segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Orçamento de 2017, a ocasião de todas dúvidas

Está visivelmente em curso o jogo de espelhos no conjunto PS e partidos apoiantes, mas principalmente nestes, da preparação do OE17. São repetidas as declarações do BE e do PCP no sentido em que a principal responsabilidade pelo governo e orçamento é do PS, que esta solução é o mal menor, que está longe dos objetivos dos partidos da esquerda-esquerda e, até, a relembrar que o PS e o governo não são propriamente de esquerda.
Compreendo, mas parece-me um esforço só para militante ver e sem consequências para o eleitor e a opinião dos TV-sentados. Também sei que a grande maioria dos que, nesta massa, sofreram com a austeridade fanática, esperam do governo a melhoria da situação e pouco se importam com etiquetas políticas, só existindo para eles dois termos, Costa e Passos. Mas são os que, enquanto não se virem desesperançados da “geringonça”, penalizarão fortemente qualquer rotura pelo BE ou PCP (claro que o PS nunca vai tomar e assumir a iniciativa de rotura).
Os dois partidos de esquerda-esquerda estão prisioneiros e, o que, até agora, tem justificado como do mal o menos parece-me que começa a parecer muito pouco. É certo que austeridade foi completamente contida, mas a reversão foi muito limitada e não houve efeitos no crescimento pela procura e no investimento. 
Até quando os apoiantes do governo vão conseguir mobilizar as suas zonas sociais de influência para manterem expetativas positivas? É a minha grande dúvida acerca do OE17. Mais 10 euros nas pensões?
E o que vai ser o apertão europeia, mesmo que em relação a um OE só ligeiramente desviante do dogma europeu, e pela segunda vez depois do caso tolerado de 2016,mas num quadro europeu excepcional?
Mas, para além desta questão europeia, mais relacionada com o Tratado orçamental e os limites ao défice, que pode criar grandes problemas ao apoio BE-PCP ao governo do PS, ainda é mais funda a divergência em relação ao euro e à dívida e seu serviço.
Aceito que as divergências em relação ao euro não ponham problemas a curto prazo. Ninguém de bom senso (e o PCP é realista) põe a questão do euro a curto prazo, tanto mais que ficaria isolado sem o BE ter uma posição clara sobre o assunto. Já a dívida é diferente, pelo significado importante do seu serviço (essencialmente, juros e amortizações contratadas). A meu ver, essa economia é essencial para se ir mais longe no investimento do que a simples ginástica orçamental que se tem feito no quadro do tratado orçamental.
O PS é absolutamente contrário a uma reestruturação da dívida e não creio que seja possível demovê-lo. BE e PCP tem posições diferentes mas que julgo facilmente conciliáveis. Difícil, ou impossível, será conseguir a anuência do PS.BE e PCP vão aguentar isso até ao limite, é perfeitamente compreensível. 

Mas chegará um ponto em que as duas posições serão irremediavelmente antagónicas, porque a questão do serviço da dívida e a necessidade dos seus decorrentes recursos passará para as interrogações do eleitorado. Então, BE e PCP tirarão as consequências. Quando? Ninguém poderá dizer, hoje. Mas é o ponto crítico.

Julgamentos com júri?

O juiz.conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, figura muito respeitável, propões hoje no Público, num artigo sobre a reforma da justiça, “uma justiça participada pelos cidadãos, dando prevalência ao júri, à intervenção de juízes sociais e à participação de assessores técnicos qualificados.” Não tenho a mínima competência para discutir juridicamente com o autor, mas esta não me parece uma questão meramente jurídica.
À primeira vista, parece uma conquista democrática que, se não erro, já vem da Magna Carta, o julgamento pelos pares. Mas nem tudo o que parece é.
Logo por coincidência, tenho estado a ver o documentário em episódios da Netflix, “Fabricando um assassino” (“Making a murderer). Não garantindo que o documentário é fidedigno, embora todo feito com vídeos oficiais, dá para pensar sobre coisa que já há muito me suscita dúvidas, o sistema de júri. Em cinema, até já é coisa antiga, com os “Doze homens em fúria”.
Muito frequentemente, os casos judiciais são hoje muito mais complexos e as modernas tecnologias forenses exigem boa formação científica para a sua avaliação. Não admira que, entre nós, só se peça júri em casos “imediatos”, tecnicamente simples, mas carregados de emotividade e de reação pública.
Sabemos das histórias que havia todo o cuidado em manter os jurados isolados, sem conhecimento da informação sobre o caso, principalmente das declarações da defesa e da acusação (no documentário, vê-se a sua importância, em época televisiva, para a construção de uma opinião pré-veredicto). Isto hoje é impossível, com TV, net, sms, a menos que se mantivessem os jurados em prisão, incomunicáveis. Muitas vezes, a presunção de inocência, base civilizacional de justiça (contra os julgamentos de Deus e coisas que tal) é substituído por presunção de culpa.
Abundam também os testemunhos de jurados com juízos preconcebidos, sem capacidade de discernimento para analisar os dados objetivos e influenciáveis pelos truques dos advogados, não obstante os inócuos avisos do juiz. Também, como diz um jurado no documentário, esses jurados teimosos e asininamente convencidos tendem a vencer os outros pelo cansaço. No “Doze homens em fúria”, o jurado personificado por Henry Fonda era raciona, praticava a dúvida metódica, era inteligente e assim convenceu os outros. Mas provavelmente a maioria dessas situações é ao contrário.
Mss provavelmente o maior problema seja a incapacidade dos jurados para avaliar corretamente o valor das provas técnicas laboratoriais. Não é fácil a um não cientista lidar com os conceitos de margem de erro, de falso positivo e de falso negativo. Por exemplo, no documentário que tenho estado a ver, um dos elementos que mais deve ter pesado na condenação de Steve Avery foi a prova de que o sangue era dele e não de uma amostra colhida pela polícia, por esta conter EDTA e não ter sido detetado esse composto no material de prova. Ora é muito menos arriscado um resultado positivo (“o sangue é de Avery”) do que um negativo (“NÃO contém EDTA”). Depende da sensibilidade do teste, da calibração do aparelho que já não era usado há anos, muitas outras razões. Se um coletivo de juízes, com peritos, pode ter dificuldades, muito mais doze cidadãos comuns, semianalfabetos em muitos condados do midwest americano, poderem chegar a uma conclusão racional.
E o “beyond a reasonable doubt”? Há coisa mais difícil de definir?
No caso americano, principalmente rural, bem descrito no documentário e não me parece que importante entre nós, avulta ainda o papel da policia. Ela é de grande confiança popular. Sheriffs, acusadores, muitas vezes os juízes, são eleitos. Representam a ordem em comunidades ainda com raízes na selvajaria da conquista do território. Pô-los em dúvida, muito mais acusá-los de crime (no caso, armadilhar um caso com falsificação de provas) é ir contra o sentimento geral do povo e do júri que dele emana.

Na complexibilidade atual, prefiro o sistema de coletivo de juízes, treinados, educados, ao menos,  capazes, em princípio, de se isolarem das pressões emotivas da opinião pública e com o sistema de sabedoria secular do “juiz de fora”. Com capacidade para estudarem e ouvirem opiniões especializadas sobre questões de alta tecnicidade. E com recurso a um tribunal superior com capacidade de apreciar a matéria de facto.