quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Notas tardias

1. A PaF ganhou as eleições, mas perdeu 700000 votos, 23 deputados e, com isto, a maioria absoluta, ficando dependente de outros, ativa ou passivamente, para formar governo. Foi uma vitória de Pirro.
2. Como se justifica a vitória dos partidos do governo depois do ciclo legislativo mais duro de que se tem memória desde há décadas? Ou não será, quando nem sequer precisamos de estatísticas e basta, como vi ontem, o meu centro comercial já sem as empregadas que recolhem os tabuleiros e a maioria das lojas com metade dos empregados? Será que o povo português é passivo, temeroso da mudança, “mais vale os que já conhecemos”? Melhor é procurar fatores objetivos. Primeiro, a grande maioria dos que sofreram o trauma da emigração só dificilmente pode votar. Graças a diversos fatores, o último ano trouxe algum alívio da crise: ligeira recuperação económica, competitividade por desvalorização do euro, ação do BCE, baixa da taxa de juro, boas perspetivas, a curto prazo, de liquidez para o serviço da dívida e, já antes, proibição pelo Tribunal Constitucional das medidas mais gravosas.
Acrescem um discurso ambíguo mas simples da direita, atemorizando os eleitores com a ideia de que o PS podia pôr em risco o “esforço de saída da crise”, elogiado por todos e que possibilitou não ter havido segundo resgate; e o discurso do PS, embrulhado em números, com promessas de duvidosa exequibilidade.
3. Esta terceira nota é supérflua, não traz nada de novo em relação ao muito que se tem dito. Vai o PS ou não viabilizar o governo PSD-CDS? Ou entender-se-á com a esquerda para, falhando o governo de direita, ser indigitado em segundo passo e formar um governo maioritário com PCP e BE, em coligação ou por acordo parlamentar ou extraparlamentar? Apesar da especulação que a comunicação social ainda hoje faz, com encontros e desencontros, a resposta foi dada logo na noite eleitoral quando António Costa elencou quatro posições condicionantes do PS, das quais três suficientemente vagas para poderem ser aceites por todos e a quarta exclusiva da esquerda, da maneira como é expressa, por exemplo, por Cavaco: respeito pelos compromissos europeus.
Já antes, na RTP1, quando o PS ganhou algum ânimo por saber que a coligação não tinha maioria absoluta, também Santos Silva tinha aberto a porta, servindo-se enviesadamente da maioria absoluta de esquerda (no sentido inclusivo do PS): “o povo votou expressivamente contra a austeridade e é aceitável qualquer programa que vá nesse sentido”. Será que para Santos Silva alguma cosmética no programa de governo vai nesse sentido?
Os próximos quatro anos não são de recuperação económica segura, muito menos de crescimento e criação de emprego. Reestruturação da dívida e denúncia do Tratado orçamental, nem pensar. Para onde vamos e para onde vai o PS perdido neste seu labirinto? Ao contrário desta legislatura, em que foi oposição, é certo que envergonhada e votando frequentemente com o governo, o PS vai estar claramente comprometido com a direita. Mesmo que encapotadamente, vai integrar um bloco central. Posso estar muito enganado, mas prevejo o definhamento do PS, para a abstenção e partindo-se os dois extremos do seu eleitorado para o PSD e para o BE (se este estabilizar as condições de que agora beneficiou). É a pasokização de que costumo falar.
4. Lembre-se que, durante a campanha, o atual cenário não foi colocado pelo PS. Nunca se comprometeu a inviabilizar um governo da direita, embora afirmasse seguramente que não deixaria passar o orçamento para 2016 (o que agora desmente, atirando a decisão para essa altura). É uma falácia, porque a reprovação do orçamento só tem como consequência a apresentação de outro, enquanto que a rejeição por maioria absoluta (PS, BE, PCP, PEV) implica a queda do governo. Por isto, e pelo que se disse antes, o PS considera que o seu programa “de esquerda” não é liminarmente incompatível com a prática e programa eleitoral desta maioria de governo.
5. Mas teria o PS outra solução? Julgo utópico supor-se que o PS pudesse fazer uma coligação à sua esquerda. O seu eleitorado oscila entre zonas diferentes do pântano e, desde há décadas, é visceralmente anticomunista. É errado pensar-se que só o inverso é verdadeiro. Uma coligação de esquerda alienaria uma parte considerável dos 174000 votos que se transferiram agora da coligação para o PS (saldo, sem contar com a origem dos votos acrescidos no BE). Da mesma forma, muitos dirigentes da ala centrista ou de direita do PS, da port giratória, advogam abertamente um bloco central mais ou menos explícito. Por isto, é de duvidar que, não havendo disciplina de voto, todos os deputados do PS votassem contra o programa do governo, para assim viabilizarem, em fase seguinte, um governo de PS e esquerda.
6. Tudo o que é comunicação social, agora Cavaco, pressiona ao máximo o PS para apoiar um governo da direita. Falta pensar no que seria a pressão da UE se o PS agisse de outra forma. E o PS não quer certamente perder a imagem de bom aluno europeu.
7. A que se deve o resultado do BE, em comparação com o PCP? É efémero ou aponta para uma base sustentável?. A campanha do BE e a comunicabilidade simpática de Catarina Martins e seus camaradas deve ter valido muito, bem como a frescura da linguagem e da imagem. Em contrapartida, o PCP e Jerónimo estão cansados, repetitivos, não deixam a sua língua de pau. Não nego a sua determinação política e a sua firmeza mas, para além de camadas de trabalhadores correspondentes a velhos arquétipos, não se abrem para a conquista de novas camadas de trabalhadores com diferentes ambições sociais, para a nova realidade do mundo do trabalho, para o papel da juventude intelectual (com ou sem emprego) oriunda de extratos da classe média. E, para a maioria das pessoas, são os vestígios vivos, sem autocrítica (embora Cunhal a tenha feito, mas sem a devida profundidade), do sistema soviético.
8. Duas razões de sucesso do BE: estando eu convencido de que, mais do que a campanha, de espetáculo, valem os debates, creio que Catarina Martins ganhou grandes pontos, arrasando Portas e paralisando António Costa com a proposta de conversas para 5 de outubro, traçando como linhas vermelhas a taxa social única, a manutenção das pensões e a não flexibilização dos contratos de trabalho. Por outro lado, foi mais hábil eleitoralmente do que o PCP menorizando a questão da saída do euro, de que os portugueses têm medo, em relação à reestruturação da dívida. A ver vamos como evolui o BE, agora que Catarina Martins ganhou ascendente na guerrilha interna. Falta ao BE, essencialmente, a penetração no mundo do trabalho, a conquista de posições autárquicas e a experiência de trabalho comunitário, nesta época em que partidos e movimentos sociais têm de se entrosar.
9. Em todo o caso, a esquerda anticapitalista obtém 18,5% dos votos. É um resultado notável na Europa, logo a seguir ao Syriza (vamos ver a IU e o Podemos em Espanha).
10. Finalmente o Livre/TdA, que, desde a sua fundação, não se pode queixar de falta de atenção por parte da comunicação social. Creio que foi a principal vítima do apelo ao voto útil por parte do PS. Fazendo parte central do seu programa – ou assim considerado pela opinião pública, a convergência à esquerda e, portanto, uma maioria do PS, os seus simpatizantes não se perderam por esse caminho e acharam mais prático votar diretamente no PS. Coisas que acontecem a quem não tem uma identidade bem demarcada.

sábado, 19 de setembro de 2015

O Syriza no seu labirinto

Muito se diz que não somos a Grécia. Começa logo por o candidato a poder contra a direita retintamente neoliberal e troikiana, o Syriza de antes de julho não ser equivalente ao PS como partido de governo. No entanto, a coincidência das duas eleições suscita algumas análises comparativas interessantes.
Mas o que se espera destas eleições gregas (e, infelizmente, das nossas eleições)? O fim de semana de “negociações” brutais que levaram à chamberlainiana derrota de Tsipras fez explodir a esperança numa mudança progressista no quadro europeu, que o Syriza defendia, e determinou rigidamente o curso da política grega para os próximos anos, seja qual for o partido que vá governar. O que se vai passar neste fim de semana é uma pequena agitação no parlamento grego para que ele reflita esta realidade.
Como é que se apresenta o Syriza? Só agora consegui ler, com muito interesse, o programa do Syriza para as eleições de 20 de setembro. Como li num comentário irónico no Facebook, é preciso outro programa para além do 3º resgate? É verdade, foi como o PSD/CDS-PP em 2011.
Por isto e muito mais que se segue, a situação eleitoral grega é um marasmo. Tsipras desbaratou grande parte do seu prestígio e aguenta-se porque os outros são piores e não tem uma oposição forte à esquerda. A intromissão dos media e governantes estrangeiros não se vê. A campanha está morna, apesar do aliciante de captar uma considerável percentagem de indecisos. Não há dramatização, como se vê pelos juros baixos da dívida.
O labirinto
Por fatores objetivos, políticos e económicos, mas também muito por consequências das posições do Syriza (o Syriza de Tsipras), a situação atual na Grécia é um segundo labirinto de Creta. 
Primeiro, as contradições do Syriza. Até 2012, era uma coligação flexível, não centralista, com bom funcionamento democrático interno. Transformando-se em partido, para poder beneficiar do bónus ao partido vencedor (que não abrange as coligações), tornou-se mais rígido, com duas correntes (a de Tsipras, com cerca de 70% de delegados e a Plataforma de Esquerda) e mais centralizado, com maior poder do líder, eleito diretamente pelo congresso e pouco responsável perante o comité central (recorde-se que em toda a governação do Syriza, até à capitulação de julho, Tsipras nunca convocou o CC).
Segundo, também a caracterização política do Syriza é ambígua. O Syriza, nas eleições de janeiro, beneficiou de uma imagem de esquerda radical, a despertar a simpatia e depois, nos meses seguintes, a solidariedade de muita gente europeia de esquerda. Solidariedade merecida pela sua luta na UE, mas que exige ponderação. Se se pensar na corrente majoritária de Tsipras, desde 2012 que havia um desvio deslizante para posições moderadas, que só pareciam manter a chama de esquerda radical por o Pasok se ter convertido e degradado em cogestor do 2º programa de resgate e por toda a social-democracia europeia estar alinhada com o neoliberalismo. O Syriza era uma luz de esperança. No quadro conservador europeu, um partido com um programa genuinamente social-democrata, à anos 50, era uma diferença marcante.
No entanto, de facto, o programa de Salónica, das eleições de 2015, era fundamentalmente de natureza assistencialista (em boa parte levado à prática) e antiausteritária, mas não radical. Por exemplo, não tocava no sistema bancário nem previa nacionalizações. Muito menos previa a saída do euro que, segundo sondagens era rejeitada por larga maioria do eleitorado. Este programa corresponde ao perfll típico de escolha política de um eleitorado social-democrata e, de facto, o enorme aumento de votos do Syriza em 2012 e depois em 2015 não é por transferência da ND nem do KKE mas sim do Pasok.
O nó górdio sempre foi exatamente a questão do euro (e mesmo a da reestruturação da dívida, a que o Syriza só deu importância recentemente), a esbarrar na euforia romântica e obstinada de Tsipras, como se viu na sua campanha para presidente da Comissão europeia. Como se sabe hoje, recusou mesmo o plano de Varoufakis para um sistema bancário paralelo, que nem significava obrigatoriamente a denominação em dracmas das novas contas.
Prometer lutar contra a austeridade mas por conversão dos poderes europeus, sem afrontar a eurolândia, foi estratégia ganhadora para as eleições mas depois perdedora na prática da governação e no confronto com os poderes neoliberais.
O programa e a governação do Syriza assentaram numa série de equívocos. Era seguro que as medidas antiausteritárias e o serviço da dívida exigiam recursos impossíveis no quadro do resgate e, porventura, da permanência no euro. Era a célebre questão do mandato, sim contra a austeridade, não à saída do euro. Simplesmente, como cá, tem muito de quadratura do círculo.
O primeiro erro de Tsipras foi ter considerado que a sua relação com a UE era económica. De facto, o que e UE não admitiu, por princípio, não foi uma ou outra nova medida económica ou qualquer adiamento ou revisão do resgate. Foi a própria existência de um governo de esquerda no sacro império. Por isto falharam as esperanças ingénuas de Tsipras na França e na Itália, alinhadas com o poder hegemónico alemão.
Também a esperança na Rússia foi vã. A Rússia não tem recursos e, no conflito ucraniano, não lhe convém outra frente de tensão com a UE.
Finalmente, o maior equívoco foi inegavelmente o do referendo e do significado poliico e social do campo do não. Discutiu-se muito o acerto da convocação do referendo. Se fosse seguro que Tsipras e o seu círculo (em boa parte de ex-Pasok) desejassem sinceramente o não, tudo fazia sentido: o referendo era, com o resultado que teve, a rejeição firme da política troiana, tendo como fundo, por grande propaganda da UE, a eventualidade de, em consequência, haver o grexit.
Mas não é seguro que Tsipras tenha considerado esse significado dos 62% de nãos. Não faz sentido que, logo na semana seguinte, tenha apresentado a Bruxelas um plano mais gravoso do que o que tinha sido apresentado pela Troika e que Tsipras tinha sujeito a referendo. Muito menos a capitulação do fim de semana seguinte. É novamente a questão já referida da quadratura do círculo. Quando Tsipras afirma que não gosta do plano de resgate e que ele é inaplicável, mas que não há alternativa para salvar a Grécia, está a dizer que não alternativa na sua cabeça e na sua vontade.
A desilusão
Tudo isto conduziu a uma grande desilusão, com reflexos eleitorais. Não se veem sinais de um retorno significativo de votos à origem, o Pasok, nem a ND está a aumentar. Também a Unidade Popular, cisão do Syriza, não parece romper. A grande perda do Syriza de Tsipras parece ser para os indecisos (20%). Como o voto é obrigatório (embora sem efetiva concretização da obrigatoriedade), é possível que muitos acabem por regressar ao Syriza, do mal o menos.
A mesma desilusão e perplexidade no mundo da esquerda. Por um lado, mantém-se a solidariedade com um povo em luta e com o seu governo que, durante meses, afrontou o que de mais reacionário tem hoje a Europa. Por outro lado, a tristeza com a perda de uma referência, mesmo o fator político negativo a nível nacional, como quando se vê, entre nós, a direita a tentar esgrimir Tsipras contra o BE. 
No grupo parlamentar europeu a que pertence o Syriza, a Izquierda Unida e os Die Linke não se pronunciaram; o secretário geral do PCF desculpou e compreendeu Tsipras mas logo a seguir o seu grupo parlamentar votou em bloco contra o plano de resgate na Assembleia Nacional Francesa. Também em França, Jean Luc Mélenchon criticou-o desabridamente. Em Portugal, o BE teve o pretexto da nossa campanha para não participar na grega, mas Catarina Martins acabou por declarar explicitamente que não concordava com Tsipras. Só Iglesias, com a sua ambiguidade e oportunismo, é que continua a dar o abraço ao líder grego.
Com tudo isto, chegamos à demissão de Tsipras e à convocação de eleições antecipadas. Foi coisa muito criticada pelos analistas e pelos eleitores, mas foi uma boa jogada política, do ponto de vista de Tsipras. Viu-se livre dos deputados contestatário da Plataforma de Esquerda e obrigou-os a formar o novo partido (Unidade Popular, UP) que, eventualmente, não ultrapassará a barreira dos 3% para entrar no parlamento. Por falta de alternativa, reforça  sua posição numa coligação possivelmente liderada pelo Syriza. Finalmente, antecipando as eleições, escapa à penalização pelos efeitos do resgate, que só se vão fazer sentir daqui a meses. É legítimo pensar-se que, com as eleições, Tsipras pretendeu legitimar a sua capitulação e retirar significado ao referendo, por esquecimento.
Que cenários? 
A última sondagem à hora em que escrevo (Metron para a Antena News), quando os indecisos já baixaram para 9,7%, dão um empate técnico entre o Syriza (24,5%) e a Nova Democracia, ND (24%), os fascistas da Aurora Dourada 5,4% e o KKE, o Pasok e o Potami cada um entre 4,5 e 5%. Os atuais aliados do Syriza não entrariam (menos de 3%), bem como a UP, apesar de esta já ter estado nuns confortáveis 4%.
Com estes números, e tendo já Tsipras e Meimarakis declarado que o Syriza e a ND não fariam coligação, resta ao Syriza, se primeiro partido e beneficiando do bónus de 50 deputados, procurar maioria com um pequeno partido à sua direita, seja o Pasok seja o Potami, ambos partidos que o apoiarão na gestão do programa de resgate. Não é cenário muito entusiasmante para quem se queira de esquerda. A alternativa, uma coligação com a UP (se esta entrar no parlamento) seria absurda, tão pouco tempo depois da rotura.
O segundo programa de Salónica
Finalmente, algumas notas sobre o programa do Syriza, o novo programa de Salónica. Estranho que esteja a ser tão pouco discutido, podendo interpretar-se isto como desejo de “não bater no ceguinho”. Tendo em conta o que se chamou atrás o labirinto em que se perdeu o Syriza, com as suas contradições, também o programa é contraditório e, principalmente, apologético. Continua a afirmar-se que não havia alternativa à capitulação e, em relação ao centro das negociações com os credores, passa-se a acentuar como limitações de uma política orçamental a dívida e a exclusão do mercado de capitais. No entanto, nada se diz sobre a resolução destes problemas a não ser no âmbito do resgate e, quanto à dívida, apenas com base na posição vaga dos credores registada no anexo.
O programa é de uma no cravo e outra na ferradura. Começo por acentuar, por exemplo, que se propõe um programa governamental ambicioso, de medidas sociais e humanitárias, quando, obviamente, o único programa possível será a aplicação e gestão do 3º resgate. Fico em dúvida fundamentada sobre se o Syriza do Tsipras fraco e eurofilicamente submisso pode “por em prática um programa de libertação do neoliberalismo e da austeridade, iniciar uma radical transformação democrática do Estado, enquanto encontra soluções para mitigar as consequências do acordo”.
Apesar de uma atitude aparentemente humilde, o programa insiste em que não havia solução alternativa para o dilema, quando os bancos estavam sob controlo de capitais, a assistência de emergência (ELA) do BCE suspensa e havia a ameaça de não aceitação de títulos de dívida grega como colaterais. Assim, continua a dizer o Syriza, o dilema não era memorando ou dracma mas sim memorando (quer com euro quer com dracma, segundo Schäuble) ou insolvência desordenada.
Confrontado com questões essenciais – é o pior memorando de todos? acelera um programa de “ajustamentos estruturais” que mantém a pobreza e a crise humanitária? – o programa considera que isto são exageros políticos, embora compreensíveis (o programa esforça-se sempre por ser simpaticamente compreensivo e humilde). Refugia-se na principal alegação de que se foi até ao limite da luta no âmbito da relação de forças na Eurozona. TINA, não há alternativa.
Dá-se também grande destaque a aspetos menores (a relativa vitória do governo grego em relação aos défices primários) ou em relação a questões formais, facilmente ultrapassáveis pelos credores se assim o quiserem: que os credores deixam de exercer poderes coloniais (?), que as condições legais são mais favoráveis.
Surpreendentemente, escreve-se que “sendo um programa duro, há benefícios, embora limitados, para a maioria social e que (…) emerge um grande campo aberto a configurações políticas e lutas sociais em defesa dos salários, dos trabalhadores por conta própria e da propriedade pública, com lutas paralelas pelo sistema de pensões, pelas relações de trabalho, pelo sistema fiscal e pela utilização da propriedade pública”. O Syriza que capitulou é o Syriza que vai enquadrar e conduzir essas lutas?
Em algumas passagens, o programa parece invocar alguns princípios do marxismo e da teoria revolucionária, mas de forma primária. “O caminho para a emancipação social, particularmente em condições de crise, não é fácil e não será curto. Pode ser necessário acelerar ou travar, tem curvas, inversões, becos sem saída, não é linear. Temos de pavimentar o caminho com as experiências dos movimentos sociais e laborais dos séculos anteriores e também com as nossas próprias experiências”. Retórica, porque nenhuma lição se tira no programa do crise de julho.
Da mesma forma, o Syriza desculpa-se referindo que “num certo momento, com um dado balanço das forças políticas, há que fazer um compromisso tático e temporário para se estar em posição de continuar a luta, preservando a possibilidade e oportunidade de vitória”. É incorreto aplicar à Grécia de Tsipras esta formulação leninista, relativa a Brest-Litovski. Então, tratou-se só de ganhar tempo e de garantir forças para uma contra-ofensiva, como se passou. No caso da capitulação de julho, estamos muito mais próximos da conferência de Munique.
Reconheça-se que, no seu capítulo 6, o programa faz uma boa caracterização das dificuldades políticas na Europa real. No entanto, como diz o título “por um rearranjo da balança de poder”, continua a vingar a crença na fada europeia e na possibilidade de resolução dos vícios da Europa a partir do centro e das instituições, para mais dominadas pelo pensamento e pelos valores antidemocráticos do neoliberalismo.
Concluindo,
Depois da vitória de Corbyn, estas eleições gregas parece-me que não trarão nada de bom à esquerda europeia. Serão a consagração da derrota de julho e a escolha de quem vai gerir o programa der resgate. De certa foram, como escreve o Time, “Tsipras e Meiramakis [líder da ND] podem ser perdoados por pensarem que esta é uma boa eleição para se perder”.
NOTA 1 – Escreverei sobre a UP, mas falta agora tempo. Será depois das eleições. Infelizmente, em termos das minhas simpatias, o resultado da UP não será determinante, ou porque não entra no parlamento ou porque, obviamente, ficará em oposição. No entanto, vale a pena uma próxima nota sobre a história e programa da UP.
NOTA 2 – Escrevo “o Syriza” porque assim se vulgarizou em Portugal. Mas, de facto e confirmado por uma amiga grega, Syriza, acrónimo cujo primeiro termo é coligação, é em grego do género feminino. É como se escreve, por exemplo, em Espanha.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

O euro a todo o custo


1. Não tenho escrito sobre a crise grega. Primeiro, porque ainda me parece haver muita incerteza nos tempos próximos. Depois, mais importante, não me agrada estar a comentar uma derrota dos meus amigos infligida pela arrogância ditatorial e imperialista do governo alemão e dos seus lacaios, dominando todo um aparelho político-económico europeu de sustentação do neoliberalismo.
2. Mas também é certo que não houve só um derrotado. O império europeu também o foi, quando ficou demonstrado por todo o mundo que o espírito de união europeia é uma falácia e que o euro é um instrumento de dominação das economias periféricas, mais frágeis, pelos países excedentários.
3. Não deve merecer dúvida alguma que sou inteiramente solidário e empático com o povo grego, com o seu sofrimento, com a sua coragem (não só agora: libertação do Império otomano, resistência ao nazismo, guerra civil). E gosto dos gregos, da queda forma que um turista já duas vezes lá ido se sente quase que em casa. Mármore e calcário.
4. Simpatizo com o Syriza e o governo grego, porque têm personificado uma luta tenaz contra a arrogância do neoliberalismo que enforma o pensamento dominante europeu e que controla a UE. A Grécia é o último campo de batalha na guerra da finança contra a democracia. O governo e o Syriza são heróis gregos. No entanto, não devemos endeusá-los, como muita gente faz, até porque todos os deuses e heróis da mitologia grega tinham muitas falhas. Precisamos de estar atentos a elas, para aprendermos quando chegar a nossa hora.
5. Tenho dificuldade em posicionar-me em relação ao Syriza. Por um lado, é um partido unificado, para beneficiar do bónus de assentos ao primeiro partido, e assume de muitos partidos convencionais um excessivo protagonismo do líder, com muitos poderes. Por outro lado, o atual Syriza mantém as suas correntes do tempo de coligação, sendo principais a Plataforma democrática (70% de delegados ao congresso de 2013), com duas frações apoiantes de Tsipras, uma das quais, o grupo dos 53, com apoio crítico; e a Plataforma de esquerda, composta principalmente por ex-eurocomunistas, mais trotskistas e outros pequenos grupos de extrema esquerda. Destacam-se, nesta plataforma, o ex-ministro Panagiotis Lafazanis, o membro do comité central Stathis Kouvelakis, a presidente do parlamento Zoe Konstantopoulou e o economista e deputado Costas Lapavitsas.
6. Assim, é errado personificar demasiadamente em Tsipras, como se viu nas últimas votações parlamentares e na do comité central, com um número significativo de votantes desalinhados com o primeiro ministro. E é duvidoso que Tsipras exemplifique concessões e procedimentos caros à tradição de esquerda. Casos conhecidos como as declarações nos Estados Unidos, as posições europeias pouco realistas, recuos ideológicos manifestados na sua campanha do Partido da Esquerda Europeia, manobras internas para marginalizar as correntes minoritárias do Syriza, bem como algum mediatismo carismático de líder são frequentemente postos internamente em causa.
7. Nota pessoal. Lá fora e cá dentro, tenho alguma desconfiança de líderes alçados à ribalta, em ondas de mediatização. Sou de tempos políticos de valorização do coletivo. E recordo os muitos casos de “grandes líderes” que povoaram a história da esquerda.
8. Como escrevi anteriormente (ver etiqueta Syriza), o Syriza não tem um programa programático nem uma identificação ideológica. Os seus documentos políticos são elaborados a cada eleição, com destaque para o programa de Salónica, com que se apresentou às eleições que ganhou. Mistura muita coisa. É anticapitalista e antissistémico. Defende fortemente o estado social. Invoca o espírito de classe, mas numa noção nova, mais indefinida e pós-moderna, de classe média. Mais caracteristicamente, e principalmente no que respeita à ala de direita, pró-Tsipras, é um partido social-democrata no melhor sentido, isto é de antes da rendição dos socialistas europeus ao ordo/neoliberalismo. Como retrato geral importante, é um partido corajoso que, como nenhum outro na Europa, mesmo na sua “esquerda”, está a combater o poder instalado. No entanto, distinguindo vários Syrizas, olho com mais simpatia para a Plataforma de Esquerda.
9. Não vou escalpelizar a questão do acordo, até porque faltam dados. Se se pensar só no resgate e no pacote de austeridade, só um cego não vê que o aprovado na cimeira é muito mais gravoso do que o rejeitado no referendo. No entanto, não sei como pesar (e os gregos votantes no não) que agora se trata de um financiamento a três anos e de cerca de 86.000 milhões de euros. Também não sabemos se parte dessa verba e do plano de Juncker podem servir para investimento e criação de emprego, a prioridade do governo (como deve ser entre nós). Ainda, nada se sabe sobre a reestruturação de dívida e nada sabemos ao certo sobre a situação da liquidez da banca e das transações comerciais. Só tudo isto analisado em conjunto é que permite uma opinião final e resultante.
10. Antes de mais críticas ao Syriza, deve-se ter presente uma coisa essencial: se o seu programa fosse mais radical e, por exemplo, tocasse no tabu “grexit”, o Syriza não teria ganho as eleições. Alguns dirão que não há grande vantagem em ganhar assim as eleições. Não sou tão esquemático. Outra coisa é criticar (assim o faz a Plataforma de Esquerda) por muito pouco se ter feito do programa anti-austeridade, ficando o governo enleado por seis meses de negociações para a obtenção de liquidez para pagamento de empréstimos. Nem todas essas medidas necessitariam de recursos financeiros.
11. Estou convencido de três erros fundamentais do governo (ala majoritária): a) subvalorizou a hostilidade da troika e da vontade de “vacinação” do governo alemão e satélites (nenhum governo de esquerda é tolerado na eurolândia!), tendo mesmo idealizado uma suposta simpatia por parte da Itália e França, bem como de parceiros na austeridade (Portugal, Espanha, Irlanda) que, afinal, vieram a ser os mais ferozes antagonistas; b) deixou-se sempre embrulhar na quadratura do círculo dos seus mandatos – rejeitar a austeridade e manter-se no euro – coisa que se veio a mostrar ser contraditória; c) por essa contradição; d) por isto, nunca houve verdadeiramente a preparação de um plano B.
12. Falando de plano B, nem é preciso ter-se só em consideração uma vontade própria de saída do euro. O governo grego não concorda, não se sente com mandato, muito bem. Mas nem tudo está nas suas mãos e, estando totalmente improperado para essa eventualidade, estava improperado para ela aparecer como imposição da outra parte. É como ir a jogo só com metade das cartas. 
13. Que estava impreparado, diz o próprio Varoufakis, numa entrevista ao NewStateman. Sabe-se que um plano destes tem de ser preparado a princípio por um grupo quase secreto, depois alargado, com riscos de inconfidências. Varoufakis propôs, há meses, mas Tsipras recusou, ao que se diz por influência da ala direitista do Syriza, do vice-primeiro ministro Yannis Dragasakis e do ministro da Economia Giorgos Stathakis (ala que ganhou posições na remodelação). Assim, na última cimeira, a outra parte sabia que podia impor ao governo grego o que quisesse, porque este não tinha alternativa.
14. E agora? Não sabem os economistas, muito menos eu. Leio que o plano de austeridade que Tsipras se viu forçado a aceitar e fazer passar no parlamento é catastrófico ou, por outro, inviável e que o fundo das privatizações ou o plano Juncker são largamente insuficientes para cumprimento do programa sócio-económico de Salonica. Dizem-no economistas americanos como Krugman (agora), Stieglitz ou J. K. Galbraith, novamente Varoufakis, até Strauss-Kahn e, surpresa, Tsipras e Schäuble mostram-se céticos. Também leio que o expetável alívio da dívida, sem “haircut”, ficará muito aquém do necessário, como diz o próprio FMI.
15. O próprio Tsipras admitiu que tinha assinado um acordo em que não acredita, mas que assinou para “evitar o desastre para o país, o colapso dos bancos”. Entretanto, a troika já voltou a Atenas, o que o Syriza recusava terminantemente, o FMI vai ser envolvido no resgate mas só se houver reestruturação da dívida, o que a UE não quer, e o acordo de agora é provisório, não sendo certo que as condições do futuro memorando não sejam mais gravosas. Vendo-se ainda que as medidas já acordadas, cortes de pensões, agravamento do IVA, liberalização do mercado de trabalho, não parece haver dúvida de que o não ao referendo foi defraudado.
16. Disse Tsipras que “a dura verdade é que a Grécia foi encurralada numa rua de sentido único”. Não é verdade, porque isto só vale para a posição europeísta do Syriza. Se tivessem querido considerá-las e apresentá-las ao povo grego, como alternativa à asfixia, combatendo de pé, tinham o incumprimento, a reestruturação, em último caso a saída do euro.
17. Talvez agora se perceba por esta corrente de esquerda europeia (Partido da Esquerda Europeia) que a questão do euro não pode continuar a ser um tabu, que é necessário reverem os fundamentos económicos e ideológicos da construção europeia e que, mais prosaicamente, na UE e em particular na zona euro não será permitido qualquer governo ou política de esquerda (ou simplesmente anti-neoliberal), usando-se para isso as vacinas que forem necessárias.
18. Neste quadro, rejeita-se a cumplicidade europeia encapotada do PS, pede-se maior clareza ao BE e alerta-se para o idealismo do extremismo eurofílico do Livre (partilhado pelos outros grupos do TdA?).
19. Não sendo economista, pergunto se o acordo não é recessionista até com custos de austeridade (cerca do dobro) muito maiores dos do plano da troika rejeitado pelo referendo. Se não contribui para a desigualdade, na medida em que incide principalmente em impostos indiretos e em pensões. Se não contribui para o desemprego (já está a haver uma vaga de despedimentos nas minas) e para a emigração de qualificados. Se o plano Juncker, que não é novo e abrange despesas já consignadas, é suficiente para o desenvolvimento.
20. E agora, falando de política? Novamente, só incógnitas. O acentuado desvio à direita (no sentido de relação de correntes dentro do partido, não de esquerda-direita convencionais) depois da remodelação que consequências pode ter na estabilidade do Syriza? Podem chegar a direção e o governo a ficarem em dependência da oposição e, pior, o governo perder a maioria, o que, constitucionalmente, obrigaria a novas eleições? A gravidade das medidas de austeridade, agora da responsabilidade de um governo de “esquerda moderada” que alcançou o poder fundamentalmente com o voto transferido do Pasok, que efeitos de desânimo (nestes eleitores) e de protesto (nos anteriores) terá? Vamos a ver.
21. Voltando à preparação para a saída do euro, esta crise mostrou claramente que ela (preparação) é inevitável, mesmo que a saída do euro não seja uma posição programática imediata. Por exemplo, teoricamente, pode-se defender a reestruturação da dívida desligada da saída do euro. Mas é irrealista, porque qualquer negociação para uma reestruturação ordeira acaba por trazer para cima da mesa a saída. E quanto mais os parceiros souberem que a vemos com relutância ou estamos impreparados, mais usarão esse trunfo, como se viu com a Grécia, para conseguirem condições de reestruturação (no caso grego, de resgate) gravosas e humilhantes.
22. Temos de aprender com o caso grego. Já não temos resgates a negociar mas teremos o de uma dívida insustentável. Vimos que nenhum arrobo de independência, de libertação em relação ao pensamento comum, será permitido. Repito: não se trata de criticar cedências ou erros que o governo grego tenha cometido, mas de aprendermos. 
23. Ao contrário do que aconteceu no caso grego, não é provável que Portugal venha a ter a curto prazo um problema de liquidez do tesouro ou da banca, com riscos de incumprimento ou insolvência. Mas não poderá ter sol na eira e chuva no nabal: ter uma política de emprego e crescimento, a necessitar de recursos, e ter esses recursos inviabilizados pelo serviço da dívida ou pelas metas do Tratado orçamental.
24. Qualquer negociação para a reestruturação da dívida vai ser dura, com atuações inimagináveis (?) ou inaceitáveis por parte dos credores e eventualmente trazendo um lusexit à mesa. Temos de ter um governo preparado para isto, tecnicamente, politicamente e moralmente, com grande apoio dos cidadãos, que não os atraiçoe. É certamente honesto, mas ingénuo, separar a reestruturação da questão potencial da lusexit. Quem defende a primeira pode não defender a segunda, mas não pode esquecer que os outros, à primeira questão, podem trazer a segunda.
25. Sem dúvida que tudo isto está ou devia estar no centro do próximo ciclo eleitoral. PCP e BE: como relacionam reestruturação e eventualidade – livre ou forçada – de saída do euro (do PCP conhece-se a resposta)? PS e Livre/TdA: consideram a dívida sustentável e consideram que ela não inviabiliza a uma política de recuperação da austeridade? Se não, fica a pergunta posta ao BE e ao PCP. 
26. Sabe-se de antemão que alguns partidos tratarão da questão euro com cuidados eleitoralistas. Mas uma coisa é encarar-se uma questão como não desejada, outra como imposta contra a nossa vontade. Se tiverem de negociar a reestruturação e se virem defrontados com a questão do euro, ou se acobardam e se vergam ou incorrem na desonestidade (admito que realista, em termos de real politik) de negociar em termos que tinham negado na campanha eleitoral. 
27. Voltarei a isto. Entretanto, vamos ver o que se passará na Grécia e faça-se a comparação dos próximos ciclos, grego, já em curso, e português.
28. Recordando. A capitulação do governo grego pode ter sido, no fim, uma inevitabilidade, mas anunciada desde a estratégia inicial. A moderação, a repetida proclamação de manutenção no euro, foram boa estratégia para ganhar eleições, tendo em conta o eleitorado. Mas foi desastrosa para uma governação sufocada pelos espartilhos europeus. Demonstrou que é impossível introduzir mudanças radicais num país e mesmo mudanças radicais na Europa e, ao mesmo tempo, respeitar o quadro europeu, político e do euro.
29. Em todo o caso, quem é de esquerda não quererá o derrube do governo Syriza, não havendo para ele outra alternativa de esquerda, mais consequente. O que quem é de esquerda pode desejar é que o governo cumpra o programa do Syriza e, mais especificamente em relação aos tempos recentes, o não no referendo.
30. Em conclusão. Vergonha à União europeia, novo império de conflitos entre os povos, em benefício do capital financeiro, central e neoliberal, atuando com diktats e ultimatos, desprezando os mais elementares fundamentos da democracia. Viva o povo grego. E boa sorte ao governo grego e ao Syriza; que demonstrem que merecem a confiança do seu povo. Senão, que alternativas restam aos votantes no não, para se fazerem ouvir?
NOTA – O Podemos que se cuide. Estou certo de que tudo isto vai ter reflexos nas eleições espanholas. A vaga dos jovens politólogos mediáticos e intelectualmente diletantes talvez tenha sido sol de pouca dura.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

A três meses das eleições

Ler sondagens tende a ser como só ler os títulos da primeira página do jornal. Esta última, do Público, ao contrário da anterior da Universidade Católica, tem merecido o comentário generalizado: PS venceria as eleições, mas sem maioria absoluta. É verdade, mas já não dizer-se que seria por 4,9%, já que a margem de erro da sondagem é de ±3,1%. Nom entanto, já hoje, noutra sondagem, a diferença não é significativa, caindo dentro do erro máximo de amostragem.
Também é verdade que, mesmo que à projeção do PS se some a margem de erro máximo (37,6%+3,1%=40,7%), se fica longe do mínimo necessário, pelo nosso sistema eleitoral, para a maioria absoluta (cerca de 43%). Isto suscita algumas considerações interessantes.
Olhando para o lado direito, existem vários cenários. O mais simples aritmeticamente mas não politicamente seria uma coligação do arco ordo/neoliberal, PS mais a atual coligação. A meu ver, seria suicida para o PS, repetindo o exemplo grego do anterior governo e o que isso causou de desgaste ao PASOK. Além disso, diga-se em justiça, por mais que se critiquem as posições direitistas do PS, ainda vai alguma diferença para a coligação, principalmente nas propostas temperadas de intuitos sociais.
Costa: “E deixou a ideia de que o diálogo será difícil se estes partidos mantiverem as actuais lideranças – deixando a porta aberta para aproximações pós-eleitorais caso ganhe mas só se Portas e Passos saírem de cena.” É outro cenário? Certamente que ninguém o leva a sério, tão imponderável que é.
Outra possibilidade seria a de a coligação deixar passar o programa de um governo minoritário, vencendo o provável voto contra do PCP/PEV e do BE. Não se percebe é que vantagem teriam nisso a coligação e, mesmo em termos de solidez de um governo de tempos difíceis, o próprio PS. A não ser, como também no caso da esquerda, para viabilizar um governo do PS, a celebração de um acordo sem incidência governamental e muito flexível em termos de incidência parlamentar, com linhas gerais de orientação política. Nem para a direita, nem para a esquerda, não estou a ver., mas nunca se sabe, caso a situação s complique. Anote-se que o PCP e o BE podem ser forçados a qualquer coisa do género, para não ficarem mal perante muito eleitorado de esquerda, sem partido.
Uma possibilidade que parece arredada, como se vê por esta sondagem, é a do reforço do PS, por fora, por novos partidos, nomeadamente o Livre/TdA. Os seus 0,5%, abaixo, por exemplo, do PCTP e do PAN, levam-no a um papel irrisório e em nada pesam em qualquer desses cenários. É mesmo de esperar que, numa situação de grande proximidade entre os grandes, haja tendência para voto útil, diretamente no PS e reduzindo o Livre/TdA a um grupo de amigos, cada vez mais alvo de suspeita de oportunismo enquanto não se desmarcarem do PS.
Há também outros resultados curiosos da sondagem. A pergunta “qual é o partido de que se sente mais próximo?”, as respostas são praticamente coincidentes com a sondagem. Isto parece indicar que pesa muito o voto ideológico, a menos que, no centrão, haja movimentações simétricas em relação aos dois parâmetros, intenção de voto e identificação partidária. Por exemplo, a queda enorme na intenção de voto da coligação de 2011 para agora (a comunicação social esquece sempre isto) parece ser mais do que transitória e refletir mudança de identificação.
Muito curiosa é a incongruência entre identificação partidária e intenção de voto, por um lado, e aspirações políticas dos eleitores. As quatro principais expetativas, entre 42,6% e 83,3% (digamos que 60%), são a criação de emprego, o abaixamento de impostos, a recuperação do poder de compra e o crescimento da economia. Claramente uma agenda antiausteritária. Mas bate certo com os números? Admita-se que esta agenda tem o pleno dos eleitores da esquerda e do PS, 54,6% segundo a sondagem. Há então 6 a 12% de eleitores da coligação de direita que apoiam sea agenda?
Também é interessante parecer haver contradição em relação à avaliação do desempenho do governo e da oposição. Enquanto que 37,3% entendem que o país está pior, 21,9% entende o contrário. No entanto, isto não penaliza o governo (a não ser na queda desde 2011), verificando-se até que são maiores as percentagens dos que entendem que governo (40,5%) ou oposição (32%) apresentaram boas propostas em pelo menos metade das situações.
Qual é, provavelmente, o principal fator de voto? A simpatia pessoal. Esta sondagem mostra que os aspetos programáticos, mesmo correspondendo às expetativas de mudança de política, não bastam. O que conta é uma infindável lista de características pessoais-mediáticas. A diferença é de décimas em relação à pergunta “quem tem mais qualidades para ser primeiro ministro?”. Parece que estamos em monarquia absoluta. É a política de hoje.
Finalmente, uma coisa importante mostrada por esta sondagem, e que deve fazer refletir os convergencistas da esquerda ampla, ou aqueles que defendem que existe uma maioria social de esquerda, que é necessário concretizar em maioria política.
Para isso, define-se a tal maioria de esquerda como a soma dos eleitores do PS, do PCP/CDU e do BE. Começa por haver várias falácias. Em primeiro lugar, uma maioria eleitoral é uma maioria política, não uma maioria social. Pode é não ter tradução institucional. Segundo, inverte-se o raciocínio: começa-se, a priori, por definir esquerda como aquele eleitorado, o que é infundamentado, e daí se parte para as referidas conclusões.
Ora a presente sondagem mostra indubitavelmente que, no caso de não haver maioria absoluta, são mais numerosos, embora tangencialmente (36,4%), os que preferem um governo de coligação dos “partidos de poder” – não há dúvida de que a desinformação pega – do que os que preferem uma coligação de esquerda (33,4%). Não são as cúpulas partidárias que não se entendem, é o eleitorado que está crispado. Seria aliás interessante cruzar dados entre esta resposta e a intenção de voto.

sábado, 20 de junho de 2015

Notas simples, sobre a "esquerda"

Falou-se muito nestes últimos dias de sondagens: a coligação de direita tangencialmente à frente do PS (ignorância, trata-se de empate técnico, considerado o intervalo de confiança), o conjunto PCP-BE com respeitáveis 18%, o Livre/Tempo de Avançar vestigial.
Mais do que estes resultados, incita-me ao comentário a sua estabilidade, desde há meses, com uma pequena oscilação a quando da eleição de Costa como secretário-geral do PS. Há dois aspetos importantes a discutir: o centrão e o conjunto de esquerda radical.
Os bem intencionados de uma esquerda idílica teimam em clivar o espetro político-social entre direita e esquerda – muito bem – mas incluindo o PS na esquerda. Não é verdade. O PS posiciona-se na margem esquerda do centrão ou pântano, mas por coisas menores: maior abertura de costumes, maior atenção às causas transversais, maior sensibilidade social, maior solidariedade.
Mas, no essencial, não se destaca do trio que negociou o memorando (na sequência dos PEC), que aprovou o Tratado orçamental e que recusa a renegociação/reestruturação da dívida. A clivagem é esta, para a esquerda consequente. O resto são palavras e intenções piedosas, em catálogos programáticos que ninguém lê.
E nem o Livre/Tempo de Avançar, insignificante, altera esta situação, ninguém acreditando a não ser os seus próprios apaniguados que terá alguma influência no PS, a quem nem sequer podem oferecer a hipótese de o PS formar maioria absoluta.
O centrão, pela última sondagem, vale 75%, quase tanto como à data da assinatura do memorando. Isto corresponde em boa parte aos que acham que a austeridade teve efeitos positivos (40%, um pouco menos do que os 43% que consideram efeitos negativos), mais 6% do que achavam o mesmo há um ano. Alguma coisa não bate certa entre estas opiniões e as opiniões sobre os partidos, dado que esses 43% ultrapassam os 38% de intenção de voto no PS, apesar da sua auto-imagem anti-austeridade. Clarificando: há gente do centrão que vota no PS concordando com a política deste governo. Porque Passos veste melhor do que Costa?
E não falamos todos com eleitores típicos desse centrão, novamente indecisos? Parece que não sofreram suficientemente os efeitos da austeridade. Mais uma vez, vai parecer que se cumpre o aforisma de que as eleições se ganham ao centro. O que se passa no centro é a alternância para a mesma política. Curiosamente, isto é tão reconhecido que 55% dos inquiridos afirmam que a alternância não muda nada.
Sozinho em minoria, com apoio de pequenos partidos, com apoio formal ou não do PSD e/ou CDS, é possível que o PS venha a governar em mais um ciclo de política de direita, de obediência aos cânones europeus, em pauperização. O resultado é a progressiva conscientização dos eleitores do pântano. Se o desgaste for suficiente, teremos a pasokização. Haja tempo e paciência, que a impaciência não é uma virtude revolucionaria.
Entretanto, muita gente desespera com a falta de eficácia prática de uma alternativa – não alternância – configurada pela esquerda radical, com os seus 18%. Há quem julgue distante a meta de uma maioria, olhando para o caso grego. É erro. Em 2012 (primeiras eleições), ainda a esquerda radical grega só tinha 20,5% (8,5% do KKE e 12% do Syria) e a atual maioria deve muito ao bónus de 50 lugares parlamentares para o primeiro partido. Estamos muito longe é de duas situações: o grande descontentamento popular e, consequentemente, a grande transferência de votos de centro-esquerda – mas relativamente radicalizados (o que chamei de pasokização). E, já agora, a capacidade de luta e o orgulho de um povo com um passado histórico de heroísmo.
Diferentemente da Grécia, há que valorizar alguns aspetos: o PCP e o BE têm um bom entendimento na Assembleia da República e convergem em relação ao problema da dívida. Integram o mesmo grupo parlamentar europeu. A leitura dos seus programas para as próximas eleições mostra grandes proximidades.
O problema essencial está no seu divórcio orgânico e de atividade, que também dificulta a mobilização popular. Têm culturas próprias, implantações sociais diferentes, referenciais históricos mais ou menos marcados. Creio que, como aconteceu em Espanha com a Esquerda Unida (e agora com a tentativa desta para aliança com o Podemos), não há razão para que a verdadeira gente de esquerda não considere que é nesta área, e não em franjas do centrão, que, com tempo e determinação, sem oportunismo, a esquerda radical venha a ser a alternativa eleitoral.
Muita coisa mais do que simples aliança dos partidos será necessária. Fica para nota próxima.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A conquista da hegemonia ideológica, condição para a revolução democrática

(Comunicação ao “Congresso da Cidadania. Ruptura e Utopia para a Próxima Revolução Democrática”, Associação 25 de Abril, 2015)
O título deste congresso contém uma expressão pouco habitual: Revolução democrática. A expressão é ambígua. Pode ser, por exemplo, para Piketty, algo de indefinido, idealista, vagamente inspirado na mera vitória do Syriza. Por mim, tomo-a como rotura qualitativa com a situação vigente e não obrigatoriamente de acordo com as normas vigentes. 
Entenda-se que, como sempre que se fala em revolução, não é obrigatório que se esteja a referir uma forma violenta de revolução. O que significa é uma mudança radical da filosofia, organização e funcionamento do sistema democrático.
Não é que não seja positiva uma reclamação mais simples de mais democracia, mas o necessário é uma alteração radical do contexto político, social e económico em que ela actua. 
Embora a democracia não se esgote no Estado, ele é a sua expressão essencial. Em relação à reforma do Estado inserida na revolução democrática, certamente que haverá muitas propostas concretas no outro painel. Agora, preocupa-me mais o poder: quais as constrições a essa revolução, que ideias para as superar, que forças para lutar.
O capitalismo, nesta sua fase de afirmação hegemónica sob a forma de neoliberalismo, apropriou-se da democracia, reduzindo-a um jogo de espelhos em que a cidadania não tem significado real.
A questão central ainda é a do homem unidimensional, ainda mais do que quando trabalhada por Marcuse. Com esquematismo, aceite-se o emburguesamento das classes trabalhadoras tradicionais. A par disto, vem o consumismo, o gadgetismo, a massificação, a publicidade, a aquisição de símbolos de status, a inculturação, a estupidificarão dos lazeres. E imagine-se se Marcuse pudesse adivinhar em 1964 crianças agarradas a jogos electrónicos horas e horas.
A outra ressocialização egoísta é a degradação da democracia. É numa perspectiva gramsciana – admito que curta – que ligo a revolução democrática ao combate à hegemonia ideológica e cultural do neocapitalismo. Digo assim por simplicidade de exposição porque é claro que isto não se isola da dominação política e económica.
Todos sabemos a importância do conceito gramsciano de hegemonia. Segundo ele, o poder das classes dominantes sobre as classes dominadas não reside simplesmente no controlo dos aparelhos repressivos do Estado. Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes dominantes conseguem exercer, através do controle do sistema educativo, de algumas instituições religiosas e, principalmente, dos meios de comunicação. 
Destaque-se, no sistema educativo, o papel de formatação pelas escolas tecnocráticas da área social (economia, gestão, sociologia, etc.), prolongada pela cultura generalizada das empresas.
A regeneração revolucionária da democracia, no processo histórico para objectivos mais distantes, é também um factor de humanização, um aspecto da desalienação pela Grande Recusa que nos propõe Marcuse.
É a luta por uma democracia real, para os nossos tempos.
Uma democracia em que as pessoas são cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas. 
Que garante, harmoniosamente, a separação dos sectores privado e público da vida pessoal. 
Uma democracia que reconcilie as pessoas com a política, com combate duro contra a corrupção e a promiscuidade política com os negócios. 
Que promove a libertação da ditadura das verdades feitas.
Questão central é de saber se uma revolução democrática é possível sem a alteração do sistema económico. O 25 de Abril é um bom exemplo. Num jogo de forças pouco definido, com divisões até no próprio MFA, a fase até ao 11 de Março não cria a base de poder necessária e suficiente para uma democracia avançada.
No entanto, parece-me que a discussão sobre revolução estrutural e revolução socialista pode ser minimamente separável, deslocando a questão do poder mas sempre sem a omitir. 
A ordem democrática, como toda a ordem política, faz parte do sistema estrutural que serve o poder económico. Como não se vislumbra no tempo de uma geração a derrota do capitalismo, a revolução democrática exige o poder mas, ao mesmo tempo, confronta-se com a dificuldade de esse poder ser obrigatoriamente limitado. As classes economicamente dominantes não ficarão indiferentes. Veja-se, por exemplo, as campanhas ferozes na América latina contra os governos progressistas e os partidos que os suportam.
O bloco histórico constituído em torno da oligarquia neocapitalista ainda hoje domina a intelectualidade orgânica do bloco democrático. Esta, sem desprimor para muitos casos, remete-se muito para a propaganda tradicional ou o “esclarecimento” de há décadas. 
Não entusiasma, não mostra novidade e, assim, ainda não ganhou para o “novo” bloco histórico as largas camadas objectivamente anticapitalistas (trabalhadores, reformados, desempregados, jovens que nunca acederam ao mercado de trabalho, minorias, etc). 
Muito menos lhes facultou meios de informação e reflexão sobre uma revolução democrática. Entretanto, a vida política reduz o eleitor a um papel pendular, votando sobre questões conjunturais ou, pior ainda, por questões de marketing ou clubismo partidário.
O capitalismo neoliberal não oferecerá uma nova democracia. Pelo contrário, cada vez mais reduzirá a que temos, como instrumento autoritário para sujeição das classes trabalhadoras à chamada desvalorização interna. 
O outro lado da questão é a luta. Temos de a perseguir, mas ainda com muita coisa em aberto: que forças sociais se podem mobilizar? quais as tensões dialécticas que se porão em jogo? qual o papel de partidos ou de outros agentes políticos?
A luta política tradicional com objectivos quantitativos é indiscutivelmente importante, mas não concentra o foco no essencial: o combate ideológico à hegemonia do capitalismo neoliberal, ao “pensamento único” e à alienação dos cidadãos pela “ordem natural das coisas”; e a reconstrução da democracia, como expressão efectiva da cidadania nos nossos tempos, de pessoas com recursos tecnológicos, comunicacionais e informativos até há pouco inimagináveis. 
Hoje, com posições ideológicas, políticas e económicas extremadas, principalmente na Europa, as forças mais conservadoras conseguiram que uma larga maioria dos cidadãos aceitasse como senso comum, acriticamente, a sua “ordem natural das coisas”. É um facto que não devemos esconder.
Um projecto revolucionário de transformação do sistema democrático defronta-se com grande resistência e exige uma ampla frente democrática, forte e principalmente estável. Mais uma vez, a revolução do 25 de Abril nos serve de lição, com o seu refluxo contra-revolucionário em grande parte às divisões que se instalaram entre os militares de Abril após o 11 de Março.
É manifesto o desejo dos eleitores de unidade política de esquerda. Para fugir à ambiguidade da categoria esquerda, hoje, aproveito o título deste tema, unidade para a revolução democrática. Não me parece que seja abusivo, porque não creio que uma nova democracia, nascida revolucionariamente, não venha acompanhada por um conteúdo de verdadeira esquerda, no plano económico, social e cultural.
Na prática, e para além de idiossincrasias partidárias, a unidade tem estado muito condicionada por factores conjunturais que não dizem directamente respeito à revolução democrática: a posição em relação à União Europeia, a questão da dívida, a defesa do estado social de bem-estar. 
No entanto, tenho para mim que as novas atitudes dos eleitorados europeus, a congregar quase espontaneamente vontades unitárias, não se justificam tanto por essas matérias. Antes por um sentimento de desgosto do eleitorado, alimentado pelos vícios da democracia representativa, pela partidocracia, pelo carreirismo político, pela promiscuidade de relações entre a política e os negócios.
A situação é paradoxal e de difícil resolução. 
Primeiro: os problemas de política concreta que referi seriam de mais fácil resolução num novo sistema democrático, com um poder externamente forte e com grande legitimidade interna. 
Por isso, segundo: parte da chamada esquerda em sentido lato poderia ser pressionada pelos eleitores a um esforço unitário com base no seu desejo de reaproximação à democracia, a uma nova democracia, em vez de políticas concretas que eles não percebem. 
Mas, terceiro: a rendição do centro-esquerda à ideologia e prática neo-liberal, desloca-o para uma área de pântano que está bem instalada na democracia que temos, e a aproveitá-la bem.
Para terminar, e pela importância da comunicação social como instrumento ideológico, deixo algumas questões concretas, como provocação ao debate sobre o controlo democrático da comunicação social.
1. Com o jornalismo em papel ou “online” ainda inacessível a muita gente, destaca-se o papel da televisão (creio que menos o da rádio, a não ser para os condutores de automóvel…). A forma mais frequente de intervenção política televisiva entre nós é o “comentarismo” (nem sequer é análise, como se dizia). Premeia-se o amadorismo e a pouca seriedade de figuras populares sem qualificação política. Com tudo a defraudar o cidadão, alienando-o numa atitude de espectador de política espectáculo.
2. Como se garante um canal público não generalista com programas de grande qualidade e com análises rigorosas e aprofundadas?
3. A entidade reguladora cumpre a função de defesa dos cidadãos, de garantia do rigor e da isenção? A sua composição e modo de designação são adequadas?
4. Deve poder ser atribuído a sectores político-partidários ou sociais um canal público de sinal aberto? Com que garantias de equidade, responsabilidade e isenção em relação aos poderes, em particular o governo e os executivos regionais e autárquicos?
5. Da mesma forma, pode haver um jornal público “online”, garantindo-se o que se acabou de dizer?
Em conclusão
Em muitos aspectos, e observando-se mudanças sociais muito aceleradas, não há ainda resposta precisa para essa tarefa. É um processo de reconstrução que se vai fazendo, necessariamente com desdogmatização do que nos tem sido imposto como pensamento único. 
O que deixo são apenas algumas posições de princípio, mas tendo em conta que
  1. num terreno ainda pouco desbravado e dominado por esquematismos, exige-se a articulação eficaz entre reflexão e debate teórico, e a validação pela acção política. 
  2. as ações de defesa dos interesses materiais e sociais dos trabalhadores, reformados e desempregados são inseparáveis da consciencialização e da acção para a revolução democrática.

domingo, 24 de maio de 2015

Ensaio sobre o Syriza – II. A dinâmica e e as contradições

O que explica que, numa época de domínio político e ideológico da direita neoliberal, um partido de esquerda radical como o Syria – assim se auto-define – passe de 4,6 para 16,8% de votos em 3 anos, para 26,9% em um mês e depois para 36,3% nos 3 anos seguintes? E o que explica, para além do cerco imperial europeu, que tal apoio popular não faça sair o Syriza e o governo grego da armadilha em que estão presos?
Em primeiro lugar, a força ilusória que lhe vem da sua fraqueza, com um programa ambíguo que atrai transversalmente muitos eleitores descontentes com as alternativas (ou alternâncias). Mais dia menos dia, passar-se-há o mesmo em Portugal, devido àquilo a que tenho chamado a pasokização do PS. Sobre os programas, escrevi em artigo anterior.
Neste, abordo a dinâmica da acção do Syriza, o seu discurso, o seu enquadramento na esquerda grega e europeia, os desafios ao pensamento moderno da esquerda.
1. A origem e natureza do Syriza
Anote-se alguns factores determinantes do percurso  do Syriza: a existência de um partido forte “à esquerda do Syriza, isto é, o KKE; uma atitude menos radical do Syriza em relação à questão europeia e à divida e mesmo não radical de todo em relação ao euro; a relativa novidade do Syriza; a maior capacidade do Syriza para levar à política gente dos movimentos populares, em parte, como diremos, pela ação da sua “linha da solidariedade”.
Comecemos também por lembrar a história e composição do Syriza, a partir da coligação Synaspismos. Esta foi constituída no fim da década de 80, numa época em que o movimento comunista grego ainda sofria da cisão pós-crise checa, entre KKE-exterior, pró-soviético, e partido do interior, eurocomunista. O Synaspismos integrou, por tempo curto, o KKE-exterior, a Esquerda grega – o grupo mais forte da cisão eurocomunista do interior – e uma dissidência social-democrata de esquerda, o Partido da Social Democracia.
Pouco depois, com o colapso do mundo soviético, o KKE expulsou a sua corrente não radical e abandonou o Synaspismos, que, em contrapartida, absorveu um partido ecologista de esquerda, AKOA, e, nas eleições de 2004, outros pequenos grupos de esquerda radical ou social-democrata de ala esquerda, como o Movimento da esquerda unida na acção (KEDA), a Esquerda internacionalista dos trabalhadores, trostsquista (DEA) e outros.
Actualmente, o Syriza é um partido unificado, mas com correntes reconhecidas: Unidade de esquerda, socialistas democráticos, apoiantes de Tsipras (N. A. – Varoufakis não é membro do Syriza, o que deve ser uma surpresa para muitos portugueses), com 51% de votos no congresso de 2013; Corrente de esquerda, eurocomunistas e eurocéticos, de que se destacam Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, com 30% de votos; Ala renovadora, com 17%, também eurocomunista mas apoiando as posições de Tsipras e companheiros.
Por sua vez, a Corrente de esquerda também inclui uma apreciável diversidade de grupos e opiniões: eurocomunistas, dissidentes do KKE expulsos em 1991 e que se mantiveram no Synaspismos; três grupos trotskistas, Kokkino, DEA e APO; um grupo de esquerda dissidente do PSOK, DIKKI; e uma organização sindical, KEDA, em rotura com o KKE. Esta corrente tinha tido grande influência na relativa radicalização do Syriza, sob a direção de Alékos Alavános, entre 2004 e o congresso fundador do partido, em 2013, no qual, ironia, é Alavános quem propões Tsipras para líder do novo partido unificado.
A seguir voltaremos à questão da pluralidade ou unicidade. 
2. Uma situação comparável?
É importante um exercício de análise comparativa. Muitos são, em Portugal, os entusiásticos apoiantes do Syriza que não conseguem explicar o sucesso eleitoral do Syriza e a estagnação do KKE. Ao mesmo tempo, e por causa disso, não conseguem perceber o que faz falta, em modos de Syriza, ao PCP e ao BE. Muito menos explicam que o PS se mantenha imune à Pasokização, não sendo completamente justificativo que o PS não esteja no governo – porque, no essencial, mesmo com as últimas propostas, está a léguas de ser uma alternativa antiausteritária.
É interessante comparar o percurso e sucesso do Syriza com partidos próximos, nomeadamente a IU espanhola. Muito os aproxima, em história, programa, conceções organizavas e prática política, exceto no sucesso eleitoral. Como já escrevi aqui são dois partidos irmãos. O mesmo se passa com o BE mas não, obviamente, com o PCP, afim do KKE.
Não vou entrar por discursos subjectivistas sobre o espírito português ou grego, sobre a brandura dos nossos costumes, sobre o orgulho dos filhos dos pais da democracia. Importante é estudar a dinâmica política que, para além dos programas que analisamos há dias, ou em articulação com eles, gerou uma fortíssima sintonia de vontade popular e de acção política partidária e governamental.
Um factor de situação política geral é a relação (inversa em relação a nós) entre os dois componentes da esquerda não social-democrata. Na Grécia, como vimos, o KKE e o Syriza actual começaram por juntarem forças, o que nunca aconteceu, eleitoralmente, com o PCP e o BE. Depois, o KKE não ganha força à conta do Pasok, o que acontece com o Syriza, por razões que analisaremos. Em Portugal, não se desenvolveram essas razões e manteve-se invertida a relação de força eleitoral entre os dois partidos de esquerda radical, PCP e BE.
A analogia Syriza-BE também é possível noutro aspecto, salvaguardadas as diferenças de escala: forte componente de membros jovens de camadas pequeno-burguesas intelectuais e técnicas e fraca implantação sindical, com pouca ligação ao mundo do trabalho. Mas, em contrapartida e diferentemente do par PCP-KKE, maior abertura aos movimentos populares e às causas transversais, mesmo que com algum “folclore politico”.
Uma diferença considerável entre o Syriza (ou o BE em Portugal) é a sua opção por configuração de partido, ao contrário da Esquerda unida (IU), que se mantém como coligação (por exemplo, a IU tem como coordenador Cayo Lara, comunista, mas o secretário-geral do PCE, membro da IU, é outro comunista, José Luis Centella.
A esquerda moderna não comunista parecia vir a privilegiar a natureza de movimento, difuso e organicamente flexível. Não foi a via escolhida pelo Syriza, ao passar de coligação a partido. Que importância terá tido isto, numa situação geral em que, como no caso da IU, parece adquirida a ideia de que a segmentação é um problema insolúvel, e em que até o Podemos, iniciando-se na águas movimentalistas do 15 de maio, pratica hoje um forte centralismo em torno de Iglesias e o seu grupo de amigos universitários?
Esse balanço no Syriza entre pluralidade e unicidade é único e ajuda a compreender a capacidade de resistência que o Syriza está a revelar. Mesmo que haja vozes no interior a clamar contra manobras conformistas da corrente maioritária, não é concebível que tal diversidade garanta uma vida partidária que não seja fundamentada numa cultura de pluralismo de ideias e de diálogo politico, de que não temos exemplo em Portugal, a não ser, reduzidamente, no BE. Há em Espanha, na IU, mas outro factor, que agora não podemos abordar, a emergência de algum populismo e do Podemos, faz com que a IU não tenha tido o percurso de sucesso do seu partido-irmão Syriza.
3. Dinâmicas e contradições
A principal contradição no Syriza, que já abordamos, está na radicalidade do seu programa político geral, a corresponder à grave “crise humanitária”, e no recuo progressivo do seu programa económico-financeiro, em particular no que respeita ao quadro europeu. Até que ponto a vitória do Syria se deve à passagem da radicalidade para o realismo?
A “crise humanitária” domina a situação política grega e não tem comparação com o que passamos. Maior desemprego, muito mais gente abaixo do limiar da pobreza, cortes acentuados nos salários (com destaque para a função pública) e reformas, despejos, cortes de energia, falta de assistência de saúde (os desempregados não têm direito a SNS), etc.
O programa de Salónica, com que o Syriza concorreu às eleições de 2015, dá prioridade ao combate à crise humanitária: 1. Eletricidade gratuita para os 2/3 das famílias mais pobres. 2. Programa de abrigos para os sem.teto. 3. Pensão mínima de 700 € (N. A. – mais do que o nosso salário mínimo). 4. SNS universal. 5. Cartão de subsídio (vale) aos transportes. 6. Eliminação da taxa sobre os combustíveis para aquecimento. 
O segundo pilar de medidas visa o relançamento da economia: cobrança das receitas fiscais em atraso, apoio às pequenas e médias empresas, eliminação das penhoras ilegais e suspensão das que incidem sobre pessoas sem rendimentos, criação de um banco de desenvolvimento público e de um "banco mau" para limpeza da banca parasitária e do crédito vicioso.
O terceiro pilar é o da criação de emprego. Apoio ao mundo do trabalho, fortalecimento da sua capacidade negocial, reposição do quadro legal suprimido pelo memorando, salário mínimo de € 751 para todos, restabelecimento de contratos colectivos, proibição de “layoffs” maciços projecto de criação de 300.000 empregos nos setores público, privado e social da economia.
No essencial, é a quadratura do círculo: política antiausteritária mas manutenção da rede de dependências financeiras e do quadro europeu. Mesmo assim, tem a oposição total da Alemanha e das outras instâncias europeias, para que basta um pequeno gesto de firmeza para dar o murro na mesa. 
Será esse desejo de quadratura do círculo cinismo e oportunismo? Dê-se o benefício da dúvida. A corrente moderada ou "realista", encabeçada por Tsipras, parece honestamente querer simultaneamente o fim da austeridade e a manutenção no euro. É o tal círculo quadrado, mas aparentemente o que o povo grego (e português) quer, embora mais atenuadamente – 72% antes das eleições, 52% em sondagem do princípio deste mês.
Imagine-se como a idêntica contradição entre o recém-proposto programa do PS e a falta de bases do programa económico-financeiro ainda é mais irresolúvel, quando a posição ideológica do PS é de alinhamento fervoroso com a ordem europeia.
4. Como se situa o Syriza em referência à esquerda?
Apesar desse possível desvio do Syriza, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
De qualquer forma, e como em toda a parte, há sempre grande ambiguidade nas palavras. Ainda há três décadas, o mundo de esquerda era comunista ou social-democrata, embora, a partir da Checoslováquia de 1968 e, antes, de escolas marxistas ocidentais (Frankfurt, New Left ou de inspiração gramsciana), germinassem novas ideias naquela fenda.
Apesar desse possível desvio, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
O que é esquerda? É esquerda, para mais não dizer, todo um vasto campo político e ideológico que faz suas as lutas sociais e de progresso e que se interroga. Sobre a estrutura de classes, hoje, e a luta de classes como motor histórico. Sobre a radicalidade destruidora da luta anticapitalista e sobre o oportunismo da visão do socialismo como gestão “avançada” do capitalismo. Sobre os limites da esquerda radical, num quadro político essencialmente dominado pelo eleitoralismo. Sobre as novas causas transversais e planetárias, como a paz, o ambiente, a luta contra a globalização, a qualidade de vida, os direitos das mulheres e minorias, os direitos democráticos e o socialismo, a concepção de partido como espelho perante a sociedade dos valores culturais e éticos que diz defender, etc.
Esse questionamento definidor da esquerda foi facilitado, como na Grécia ou na Espanha, pela pluralidade no movimento comunista. Nem sempre deu bom resultado, como se vê em Itália, lamentavelmente num país de tão rica tradição teórica marxista. 
Em Portugal, não foi possível, porque a cisão no PCP foi tardia enquanto organizada (só depois do golpe de Moscovo de 1991) e pouco expressiva, só depois se tendo formado um novo partido, pouco expressivo, o BE (os quase 10% de votos e 16 deputados de 2009 foram conjuntura efémera). Muito desse percurso português se deve à resistência e qualidade política inegáveis de Cunhal e seus companheiros próximos, mas não só. Quando hoje se fala no enquistamento defensivo do PCP mas, ao mesmo tempo, na sua capacidade de enquadramento de lutas, principalmente sindicais, seria bom estudar comparativamente o percurso do Syriza, mesmo descontando que o PCP, como o KKE, não aceita o exemplo de um partido “social-democrata”. 
É o Syriza (euro)comunista ou o renascimento da genuína social-democracia destruída pelo Pasok? Não sei mas, pela definição que adotei, não tenho dúvidas de que é de esquerda.
5. Realismo e radicalismo
A componente assistencial e humanitária do programa do Syriza acentuou-se até Salónica. Em contrapartida, como vimos, esbateram-se as posições de política económica e financeira. À medida que se vislumbrava um sucesso eleitoral, a direcção do Syriza passou a adoptar uma postura mais moderada. Ficou apertado entre os críticos de direita que continuaram a considerá-lo como um partido de esquerda radical e inaceitável para os padrões europeus, e os críticos de esquerda (mesmo no interior – Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, Stathakis), que acusam a direcção de preocupação excessiva com a imagem de “partido respeitável” (Nota – ler Stathis Kouvelakis, 2013). 
Mais recentemente, tomou peso o protesto de um grande grupo de deputados contra o primeiro acordo com “as instituições”, em que se destaca o até então apoiante de Tsipras, economista-chefe do partido e autor do programa de Salónica, John Milios, agora co-autor de um texto devastador de crítica ao acordo. Felizmente, o Syriza é muito longe de ser só Tsipras e longe de ser monolítico.
Às posições programáticas associaram-se as atuações práticas do Syriza, com apoios aos desalojados, postos de assistência médica e outras ações de voluntariado. De partido de protesto (“linha da resistência”), passa em boa parte a intervencionista em ações assistenciais, ao mesmo que se demarca de todas as ações violentas de rua ou que lhe pudessem alienar apoios de classes médias ordeiras e conservadoras (“linha da solidariedade”)
Esta linha, adotada logo a seguir às eleições de 2012 – granjeou grande prestígio ao partido. Um dos exemplos notáveis foi o dos bancos de medicamentos organizados pelo componente Synaspismos do Syriza. Com isto, também se ocupou militantemente grande parte dos novos aderentes, cerca de 35.000, preenchendo uma lacuna de falta de militarismo do Syriza em comparação com o KKE (e BE com o PCP, em Portugal).
Vai-se também adaptando o discurso, que alguns acusam de ambíguo. Um discurso centrado no líder, “de cima para baixo”, dirigido a uma audiência nacional, transversal, mas modulado consoante os públicos: mais radical e lírico quando dirigido ao seu eleitorado tradicional e ativistas, mais sóbrio e pragmático quando dirigido aos seus novos eleitores ou potenciais apoiantes. Transforma-se progressivamente em partido “catch-all”, no sentido Kirchheimer.
Como analisa Federico Sternberg, do Real Instituto Elcano, Syriza, tal como Podemos, “cresceram exponencialmente durante a crise porque souberam canalizar o descontentamento dos cidadões (ups!…) com os partidos tradicionais. Suavizaram o seu discurso, porque “querem governar e sabem que não se ganham eleições a partir da radicalidade (N. A. – não é bem verdade; lembre-se a ascensão eleitoral do nazismo), neste caso de esquerda. Moderaram-se para captar votos de todo o espetro esquerda-direita. (…) Estão competindo para ser o partido social-democrata de referência”. 
Mesmo no interior do partido, dizem analistas da sua corrente esquerda – que criticam a imagem do Syriza como “partido respeitável de governo” –, o sucesso eleitoral de 2012 causou uma dinâmica contraditória. Assistiu-se a uma grande vaga de inscrições, incluindo de operários até antes mais influenciados pelo KKE ou pela central sindical pasokiana, mas isto reflectiu-se numa atitude de passividade em relação à direcção carismática e à dinâmica de correntes, por muita nova gente abalada com a crise e desanimada durante anos com o sistema partidocrático dual. 
Não custa a imaginar tal evolução num PS que tivesse tido uma vitória eleitoral com conquista no centrão e com reforço da sua ala social-democrata, em vez de singrar por uma via pasokizante. tanto mais que o PS já é de há muito um partido “catch-all”.
Mas colocar a solidariedade antes da conflitualidade resulta, para a esquerda radical tradicional, numa imagem de “partido remédio da crise” que, fora isso e o desvio troikiano do Pasok, não distinguiria o Syriza do velho Pasok social-democrata. Já agora, de muita coisa do PS português no recente catálogo programático em contradição com o documento económico-financeiro dos 12.
Tal como um pouco por toda a Europa, procura-se atingir a maioria parlamentar por apelo a uma amálgama de opiniões e aspirações de diferenciadas camadas da pequena burguesia ou das classes médias que reflecte hoje a hegemonia ideológica do capitalismo: pessoas relativamente conservadoras, de idade média considerável, com meios imobiliários embora a crédito, com atração pelo consumismo, sujeitos a grande alienação pela comunicação social. Muito importante, pessoas que, tendo sofrido fortemente com a crise, são firmemente opostos à saída do euro (cerca de 70% na eleições de 2015, mas, notavelmente, pouco mais de 50% há dias, depois do longo e vergonhoso conflito com as “instituições europeias”).
Mesmo atendidas todas estas reservas, era vital para a Grécia ter um novo governo que a libertasse do garrote do memorando e da troika, bem como capaz de proceder às verdadeiras reformas estruturais (luta contra a corrupção, contra a fuga ao fisco, pela modernização e eficácia da administração pública). Neste sentido, bem precisaríamos nós de também ter um “partido remédio para a crise”.
O resultado essencial da dinâmica criada pelo Syriza desde 2012 foi ter colocado entre a esquerda europeia, em termos concretos, a questão da tomada de um poder de estado alternativo. Teria sido possível na via exclusiva da radicalidade de esquerda ou foram necessários compromissos com receios e valores de sectores sociais mais recuados? Teria sido possível a conquista do poder por outra via? Ou, pelo contrário, para voltar a velha questão, o Syriza, conquistando o governo, terá conquistado o poder? No que se refere ao seu grande contendor nessa luta pelo poder, Alemanha e demais Europa/BCE/FMI, é cedo para se dizer.
Citei analistas que criticaram o centralismo circum-Tsipras que se gerou depois de 2012 e que foi bem visível na sua campanha para presidente da Comissão europeia, em 2014. Se pensamos em Iglesias e até Garzón, em Espanha, talvez seja isto indispensável em política (ganha quem comunica melhor). Mas é verdade que, mesmo assim, o Syriza chegou unido às eleições de 2015, constituiu governo representativo das suas correntes e tem mostrado grande solidariedade interna. Lembre-se o bloco de medidas iniciais constantes do plano humanitário do programa de Salónica, aprovadas com grande irritação dos “parceiros” europeus, bem como a firmeza com que todo o governo traçou linhas vermelhas respeitantes aos salários e às reformas.
6. O europeísmo utópico
Também vai ser instrutivo estudar outra questão, a do internacionalismo, agora em termos diferentes dos da época da 1ª Guerra e, na URSS, no conflito entre Estaline e Trotsky. No quadro europeu de hoje, com o euro a aprisionar os países em relações imperialistas que deixaram descaradamente a luz as promessas de solidariedade e de convergência, é viável a luta do governo grego fora de uma política geral europeia ou exigirá a convergência de políticas europeias dos vários países, específicas? E pode-se esperar por isso?
Por outro lado, mesmo a contemporização europeíza do Syriza não o afasta da atitude de luta, como se tem visto desde que formou governo. Está longe da submissão da social-democracia, inclusive a portuguesa. Se o discurso se tem vindo a suavizar, não deixa de ser muito firme no contraponto antiausteritário e, principalmente quanto à Europa, na denúncia do défice democrático, dos poderes oligárquicos, da exclusão social e da crise humanitária. Segundo Tsipras, que coloca o acento na mobilização e participação populares, “uma alternativa se oferece à Europa: ou persiste no impasse neoliberal ou faz a escolha da democracia”. 
É certo, mas é pouco, Com todo o respeito e solidariedade com a luta heróica que o governo grego e o Syriza estão a travar, preferia ouvir ir-se mais longe no caminho da destruição desta ordem europeia muito mais do que naquilo que os europeístas criticam: ir-se também para o derrube da sua ordem político-económica.
Mesmo tendo em conta todas as dificuldades disso, o Syriza não apresenta claramente nenhum projeto de ultrapassagem do capitalismo, sobretudo no espartilho orçamental e institucional da zona euro.
7. Para reflexão teórica atenta à evolução do Syriza e do drama grego
A terminar este artigo, a que se seguirão outros, uma questão importante de prática política a que não é alheia uma visão teórica, dialética. Na actual correlação de forças, é viável a conquista de poder, num passo revolucionário (o que não quer dizer obrigatoriamente violento) pela esquerda radical, ou isto pode verificar-se por uma sucessão de conquistas (entenda-se também: não necessariamente reformistas) a abrir brechas na hegemonia do capitalismo, hoje neoliberal? É uma pergunta no cerne de velhas discussões do movimento operário e dos trabalhadores.
Não é que só se possa defender a oposição absoluta de via parlamentar e de via insurrecional, que podem compatibilizar-se por escalonamento de ambições políticas, desde que tendo sempre em mira, à distância, o derrube do capitalismo. O contrário seria fazer o jogo do inimigo. Não havendo condições objetivas e subjetivas para o seu derrube, o “purismo” revolucionário é uma atitude de expetativa passiva ou de simples resistência que pode deixar tudo na mesma.
Seja qual for a resposta, a política, programa e ação do Syriza e do governo grego aquecem, mesmo com contradições e limitações, as expetativas de muita gente dos povos europeus. No que nos diz respeito, Portugal não é cópia da Grécia nem de qualquer outro país, mas precisamos de ser solidários, aprendermos em conjunto, contra o poder unificado e hegemónico da central europeia.
Mas exemplifica o Syriza uma perspectiva dialeticamente fecunda de articulação entre a luta de classes, tradicional, personificada como seu agente num partido de esquerda radical, por um lado, e, por outro, o compromisso com a luta eleitoral, com a sua especificidade e cedências? Ou trata-se de oportunismo, o que parece estar a ser desmentido pela firmeza e coerência do confronto com os seus “parceiros”?
Não me parece que haja ainda respostas mas, mesmo em termos teóricos, mais especificamente de reflexão ideológica sob o ponto de vista marxista, são tempos fascinantes.
Um dos principais pontos em aberto é o teste prático ao europeísmo que é forte no Syriza mas que também contamina outros partidos da esquerda europeia; em Portugal, moderadamente, o BE e, extremamente, o novo LIVRE. Aonde leva a crença religiosa nas instituições europeias, nos seus fundamentos democráticos, no projecto de solidariedade dos povos em vez da solidariedade dos interesses capitalistas e imperialistas, com uma grande fronteira que já divide as duas Europas? Veremos, mas desde já o povo grego parece estar a abrir os olhos. É tema para próximo artigo.
Para já, termine-se com uma nota positiva, colhida de uma entrevista a Panagiotis Lafazanis, ministro da Reconstrução da produção, do Ambiente e da Energia, e presidente da Corrente de esquerda do Syriza: “Syriza não será um capataz do capitalismo grego neoliberal. A sua alma é a sociedade e a necessidade de uma reconstrução progressiva do país com um horizonte socialista”.