domingo, 28 de abril de 2013

Memória muito curta

Os dois partidos islandeses mais à direita, que foram notoriamente responsáveis pela crise, nomeadamente pela desregulação do setor bancário, ganharam as eleições de ontem. Não será caso para perguntar se os frequentes elogios ao comportamento político dos islandeses não terão sido manifestamente exagerados?

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Uma teoria pouco sólida

Vale a pena ler o artigo de Wolfgang Münchau no Finantial Times de 21.4.2013, “Perils of placing faith in a thin theory”.

John Kenneth Galbraith ridicularizou com uma piada memorável o seu colega economista Milton Friedman [JVC - da escola monetarista de Chicago], dizendo que “O azar de Milton era que todas as suas teorias já tinham sido experimentadas”.

O mesmo se pode dizer de Reinhart e Rogoff. (…) Especialmente na Europa, os políticos defensores de austeridade acreditam fielmente em R-R e aplicam as suas políticas com consequências humanas e económicas catastróficas.

Para se ver a enorme influência de R-R no debate europeu, cite-se o comissário Olli Rehn (2011). Quase o mesmo foi dito por Vítor Gaspar. “A regra dos 90% é indiscutível, por a dívida poder desencorajar o investimento.”

A tragédia dos economistas de Harvard não foi o uso errado de uma folha de Excel, mas sim o amplo uso errado, fora da economia, de apresentações de Power Point. E também a crença absoluta na fada da confiança, que, para eles, controla os mercados.

(Extratos e tradução - JVC)

Presidente e presidente?

Segundo notícia dos jornais diários, Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia afirmou hoje que, apesar de "fundamentalmente certa", a política económica implementada na Europa, centrada na redução dos défices "atingiu os seus limites".

Para Durão Barroso, para serem bem sucedidas, estas políticas, além de bem concebidas do ponto de vista técnico, devem ser capazes de granjear um "apoio politico e social mínimo".

"Politica e socialmente, uma política que é apenas vista como austeridade é claro que não é sustentável", afirmou o presidente da Comissão Europeia esta manhã, em Bruxelas, numa conferência sobre "Federalismo ou Fragmentação".

Barroso defende por isso que a política de correcção dos défice e da dívida, que sublinhou ser "indispensável", deve ser combinada com "um ênfase mais forte no crescimento e medidas de crescimento a curto prazo": "Temos dito isto, mas temos que dizê-lo de forma ainda mais clara senão, mesmo que as políticas de correcção do défice sejam correctas, (...) não serão sustentáveis politica e socialmente".

Uma no cravo e outra na ferradura. E com os cidadãos, pensando na troika, sem se lembrarem de que boa parte do empréstimo de resgate foi feito pela Comissão, para além do BCE e do FMI.

Será que toda esta preocupação social de Barroso não tem nada a ver com tentativas de captar simpatias do eleitorado para as presidenciais de 2016?

Também vale a pena ler este parágrafo: "Sei que há conselheiros tecnocratas que nos dizem qual o melhor modelo, mas que quando perguntamos como o implementar, dizem que isso já não é com eles. E isto não pode acontecer ao nível europeu", diz o presidente da Comissão Europeia, que acrescenta que, além de precisar de uma política económica "correcta", a Europa precisa garantir "os meios para a sua implementação e (...) aceitação política e social": "Foi aqui que penso que não fizemos tudo bem".

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O caso Reinhart-Rogoff

Faltam-me credenciais para falar do caso Reinhart-Rogoff do ponto de vista económico mas não do ponto de vista científico ou político. A história está bem descrita num artigo simples mas elucidativo publicado anteontem por Mike Koncsal no blogue do Instituto Roosevelt, “Next New Deal” e noutro artigo de Chris Cook no Finantial Times de ontem.

Muito resumidamente, R-R são autores de um trabalho, “Growth in a Time of Debt” muito utilizado como texto cientificamente fundamentador de políticas austeritárias. A conclusão é de que a dívida pública igual ou superior a 90% leva à queda do crescimento económico. Daí o objetivo político primordial de redução da dívida. Agora, outros três economistas americanos, professores da Univ. Massachusetts, T. Herndon, M. Ash e R. Pollin, dissecam o trabalho, recorrendo aos dados originais não publicados e mostram erros clamorosos de análise e de provas estatísticas. 

R-R reponderam mas não posso discutir tecnicamente em que termos. Destaco apenas uma das suas afirmações essenciais:  “we were only arguing association, not causality” (“estávamos só a discutir associação, não causalidade”). De facto, mesmo que a análise dos dados tivesse sido correta, mostrando correlação positiva, nunca se podia dizer que A era causa de B ou se B era causa de A.

Por coincidência, ainda hoje conversava com os meus alunos sobre a situação epistemológica das chamadas ciências sociais (CS). Para alguém, como eu, educado nas ciências experimentais, as ciências sociais cumprem os requisitos para serem ciências? O recurso a métodos matemáticos, com relevo para a estatística, é suficiente? Idem quanto ao rigor mental de análise? E são sujeitáveis a falsificação (no sentido de Popper)? Tudo isto extravasa esta nota mas tenho de focar dois aspetos.

Uma característica patente de muitas ou todas as CS é a constituição de escolas, com correspondente teoria, muitas vezes com fraca base de evidência empírica, quando não é a teoria que vem primeiro e a procura de dados é “confirmativa”. Está-se frequentemente perante ideologias e não ciências. É fácil ouvirmos as pessoas ficarem perplexas quando são bombardeadas com debates, comentários televisivos, etc., em que economistas apresentados com credenciais do mesmo nível se digladiam com opiniões contrárias, invocando teorias ou modelos “científicos” opostos. As pessoas sabem que têm alta probabilidade de dois médicos lhes diagnosticarem e tratarem da mesma forma a sua doença e não percebem porque é que os “médicos da doença económica” não acertam.

No entanto, não se estabelece com clareza a distinção e o trabalho académico acaba por ser instrumentalizado pela política, a priori ou a posteriori. Esta e os seus agentes precisam de uma legitimação que, estando todos nós reféns da pós-democracia, já não lhes é dada só politicamente, por via democrática, mas antes facultada pela aparência ou renome bem ou mal feito de qualidade académica, científica ou técnica, de Gaspares e outros, afinal tecnocratas sem cultura democrática.

A reduzida certeza (certeza, claro, no sentido relativo em que deve ser tida a “certeza” científica a cada momento) das CS e a sua apropriação pelos poderes, político e outros, está também relacionada com a frequente falta de deontologia e de responsabilidade social de alguns domínios das CS muito próximos do poder, das suas benesses. Mesmo à nossa pequena escala, os casos são mais do que muitos e todos conhecemos a corte dos economistas e analistas de serviço, de braço dado também com a comunicação social. 

Um bom exemplo, cínico, da cumplicidade entre “cientistas” e políticos, mesmo que encoberta, é a frase de R-R que reproduzi acima. Talvez seja verdade que não estavam de serviço. Mas alguém pode acreditar que eles desconheciam que são largamente usados pelos governos e troikas deste mundo ultraliberal como fundamentos da política austeritária? Alguma vez chamaram a atenção para o erro (para fim político) de falar em causalidade em vez de associação?

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Títulos, pompa e circunstância

Outro caso, depois dos plágios de teses de doutoramento de dois ministros da Sra. Merkel e do caso Relvas. “O presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, acaba de retirar do currículo um mestrado em Economia Empresarial, pela University College Cork (UCC), que nunca existiu naquela instituição.” (Público, hoje).

Ser político dá jeito, dá poder, dá muito mais coisas, mas nada como ter dourados académicos. Ou as duas coisas, mesmo que com aldrabice. E já parece uma doença contagiosa. Parece também haver uma certa hierarquia: na Alemanha são doutoramentos, na Holanda um mestrado e em Portugal uma banal licenciatura.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Haja respeito

Do comunicado da Comissão Europeia de  7 de abril: 
"The European Commission welcomes that, following the decision of the Portuguese Constitutional Court on the 2013 state budget, the Portuguese Government has confirmed its commitment to the adjustment programme, including its fiscal targets and timeline. Any departure from the programme’s objectives, or their re-negotiation, would in fact neutralise the efforts already made and achieved by the Portuguese citizens, namely the growing investor confidence in Portugal, and prolong the difficulties from the adjustment. 
The Commission therefore trusts that the Portuguese Government will swiftly identify the measures necessary to adapt the 2013 budget in a way that respects the revised fiscal target as requested by the Portuguese Government and supported by the Troika in the 7th review of the programme."
Traduzindo;
A Comissão Europeia congratula-se que, após a decisão do Tribunal Constitucional Português acerca do orçamento do Estado de 2013, o Governo Português tenha confirmado o seu compromisso com o programa de ajustamento, incluindo suas metas orçamentais e calendário. Qualquer desvio dos objetivos do programa, ou a sua renegociação, seria, de facto, neutralizar os esforços já desenvolvidos e com resultados pelos cidadãos portugueses, nomeadamente a crescente confiança dos investidores em Portugal, e prolongar as dificuldades do ajuste. 
Assim, a Comissão confia em que o Governo Português vai identificar rapidamente as medidas necessárias para adaptar o orçamento de 2013 de uma forma que respeite a meta orçamental revista conforme solicitado pelo Governo Português e apoiado pela Troika na 7ª revisão do programa.
Que o governo tenha desencadeado a sua incrível guerrilha contra o Tribunal Constitucional já foi muito mau, como comentei. Mas é intolerável e afrontoso da nossa dignidade soberana que uma entidade não nacional pressione o governo português – entre elogios e avisos – a manter a política agora posta em causa à luz da Constituição, pela qual a CE, mesmo que presidida por um português, provavelmente não tem o menor respeito. 

domingo, 7 de abril de 2013

Democracia à Passos Coelho

A comunicação de hoje de Passos Coelho foi, a meu ver, o maior exemplo a que assisti por parte de governantes, depois do 25 de abril, de falta de valores e de cultura democrática, de desconhecimento primário do que são as regras básicas de um estado de direito, a começar pela separação dos poderes. Montesquieu deu uma volta no túmulo.

Fazer do Tribunal Constitucional (TC) bode expiatório dos erros do governo, incluindo a natureza provocatória das medidas propostas, sobre as quais já tinha havido antes um aviso do Tribunal, é muita coisa, demasiada coisa. A forma insistente como Passos Coelho atacou o TC não me parece que tenha paralelo em violência e desonestidade (exceto, talvez, o discurso assassino de Cavaco contra o governo Sócrates na sua segunda tomada de posse). Passar aos eleitores a mensagem de que tudo o que de mau se vier a passar por causa da decisão do TC é partir do princípio de que o TC podia ter decidido de forma diferente, politicamente. Isto é, é dizer que o TC não é apenas, e não foi apenas neste caso, um órgão judicial, é  dizer que tem uma agenda política

A atitude de Passos Coelho também é cobarde, na medida em que sabe muito bem que nunca um tribunal pode discutir em público as suas decisões e, portanto, as acusações de Passos Coelho não podem ser adequadamente rebatidas.

Inaudita é também a tese de que as responsabilidades assumidas no plano internacional pelo Estado português (e que responsabilidades? De um tratado? De um contrato? De um simples memorando de entendimento?) vinculam todos os órgãos de soberania, em conjunto e solidariamente. Novamente, Montesquieu. Se não fosse assunto tão sério, o disparate de Passos Coelho dava para uma boa gargalhada.

Não fica por aqui a ameaça latente à nossa democracia e a manifestação de uma cultura política sem grandeza, sem ideais, sem valores, antes uma incultura ao serviço de carreirismo partidário, de falta de princípios, de promiscuidade entre a política, os negócios e a manipulação da comunicação.  

Falo da tese que ganha força entre essa gente (e no mundo dos fazedores de opinião que são os seus cortesãos) de que em época de crise, há que “flexibilizar” os preceitos constitucionais. E vai-se mais longe em cinismo: tal é necessário para defender os valores essenciais da própria Constituição, porque “sem dinheiro não há direitos”. Nova versão da célebre máxima do expoente do neoliberalismo, Milton Friedman, “não há almoços grátis”.

Não se pode admitir qualquer limitação à Constituição que nela não esteja expressamente prevista (estado de sítio, de guerra, de emergência). E ninguém pode interpretar a Constituição (como fez hoje Passos Coelho discordando do TC) a não ser quem expressamente a Constituição designa como competente para tal, o TC. A Constituição não é brinquedo nas mãos de uns espertinhos feitos em escolas da grande banca internacional. Além do mais, isso constitui crime. Se fôssemos corajosos  e cultos civicamente como os islandeses, Passos, Gaspares, Moedinhas e quejandos lembrar-se-iam, em termos de responsabilidade política, do Sr. Geir Haarde, ex-primeiro ministro.

Entretanto, o Presidente apoia o governo e assobia para o lado sobre a gravidade de todas estas afirmações de Passos Coelho. Não se diga que não tem poderes para o repreender. O Presidente pode sempre manifestar-se publicamente, mesmo que com algum recato e sem entrar no estilo agressivo do governo e pode ainda – e julgo que se justificava – atribuir à sua opinião maior importância pública, com significado de pedagogia política, usando do seu poder de se dirigir à Assembleia da República.

Finalmente, a declaração explícita de que a compensação da perda de receitas decorrente da decisão do TC se vai fazer por redução da despesa, taxativamente, porque mais significativa, na educação, na saúde, na segurança social e nas empresas públicas (esqueçamos estas, já residuais). Novamente o cinismo de Passos Coelho, ao dizer angelicamente que assim se garante a sustentabilidade do estado social, quando exatamente se vai cortar nos três pilares chave do estado social.

É o programa neoliberal, ou ultracapitalista, em todo o seu esplendor ideológico. Não nos enganemos. Estes fanáticos não representam apenas uma escola de economia política. São os apóstolos de toda uma nova religião, de um retrocesso de conquistas civilizacionais. São gente que é insensível a dramas de pessoas de outras classes, ao desemprego, à fome, à exclusão social.

E não nos espantemos que, à Tea Party ou à “neocons”, a seguir venha a destruição de outras conquistas culturais e sociais, como a liberdade de imprensa, o direito de manifestação, a expansão da educação superior ou conquistas modernas, como a legalização do aborto ou o casamento homossexual.

P. S. Como na foto, era bom que Passos Coelho saísse de cena.