela ética? O podemos contar com estes novos actores políticos (novos caciques?), em lutas políticas a nível nacional?

Ainda uma nota sobre o voto em branco. É importante e passa muito cá em casa. Eu próprio, por razões de falta de informação, votei ontem um boletim, o de significado mais político geral, num partido e os outros dois em branco. É pena que ainda vá ficando derrotado pela incivilidade e comodismo da abstenção. Nestas eleições, o voto branco representou , muito à frente do de 2009 (1,99%). Uma grande diferença, que tem de ser tida em conta nas análises e nos espectáculos televisivos de noite eleitoral, que sempre a esquecem.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Textos longos

Escrevi hoje uma entrada [*] com 13000 caracteres. É muito mais do que qualquer jornal me permitiria como artigo de opinião e vai contra todo o “consenso” (?) de que na net (permita-se-me não pôr entre aspas os termos ingleses, senão não fazia hoje outra coisa) se tem de escrever textos curtos. Esse consenso dá como tontos, intelectualmente primários e preguiçosos a maioria dos leitores online. A ideia é de que não conseguem ler mais do que um ecrã e fazerem scroll é pedir-lhes demasiado. E não se esqueça que um dos grandes padrões actuais de comunicação, o Twitter, só permite 140 caracteres. É uma espécie de p**d* mental.

Paradoxalmente, isto é auxiliado pelo afastamento destas lides e correcção de intyervenção e de fixação de usos por parte de muita gente com responsabilidade. Por exemplo, conheço um bloguista que escreve com frequência mas que raramente lê o que se publica na blogosfera. Conheço leitores ávidos que desconhecem que um Kindle ou outro que tal lhes permite levar para o café centenas ou milhares de livros. Conheço um jornalista respeitado que nem sequer tem endereço electrónico e a quem é impossível mandar observações às suas críticas e crónicas. É também conhecido o caso de um escritor famoso que só escreve à mão, certamente para grande mal dos editores e revisores. Se todas estas pessoas vencerem a sua info-iliteracia, contribuem para maior seriedade da leitura online e para que ela não seja vista como coisa menor.

Fiz uma contagem sumária e aproximada do número médio de caracteres das entradas dos blogues que leio obrigatoriamente. Anda pelos 1400-1500. Há desvios grandes, como o meu velho amigo Medeiros Ferreira que faz entradas estilo haiku, de três ou quatro linhas, até outro caro amigo, Correia Pinto, que reflecte aprofundadamente, muitas vezes para cima de 4000 caracteres. Há ainda os casos particulares dos que transcrevem para blogues crónicas de jornais com a respectiva dimensão, relativamente generosa, como José Vítor Malheiros ou Daniel Oliveira. Também dimensão característica, geralmente curta, para os blogues mais marcadamente panfletários (sem ofensa) com menor extensão de argumentação.

Porque escrevo assim? E é que, por me parecer estar a fazer discurso de comício (claro que a maioria dos meus colegas bloguistas não o faz), não me apetece sequer escrever a nota curta, embora sabendo que a capacidade de síntese é uma virtude retórica. Como é costume atribuir-se ao Pe. António Vieira uma apostila em que pede desculpa de uma carta ir muito longa por não ter tido tempo para a escrever mais curta.

Devia gostar de escrever na net como telegramas, porque até tenho boa experiência, de décadas de escrita de artigos científicos, em inglês, em que o editor não permitia estiramentos. Simplesmente, tratava-se de escrita sobre assuntos relativamente lineares (a ciência banal é muito mais chata do que pensam e do que se deduz do marketing dos sucessos que enchem os jornais). Também para leitores que sabiam do assunto tanto ou mais do que eu e que avaliavam os resultados sem eu precisar de grande discussão. Finalmente, admito, não estava a tentar “passar” posições políticas ou ideológicas. Creio que contribui para esta minha habitual extensão de textos o respeito pelo leitor, a quem quero dar toda a informação necessária para que possa construir o seu juízo. Se calhar, também o hábito longo de escrever artigos para o meu sítio, antes de ter blogues.

Terá de ser mesmo assim o tal paradigma de textos curtos, de intervenção quase de sound bites, ou com muito pouca elaboração para além de teses? Leia-se um artigo muito interessante transcrito há tempos pelo Público, “Leia este artigo mais tarde” que analisa, com dados científicos, a mudança dos hábitos e capacidades de leitura e em que se dá conta do crescente sucesso de aplicações desenhadas para guardar, etiquetar e recordar artigos desenvolvidos que os afazeres do dia não permitem ler, considerando-se como longo um artigo com mais do que 15000 caracteres. Vale a pena ler.

[*] Como disse acima, não tenho nada contra o uso judicioso de anglicismos mas, por vezes, há coisas que revelam ignorância crassa e total desrespeito pela nossa língua. Quantas vezes já leram posta, como  tradução (?) de post de um blogue? Blog é a contracção de “web log”, sendo “log” ou “log book” o diário de bordo, em que se faziam posts ou, em Portugal, entradas. Agora postas, só à transmontana e grelhadas!

P. S. (25.9.2013) – Depois da edição substancial que expliquei em P. S. ao texto, hoje, ele ficou com cerca de 9700 caracteres.

Euro-utópicos e euro-realistas

RESUMO: Na sequência das eleições alemãs, um artigo longo  sobre o euro-utopismo. Desenvolvo três aspectos fundamentais: 1. a concepção idealista da UE como entidade agregadora de estados iguais, quando, de facto, é uma comunidade sujeita a um “hegemónio benévolo”, a Alemanha; 2. a sobrevalorização euro-utópica da aplicação à Europa actual de formas tradicionais de luta política, que não consideram a hegemonia e o enorme peso estrutural do neoliberalismo, bem como a subordinação dos governos à ideologia alemã; 3. o idealismo romântico (?) dos projectos federativos. 

* * * * *

Discorrendo sobre as eleições alemãs, dois comentadores bem conhecidos, Rui Tavares e Daniel Oliveira, escrevem ontem artigos sobre a influência que elas têm na política nacional e o que se pode esperar delas. Em ambos os casos, por razões diferentes, dão motivo para nos questionarmos sobre concepções políticas baseadas na crença na fada europeia, na exaltação de uma eurofilia utópica e paralisante.

Para esses euro-utopistas que andam por toda a UE, a crise da Europa tem razões principalmente políticas, de défice e não de avanço voluntarista na união, e, por consequência, o terreno principal da luda de esquerda é a nível europeu.

Pelo contrário, a crise da construção europeia não está no défice formal de democracia, de colaboração entre os estados, de participação dos povos europeus, na burocracia centralizadora que desconhece o princípio da subsidariedade. Tudo isto existe mas, para o comum do cidadão dos países europeus (nem me lembro de dizer “cidadão europeu”), tudo isto é fado, tudo isto lhe é estranho. É conversa de uma elite que se converteu a uma globalização cultural que é uma caricatura de cosmopolitização solidamente enraizada em realidades nacionais e regionais com significado bem estabelecido.

A crise está numa disfuncionalidade intrínseca dos princípios e critérios de união económica (o resto são cantigas), com contradições insanáveis, como, por exemplo, a concorrência total num mercado único, com liberdade de movimentação de capitais, e a proclamada solidariedade. Está na aventura do euro sem condições de “zona monetária óptima”. Está na contradição máxima de, para salvar o euro, precisar de avançar para uma federação e ninguém o querer (nem eu, na modesta parte de cidadão que me toca).

A União Europeia (UE) não é uma união ou confederação de estados iguais, nem politicamente nem economicamente. A diferenças de facto vieram juntar-se, com os resgates à Grécia, a Portugal e à Irlanda imposições que significam verdadeira limitação da soberania. Alemanha desempenha hoje na Europa um papel de “hegemónio benévolo”, como os Estados Unidos à escala mundial, depois do colapso da URSS. São características típicas do “hegemónio benévolo” –  nova forma de potência imperial – por exemplo, grande poder económico, controlo organizacional da sociedade, grande poder tecnológico, reconhecimento pelos estados satélites do seu papel de líder, poder militar.

A Alemanha só não tem esse poder militar, mas, numa época em que a guerra se faz com a economia, ele não é essencial para a capacidade alemã de se assumir e impor como “hegemónio benévolo”. Então, se a real politik ainda vale alguma coisa, como é que os europeístas fantasistas pensam que a Alemanha vai prescindir desse estatuto de facto, sujeitar-se a ser mais um igual entre iguais na UE e mormente onde as coisas doem mais, na eurozona? Como é que os seus governos vão deixar de atender ao desejo dos alemães de assumirem esse papel internacional (com algum revanchismo?). Mais. Com a reunificação alemã e com a entrada na UE de um bom número de países tradicionalmente na órbita de influência alemã (não obstante as muitas guerras entre eles), a tendência centrípeta do eixo franco-alemão dos pais fundadores da CEE inverteu-se e abre-se uma brecha entre um bloco germano-leste e um bloco latino (com o Reino Unido a assistir).

O domínio das concepções alemãs na construção europeia e do euro é o reflexo da vitória da concertação  de uma ideologia e de uma prática economico-política com ela intimamente relacionada. O neoliberalismo esteve no núcleo do projecto europeu, no seu desenvolvimento a partir do acto único e mais acentuadamente de Maastricht. Reclamar, nestas condições, a democratização do projecto, como fazem os euro-utopistas, é não perceber que ambas as coisas estão associadas e que não se pode eliminar a superestrutura tecnocrática e de “especialistas” (e comissários) sem cultura democrática sem se destruir a ideologia neoliberal, que só sobrevive, hegemonicamente (vide Gramsci), por se sustentar necessariamente nesse aparelho cultural e de manipulação mental.

O euro, no quadro da financeirização da economia, é o compromisso de solução entre a dificuldade de não ser sustentado por um estado único com orçamento comum e um banco central politicamente dependente e com poder na política monetária; e ter de respeitar um mínimo de equilíbrio entre as diversas economias (o que não faz, desde o início com distorções na definição de paridades, a causar excedentes e défices, movimentos de capitais para crédito fácil, tudo a explodir em bolhas financeiras).

Como o euro foi coisa difícil de aceitar pela Alemanha (e pelos seus eleitores), que certamente preferia que a reunificação e a integração dos países de leste na UE tivesse sido feita sob o peso do marco, Mitterrand pagou o preço de definir o euro à imagem e semelhança do marco: moeda forte, controlada por um banco central independente, com objectivo exclusivo de garantir a estabilidade dos preços. 

Afinal, isto nem é só novidade do neoliberalismo europeu à Thatcher. Já vem inscrito no velho ordoliberalismo alemão da primeira metade do século XX, que sempre influenciou a democracia cristã, diferindo apenas do neoliberalismo por defender maior papel regulador do Estado, mas sempre a bem do mercado. Impregnado na mentalidade alemã, vê-se agora reforçado pela sua tendência para a “economia moral”, como norma de sociedades de formigas, trabalhadoras e responsáveis, que não têm de ajudar as sociedades de cigarras, gastadoras e irresponsáveis. A tristeza está em ouvirmos tantos portugueses a concordarem com isto.

O imobilismo da posição alemã está portanto inscrito no seu “código genético”, independentemente de haver ou não eleições como as de domingo passado. É sintomática a recusa alemã em considerar qualquer correcção da sua visão dogmática, mesmo quando todos os dados reais o exigem. Só aceitou o tratado orçamental, que se encaixa perfeitamente na sua visão, mas rejeita intransigentemente as obrigações europeias de dívida mutualizada, o alargamento de poderes do BCE, uma verdadeira união bancária abrangendo também os bancos alemães, o fundo de reestruturação bancária e, obviamente, a taxa Tobin. Só não recusa os 41 mM de euros que já lucrou em juros dos empréstimos de resgate dos países periféricos, Portugal incluído.

Pensar que todo este quadro político, ideológico e económico, extremamente entrosado e complexo, se resolve em termos de luta política tradicional agora apenas com mudança de terreno de batalha, para a Europa, como pretendem os euro-utopistas, é “wishful thinking” perigoso, que pode paralisar a esquerda dos países europeus.

Passemos agora para outra questão, estrutural e institucional. Goste-se ou não, é possível argumentar, em teoria, que muitas disfuncionalidades do euro poderiam ser resolvidas pela construção de uma zona monetária óptima, que a história mostra que só é viável como uma federação. É sintomático que, chegados a este ponto de dedo na ferida, os euro-utopistas começam as voltas, sabendo bem como a ideia não é apoiada pela generalidade dos europeus e, portanto, não tem a sustentação democrática que eles tanto defendem como o principal défice da UE.

Vou esquecer agora a diferença entre confederações e federações porque o que importa, em termos comparativos, são as federações actuais, principalmente as que passaram de um estadio a outro por razões financeiras e de necessidade de moeda comum e dívida mutualizada, como aconteceu com os EUA depois de Adams.

Em primeiro lugar, não me estou a lembrar de nenhuma federação bem sucedida que não tenha sido formada por vontade comum “contra” qualquer coisa (Estados Unidos, Brasil, de certa forma a Suíça) ou por imposição de um poder imperial ou seu sucessor (URSS) ou de um projecto político conduzido por um poder central forte, à Bismark (novamente a Alemanha!). Outros casos, de estados quase federativos (Canadá, Austrália, África do Sul), reúnem comunidades muito recentes, em experiências de expansão que exigem compromisso entre individualidade e a utilização de recursos comuns, principalmente as vias de comunicação e transportes. Outra coisa essencial, com excepção da Suíça e do Canadá, é a forte coesão cultural expressa pela existência de uma língua única.

A Suíça é caso único, pela diversidade de factores que, ao longo dos séculos, desde os três cantões alpinos iniciais até às adesões pós-napoleónicas, justificaram a expansão da confederação. Também a constituição de algumas federações não foi linear. Por exemplo, a seguir a Ipiranga, houve quase guerra civil por alguns estados brasileiros terem apoiado a velha monarquia. Mesmo a adesão dos estados americanos à guerra contra o colonialismo britânico não foi unânime.

Assim, qual é o projecto federalista dos euro-utopistas, em que se baseia, como se configura na prática, como garante a solidariedade, o equilíbrio de poderes federais e nacionais? Não me venham com a tese, que já li, de que tudo correrá bem pelo reconhecimento de que a diversidade é um factor histórico de enriquecimento. A Europa criou problemas demais, a terem de ser resolvidos, para agora se meter em mais aventuras voluntaristas, utópicas e embaladoras do ego de algumas elites bem pensantes, contra o realismo dos povos que sentem os seus problemas do dia-a-dia. O complicado é que, não avançando mais e mais nesta corrida para o abismo em que se lançou, há que regressar ao início e refundar todo o projecto, euro incluído. Mas qual é o mal?

A transposição para a dimensão europeia da luta popular e de esquerda é um mito perigoso. Parte do princípio, não demonstrado, antes pelo contrário, de que há mais forças a este nível e menor capacidade das forças conservadoras. É falso, porque foi principalmente à escala europeia que o neoliberalismo construiu um sistema ideológico, institucional e económico de que os nacionais são reflexo.

Ainda é ao nível nacional que se reúnem os factores de luta que são as experiências históricas consolidadas, as identificações partidárias, com os sindicatos e outros corpos intermédios, que há uma cultura política e tradição mobilizadora, que (paradoxalmente) há melhores condições e mais flexíveis para acções internacionais comuns. E, principalmente, é o nível a que, pela diversidade de condições económicas e sociais e relação específica entre efeitos da crise e da política central europeia, por um lado, e da reacção popular, por outro, surgirão condições revolucionárias para um assalto e outro depois ao Palácio de Inverno central europeu (passe a alegoria). Esperar pelo levantamento europeu geral e recusar a luta num só país é mesmo o que se pode esperar de trotsquistas serôdios…

P. S. (25.9.2013, 10:15) – Esta versão tem diferenças significativas em relação ao artigo original, publicado ontem. Reduzi a discussão dos artigos de RT e DO, a que os leitores têm acesso e centrei-me na minha própria posição sobre o tema da eurofilia utópica e dos seus perigos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Cincinato, precisa-se

Lucius Quinctius Cincinnatus (Cincinato) ocupou os mais altos cargos de patrício romano, senador, cônsul, general. Apesar de todo este poder, retirou-se no fim do mandato para a sua vila agrícola, onde uma delegação do senado o foi buscar, estava ele a lavrar a terra, diz a lenda, para assumir poderes de ditador, em 458 AC, face ao perigo de invasão de Roma pelos écuos e vólcuos, tribos itálicas não latinas. Venceu-os mas, contra a forte movimentação que queria prolongar o seu poder, recolheu novamente à sua quinta. Vinte anos depois, já com oitenta anos, é-lhe dado novamente o poder de ditador para derrotar a conspiração de Mélio e novamente abdica do poder e se retira para a vida privada quando Roma deixa de necessitar dele.

É o exemplo máximo da ética republicana. Entre nós, e deixada a vida pública para uma geração de arrivistas e oportunistas, a noção de ética reduz-se a “tudo o que não é ilegal é permitido”. Não é assim. A fórmula é juridicamente indiscutível como defesa dos direitos, na vida privada, mas não é válida na vida pública, embora tenha de ser sancionada politicamente e não judicialmente. Ainda mais do que a substância, o conteúdo essencial, não só formal, da ética política, até é importante a imagem, para um bom clima de confiança entre políticos e cidadãos: “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecê-lo”.

Note-se que, quando falo de vida pública é no sentido que lhe é atribuído por historiadores eminentes. Não se restringe a cargos políticos e abrange toda uma grande área de intervenção social directa ou indirectamente suportada pela comunidade: gestores de empresas públicas estatais ou municipais, de fundações apoiadas pelo Estado, de instituições de interesse público, mesmo que privadas, de confissões religiosas com benefícios sociais, de universidades privadas, de fornecedores de comunicação social, de ONGs, etc.

Vem isto a propósito de uma notícia de ontem do ionline sobre a nomeação da mulher do ministro Nuno Crato para um órgão da Fundação da Ciência e Tecnologia (FCT). Tem todos os ingredientes que referi, como refúgio no álibi de que o que não é ilegal está certo. A nomeação foi feita pelo secretário de Estado, não pelo ministro. O lugar é de consultoria, não remunerado. A FCT não é um órgão da administração directa, embora seja inegavelmente tutelada pelo ministro. Portanto, legalmente tudo bem, mas tudo contra a ética política. Aliás, o criticável começa logo pela senhora, que nunca se devia ter candidatado a esse cargo.

O que fica então para o privado? Dirão que Isabel dos Santos se move na esfera privada, que conseguiu a sua fortuna exclusivamente pelos seus méritos? Ou que uma EDP, a cobrar ricas rendas que todos pagamos e a ter liberdade de pagar o vencimento exorbitante do seu presidente, é coisa privada? Ou que o BPN, e agora o Banif, que estamos todos a pagar, são coisa privada?

Um caso que sempre me interessou, que estudei bem e sobre o qual escrevi, por exemplo aqui ("A Universidade no seu Labirinto", ver capítulo “Os centros de investigação e uma história insensata”, pág. 90 e seguintes), é o das fundações e associações de direito privado criadas pelas universidades. As primeiras estão a ser condicionadas pelas recentes medidas governamentais em relação às fundações, mas as associações (instituições privadas sem fins lucrativos, na língua de pau dos gestores de ciência e tecnologia) continuam a abundar e são um exemplo de confusão perigosa entre a esfera pública e a privada.

Com a designação popularizada de centros de investigação, são reconhecidas e financiadas pela FCT como se fossem unidades universitárias. Só prestam contas aos seus associados (grupos de investigadores como tal autoconstituídos, sem consagração institucional ou garantia de equidade em relação aos demais colegas). Funcionam corporativamente, em circuito fechado, porque, tipicamente, a direcção é que decide a integração de membros e são os membros que elegem a direcção. Quando os centros têm personalidade jurídica, a universidade que os acolhe, que lhes dá infraestruturas e que paga os salários dos professores membros do centro, sem os quais os centros não seriam viáveis, não tem nada a dizer. Muito posso dizer da minha experiência difícil com entidades dessas, quando dirigi um estabelecimento universitário.

As associações pretendem justificar-se com alegada facilitação administrativa e com mais expedita contratação de pessoal. Se é verdade que a contratação pelas universidades tem sido dificultada pela política troikiana do governo, já o argumento da facilitação administrativa é falso, a menos que se entenda por facilitação a falta de controlo e a opacidade da gestão, muitas vezes a versão autoritária e discricionária da gestão, em acumulação, do responsável pelo organismo público que, directa ou indirectamente, criou a associação.

Trata-se quase sempre de casos de conflito de interesses, com sobreposição de objectivos. Na prática, muitas vezes, apenas o desejo tribal de gerir meios e financiamentos externos (incluindo os da FCT) sem subordinação hierárquica. Muitas vezes, com estes poderes feudais, e tal como dizia D. João II, o rei só manda nas estradas. Como director, foi aquilo a que, com ajuda superior, me quiseram sujeitar.

Como expus desenvolvidamente neste artigo, aceito que, em muitos casos, haja toda a vantagem na constituição de entidades específicas, quando a universidade e a sua comunidade não possuem a experiência, motivação e mentalidade necessária para determinada actividade. Por exemplo, muitas das relações com as empresas, a criação de parques tecnológicos ou as incubadores de empresas pelas universidades, só são eficazes se articularem gestores, inovadores e académicos em entidades próprias, de natureza empresarial. 

Curiosamente, são empresas deste tipo que o Tribunal de Contas quer proibir e não as associações que visam, fundamentalmente, fugir à disciplina e transparência da administração pública.

Temos em Portugal casos dessas empresas justificáveis mas creio que, na generalidade, as nossas associações para-universitárias se caracterizam é pela sobreposição concorrrencial de objecttivos, pela ambiguidade e pela indisciplina institucional que referi. Voltando ao início, nada disto é ilegal, mas, a meu ver, é pelo menos duvidoso que seja ético.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Premonições de Natália?

Quantas vezes já escrevi que tenho “mixed feelings” em relação à net? Indispensável instrumento, hoje, de acesso a uma enorme biblioteca ao alcance de um “click”, em tempo rápido. Ao mesmo tempo, instrumento de desinformação, de habituação das pessoas a um embotamento da sua capacidade crítica que Orwell nunca imaginou. Uma das coisas frequentes é a “invocação de autoridade” ou “os cucos da net”. Há anónimos que até escrevem coisas interessantes mas que, sei lá porquê, não as subscrevem, pondo esses ovos em ninhos com o rótulo de pessoas famosas.

Na maioria dos casos, alguma familiaridade com os interesses do invocado autor, com o seu estilo de escrita, alertariam logo para a fraude intelectual. Por exemplo, o célebre texto de João Ubaldo, depois reproduzido em Portugal como de Prado Coelho, era uma fraude evidente. Em qualquer caso, uma pesquisa no Google também ajuda muito. O que me espanta é como pessoas com indiscutíveis credenciais intelectuais se prestam ao jogo e espalham este lixo. Creio que porque tudo é bom para apoiar as suas próprias ideias, como se elas não valessem só por si, mesmo que sejam eles sozinhos contra tudo e todos.

Chegou-me hoje um texto, “As premonições de Natália”, com excertos de reflexões dela sobre a o que adivinhava vir a ser a actual crise económica e da UE. Posso estar enganado, mas é fraude evidente. É certo que vem a referência a um livro de Fernando Dacosta, "O Botequim da Liberdade", mas, como nunca o li e não o vou procurar, mantém-se aqui a minha dúvida.

Conheci relativamente bem Natália Correia, jantávamos em casa de uma amiga comum. Com essa minha patrícia açoriana, discuti muito a insularidade, até ver que era diálogo de surdos, entre quem tinha amadurecido nas ilhas e quem, como ela, tinha da terra uma visão de tenra infância e baseada na sua construção poética, embora invocando, a despropósito, Antero, Côrtes-Rodrigues e Nemésio (este último, é verdade, ela conhecia bem). Também tenho dela a opinião de uma poetisa de mérito, que leio com muito prazer, mas que, nas concepções políticas, se ficava sempre pelo manto diáfano da fantasia. Quanto a algum conhecimento, mínimo, de economia política, o que se conhece dela?

Por tudo isto, para mim e até prova em contrário, as “premonições” são mais um embuste. E insisto: eu não preciso de poemas de Drummond, artigos de João Ubaldo ou fantasias poéticas de Natália para ter as minhas próprias ideias.

O patriotismo ainda vale

Jorge Bateira, hoje, no i: “Apesar de traído pelas suas elites, europeístas a qualquer preço, talvez Portugal ainda encontre energia para recusar tornar-se numa Detroit do extremo ocidental da Europa.”

Quantas vezes já aqui lembrei os versos finais da estrofe 33 do canto IV dos Lusíadas,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Infantilidade política fascistoide

Não há esquerdista que não dê em pessoa respeitável, conservadora. Como no seu esquerdismo eram dogmáticos e sem sombra de imaginação (quem gritava “l’imagination au pouvoir” eram outros), não têm hoje uma ideia marcante, mesmo que caricata.

Quem ainda tem essas ideias são os que foram mais ou menos libertários, e estou a lembrar-me dos que, bastante tempo depois de 68, deram os Verdes, primeiro os alemães. Quando entusiasmados por ideias provocadoras, deliram, sentem-se jovens, julgam que vão captar um eleitorado jovem que afinal os olha com sorriso condescendente. Tal como cá com o BE e o acolhimento (mesmo que não iniciativa) da luta contra o piropo, os Verdes alemães tanto têm o bem estabelecido Joschka Fischer, cada vez mais redondo e bem comportado – o mal que faz ser ministro! – como essa coisa estranha e serôdia que é Daniel Cohn-Bendit.

Isto vem a propósito da sua última proposta, inserida na campanha eleitotral para as legislativas: um dia por semana obrigatoriamente vegetariano nas cantinas públicas! Não estou a brincar. Metam no Google “greens vegetarian day germany” e logo vêem o que sai. Isto não tresanda a mentalidade fascista? Para proibir comer carne em alguns dias bastou o obscurantismo (mas com razões económicas) da abstinência da Igreja medieval (e lixou-se, porque sem isto e as bulas e indulgências não teria havido Lutero).