quarta-feira, 30 de maio de 2012

A esquerda (IV)


Concluindo esta série de entradas sobre um novo partido, resta o mais difícil, a proposta programática em relação ao assunto crucial, a crise, o compromisso com a troika, as alternativas (o que pode ser estultícia, "devendo-me"  ficar prudentemente por coisas que não são os dogmas da religião neoliberal). Essencial: um partido que diga que está aberto à discussão de tudo, por mais heterodoxo que o tudo pareça, já é diferente.
Como prólogo e exemplo, pego naquilo que, como disse há dias, um amigo meu adiantava como impossibilidade de programa diferente de um novo partido: “onde vão buscar o dinheiro?” Sem ofensa, o meu amigo parece-me estar limitado a pensar num quadro estreito e condicionado. Claro que, no atual pote de dinheiro, com pequenos potes nacionais, parece ter razão. Mas não se pode criar mais dinheiro, à escala do espaço do euro? Claro que sim, nada teoricamente impede o BCE de emitir moeda. É certo que isto, se demais, significa inflação, mas o balanço de inflação, crescimento, competitividade, desvalorização, dívida, é um conjunto dinâmico que foge ao esquematismo dos ideólogos e economistas neoliberais.
Acresce que o risco de inflação (porquê o máximo de 2%, como se a economia fosse coisa rígida, em ordem de parada?) faz tocar as campainhas pavlovianas dos alemães lembrando a enorme inflação pré-hitleriana.
Mas isto é científico ou ideológico? Podem ter os EUA emissão notória de moeda (até para monetarização da dívida pelo Fed) com inflação de 2-3% e a Europa não pode? Pode o Fed fazer “quantitative easing”, a segurar os cerca de 9% de défice orçamental - o triplo do autorizado na UE - e o BCE (ou o BdP) não?
Estou a falar de emissão de moeda pelo BCE, contra o dogma. Mais adiante falarei de emissão de moeda pelos bancos nacionais. Não comecem já é a dizer que é impossível. 
Eu não digo que deva ser assim, não sou especialista, mas quero discutir, não aceito de barato os dogmas dos outros e quero que um novo partido promova essa discussão.
A segunda questão tem a ver com os ensinamentos da prática, com a validação experimental das teorias. Ao que sei, toda a experiência de intervenções do FMI é negativa. A das troikas ainda vai mais longe no austeritarismo e é indiscutível já que gera uma espiral recessionista. Por este lado, já não há o benefício da dúvida sobre os efeitos nefastos, pese embora a fé mística dos gaspares na fada do regresso da confiança dos mercados. As previsões falham uma atrás da outra, a Grécia já precisou de segundo resgate e de uma envergonhada reestruturação da dívida (controlada pelos credores). Ninguém se atreve a dizer que não se passará o mesmo com Portugal.
Dizem os austeritaristas que não há alternativa e riem-se quando se fala na Argentina, por exemplo (mas também há o Equador). Dizem que o argumento de demonstração empírica, que joga contra eles por força do FMI, não vale, porque ainda não foi demonstrado que a receita oposta - a que eu aqui defendo - resulte. Claro que resultou naqueles países (e na Coreia do Sul, de outra forma, e na Rússia, também de outra forma).

"Mas não são comparáveis”, embora essa de comparáveis me pareça logo nós espanhóis não somos portugueses, nós portugueses não somos gregos, como se não houvesse uma razão funda comum a todas as crises pontuais que vivemos, no quadro da crise global. É o mesmo sistema bancário, a mesma desregulação do mercado financeiro, o mesmo predomínio da finança sobre a economia, a mesma disfuncionalidade do euro.
É verdade que a Argentina sobreviveu com base num grande potencial de exportação de “commodities”, principalmente a carne. Mas a Grécia e nós também não temos um grande potencial de exportação de serviços, desde logo o turismo? Ou de recuperação da agricultura, criminosamente destruída, agora com seleção criteriosa de produções de alto valor acrescentado? E mesmo da pesca, com a maior ZEE da UE. Dirão que isto é impossível com respeito pelas quotas e regras da UE. Veremos, quando desobedecermos. E se for impossível, então talvez se justifique discutirmos bem a nossa integração na UE.
E, afinal, a questão é outra: digamos que a Argentina pagou com 30% da sua riqueza, durante 3 anos, a sua política de desafogo e de independência económica. Digamos que a Grécia e nós teremos de pagar o mesmo com 50%, em 3 anos. Ao fim desse tempo, a Argentina começou uma escalada de crescimento económico. Não o poderemos fazer? Como é que isto se mede contra menos custos ao ano com o plano da troika, digamos que 30%, mas em 20 ou mais anos? É questão de aritmética mas principalmente de decisão política.
(NOTA - esclarecendo bem: quando falo do caso argentino é depois das medidas de Nestor Kirchner. Até então, o que se fez, com Menem, foi a política do FMI, depois coisas erráticas na transição com De la Rua. Quando li uma vez o dirigente nosso do BE criticar o caso argentino por causa das consequências no desemprego, afinal referindo-se ao tempo imediatamente anterior a 2004, o tempo de Menem e Cavallo, a levar aos panelaços, fiquei indignado. E a pensar que o BE nunca terá chances antes de correr com os fósseis dos "ismos", Louçã e Fazenda).
Podemos aprender com a Argentina e o Equador? Não sei.
Eu não digo que deva ser assim, não sou especialista, mas quero discutir, não aceito de barato os dogmas dos outros e quero que um novo partido promova essa discussão.
Questão seguinte: há uma linha divisória clara na política económica europeia, isto é, tanto no que respeita às instituições centrais (CE, BCE, EFSF, BEI) como à relação de forças entre países? Estamos por isto apertados num constrangimento total a tolher-nos margem de manobra política, de acordos e manobras pontuais? Claro que não, como julgo ter explicado. As coisas estão incertas, acabou-se o diktat Merkozy. E mesmo que se possa ter dúvidas sobre o alcance da mudança Hollande, nada em política é absolutamente negligível. Até qualquer milimétrica guinada do nosso PS, se bem explorada. No entanto, lembro, isto só vale se confrontado com um novo partido.
Dito isto, previno-me contra um risco, o do euroidealismo, que contamina uma certa esquerda e, mais notoriamente, os eurodeputados de várias filiações ou independentes de esquerda. Se, por um lado, não menosprezo qualquer possibilidade de aproveitamento do confronto político a nível da UE, por mais que isso me pareça irrelevante, lento e contraditório, penso, por essas mesmas reservas, que nesta fase a luta se centra no plano nacional. Que mais não seja porque os poderes dominantes conseguiram alienar em seu favor a opinião pública, como nos casos esmagadoramente impressionantes nas sondagens dos alemães formigas a condenar os sulistas cigarras (e muitos sulistas complexados a aceitarem esta fábula, até alguns que conheço que são nas suas vidas pessoais as mais desavergonhadas cigarras).
Ainda outra: sendo fracos e estando nas mãos dos credores, é comer e calar? Muitos economistas e analistas conceituados têm mostrado que a quebra de um elo fraco, Grécia ou Portugal, não tem só o inegável preço nacional mas também um imenso preço para todo o sistema económico e financeiro do euro. Põe em risco a riqueza do norte, porque ela é o outro lado da medalha, o da pobreza do sul. Até Helmudt Schmidt o disse há algum tempo. 

Não é por acaso que, na tentativa de fazer festinhas aos mercados adolescentemente histéricos (?) tem havido declarações de que a Europa está preparada para a saída da Grécia do euro (ao mesmo tempo que se diz que tudo se fará contra isso). É o reconhecimento de que pelo menos é preciso "preparação" para uma saída do euro mesmo de um país tão economicamente execrado e "aberrante" como a Grécia. Afinal, há plano B ou não há? “Gaspar diz que não e Gaspar é um homem honrado” (Shakespeare, “Júlio César”, no mais magnífico discurso irónico da literatura).
Isto quer dizer, como defende a Syriza grega, que os intervencionados podem ir ao Conselho europeu e dizer: “é tanto nosso interesse como vosso que não cheguemos à rotura e ao enorme risco da implosão do euro. Portanto, vamos suspender todos os pagamentos de dívida, todos os compromissos com a troika e vocês vão pensar rapidamente em como isto já começa a queimar-vos as calças”. É chantagem, como agora protestam os fanáticos da religião neoliberal? Mas desde quando é que esta palavra feia, em termos pessoais e sociais, está banida da luta política, mormente da internacional? “It’s politics, stupid!”
Portanto, podemos dar um murro na mesa? Forçar a revisão completa da nossa situação sem sair do euro, jogando com as contradições intrínsecas do sistema do euro? Podemos desobedecer, sabendo que podemos suportar o castigo de quem tem de medir o grau de castigo para não lhe sair o tiro pela culatra? Afinal, a desobediência não é um direito essencial de defesa, das pessoas e dos povos e, ao longo da história, uma eficaz arma política?
Eu não digo que deva ser assim, não sou especialista, mas quero discutir, não aceito de barato os dogmas dos outros e quero que um novo partido promova essa discussão.
O cenário anterior, à Syriza grega, não implicava a reestruturação da dívida, só a suspensão do seu pagamento, com provável renegociação dos seus termos. É o que esperaríamos de proposta de um BE, dito próximo da Syriza, mas proposta que nunca vi assim claramente formulada (e por isto a Syriza é potencial vencedor das próximas eleições e o BE será sempre um clube de opositores diletantes).
Passemos então a outro cenário, o “argentino”. (Anote-se que isto nada tem a ver com economia moral da dívida, legítima ou ilegítima, do tipo das auditorias). Significa, essencialmente, rever politicamente - não moralmente! - o montante da dívida, os seus encargos, as suas maturidades, tudo decidido pelo devedor, não pelos credores (como foi há meses no caso grego de credor submisso). 

Pensar moralmente a política é coisa de quem nunca leu Maquiavel e, se não o fez, é melhor que já não o faça, para não ter confusões na tola.
Importante é saber se essa reestruturação radical (não as eufemísticas "renegociações" - só com a troika? - de que alguns falam cá) é possível no quadro do euro ou obrigatoriamente saindo da moeda única. Os economistas dividem-se. Se permanecendo no euro, só com enorme coragem política do governo português (claro que não este!), confrontado certamente com as maiores pressões e chantagens. Se saindo do euro, certamente que o preço é altíssimo, ninguém realista o nega: fuga de capitais, levantamentos maciços dos depósitos bancários, desvalorização, recessão, recurso obrigatório à produção interna, fim das importações de produtos de luxo, falências de empresas frágeis dependentes do crédito e desemprego, etc. 

No entanto, há planos bem estudados para esta hipótese, pelo menos para que não se diga que é coisa de aventureiros. Ou de "partidos radicais", acusados com este labéu por quem não se digna analisar o que propõem. A propósito, já compararam as propostas do eleito Hollande com a de Mélenchon, o candidato sucesso da Frente de Esquerda?
Saída do euro ou não?
Eu não digo que deva ser assim, não sou especialista, mas quero discutir, não aceito de barato os dogmas dos outros e quero que um novo partido promova essa discussão.
E ainda outro cenário, que vou respigar de um texto já com algum tempo de Jorge Bateira. É uma variante do cenário de “murro na mesa” europeia, ou de desobediência, que referi acima. De quem diz que sempre quer ver o que fazem os que arrotam poderes mas que depois têm de olhar para os seus pés de barro, atolados no sistema. Bluff? Talvez, mas sempre jogaram bem poker os grandes políticos.
“Para executar esta política, precisamos de um governo que rompa com o Memorando, recupere a tutela do Banco de Portugal e ponha em execução um controlo eficaz do sistema financeiro. Recorrendo à monetarização da dívida, esse governo lançaria um programa de estímulo ao crescimento da economia e um programa de criação imediata de emprego em colaboração com autarquias, agências de desenvolvimento local e organizações de solidariedade social.”
Em termos mais esquematicamente elucidativos: 1. Suspensão imediata dos compromissos do memorando. 2. Suspensão de todos os pagamentos da dívida, vencimentos e juros. 3. “Denúncia” - de facto - dos tratados a partir de Maastricht e dos limites impostos pelo PEC. 4. Nova lei do BdP, com total liberdade em relação ao BCE. 5. Congelamento de contas bancárias, acima de um determinado limite diário nas ATM. 6. Congelamento das transferências eletrónicas de capitais, exceto compromissos justificados e inadiáveis. 7. Monetarização progressiva da dívida e “quantitative easing” por parte do BdP, em emissão de moeda eletrónica. 8. Emissão de títulos suportados pelo BdP para investimento num programa de crescimento e emprego. 9. Eventualmente, nacionalização da banca. 

Os economistas que me perdoem alguma incorreção técnica ou que ma emendem, mas creio que, politicamente, o essencial está aqui dito.
Que isto daria uma enorme guerra, se calhar um ultimato à século XIX? Talvez, mas só um cobarde é que não considera sequer, ao menos, a hipótese da luta, desde que ela não seja antecipadamente derrotada. Mas esta é?
Claro que isto tem um enorme busílis. Tudo isto só é viável feito numa sexta feira ao fim da tarde e com entrada em vigor imediata. Não pode ser com decretos com uma semana de promulgação em Belém - se é que Belém promulgaria - nem com fugas de informação, nem com conluios bancários ou maçónicos. Dito claramente, isto só com um poder revolucionário.
Será isto possível, assim visto por um leigo?
Eu não digo que deva ser assim, não sou especialista, mas quero discutir, não aceito de barato os dogmas dos outros e quero que um novo partido promova essa discussão.

E certamente que só com um novo partido.


P. S. (3.6.2012) - Como escrevi repetidamente, como refrão, não sou especialista. Por isto, pedi crítica a um economista que muito prezo. Aqui vai.
“Só tenho a corrigir o seguinte: a economia da Argentina recomeçou a crescer através da procura interna. A ideia de que as exportações (o mito da semente de soja), puxadas por uma conjuntura internacional favorável, foram o principal motor do crescimento é uma ideia errada mas muito divulgada. Foi mesmo através da procura interna. (…). No resto, eu só diria que a nacionalização temporária da banca é condição essencial para minimizar a fuga de capitais. Não pode ser o nº 9 da lista. Tem de ser decretada na tal sexta-feira à noite. Para uma descrição detalhada de um "plano de operações" pensado para a França, ver o texto anexo do Sapir escrito no ano passado.
A ruptura com emissão de euros pelo banco central, pelo menos provisoriamente para ver se a Alemanha abandona o barco, é defendida pelo Parti de Gauche e o seu economista principal, Jacques Généreux. A ideia é a de encontrar um grupo de países que converta o euro em «moeda comum», apenas para as relações com o exterior, a que ficariam ligadas as moedas nacionais por um câmbio flexível.” 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A responsabilidade dos economistas


Há dias, um jovem economista de alta qualidade intelectual e que me dizem ser um muito bom profissional, recusava, e com inteira justiça, o epíteto de “economista formatado”. Claro que eu nunca disse que eram todos, mas isto também não anula a minha idéia de que, como quadro geral, as nossas escolas de pendor ideológico (Economia e Direito à cabeça, mas também Ciências sociais) são altamente responsáveis pela hegemonia ideológica de direita, muito para além da consciência das pessoas de o serem (e influenciando muita gente, como muitos eleitores do PS, que sinceramente recusam esse posicionamento político).
Creio que o meu jovem interlocutor não me recusa a apreciação de que ele, e outros que querem pensar pela sua cabeça, andam confusos. A sua posição, resumida, é: “assim como o J certamente não pensa que a grande maioria dos seus colegas investigadores em Biologia são ignorantes ou aldrabões, não me é fácil aceitar que digam que tantos professores meus ou por este mundo fora, grandes investigadores em Economia ou com grande experiência nos organismos internacionais estejam todos errados. E certamente não são loucos a quererem fazer mal às pessoas”.
Quanto à última afirmação, já aqui escrevi alguma coisa que agora não consigo localizar. Claro que Gaspar, para exemplificar, não é um criminoso psicopata, não tem prazer mórbido em saber que alguém foi despedido, mas considera isso como o preço inevitável do que para ele é mais importante, a sua ideologia, a sua razão de vida. 
Gaspar não é um malévolo consciente, mas é obviamente um fanático cego pela sua crença no neoliberalismo, não como “simples” teoria económica mas como projeto de sociedade, aquela em que ele gostaria de viver, como outros fanáticos ao longo da história lutaram e até morreram por projetos históricos de sociedade para que estavam religiosamente predestinados. Na manifestação do seu pensamento, não há um "discurso crítico" científico, não há uma justificação racional, nem sequer uma apresentação de dados justificativos. Há fé e crença.

Sempre houve homens desses. A sua enorme vaidade, egocentrismo e aberrante sentido de predestinação torna-os perigosos quando têm nas mãos os destinos e a vida de milhões de compatriotas. Não é preciso saber muito de história para nos lembrarmos do que isto significa.
Quanto à primeira parte da conversa, sobre a respeitabilidade académica dos economistas, sobre a sua autoridade intelectual e a sua isenção ética, limito-me a propor a visão do vídeo acima, uma entrevista com Rob Johnson, presidente do Institute for New Economic Thinking, INET, sobre a responsabilidade moral dos economistas. Descobri-a no blogue de Varoufakis.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

“Na Grécia, o povo é quem mais ordena”


Cipriano Justo, meu velho e caro amigo, mandou-me o texto abaixo, para minha subscrição. Claro que sim. Pode parecer antagónico com o que escrevi, que não vou em manifestos moles. Isto é diferente, é uma manifestação curta, sucinta mas forte de solidariedade com os nossos companheiros gregos, como desejam que um dia destes a tenham connosco os nossos amigos espanhóis e italianos. "Primeiro foram os comunistas, mas não era nada comigo…"
Carta aberta aos Presidentes do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional 
Nas eleições de 6 de Maio o povo grego exprimiu democraticamente a sua vontade, manifestando a sua oposição às condições impostas pelo programa de assistência financeira. Essas condições lançaram os gregos no desespero e na miséria. Pela sua brutalidade, as medidas do programa estão a dilacerar a sociedade grega, provocando rupturas incompatíveis com uma recuperação social e económica que salvaguardem os padrões de vida aceitáveis para a dignidade de todo o povo.   
Goradas as negociações para a constituição de um governo, os gregos vão regressar às urnas no próximo dia 17 de Junho. Trata-se de uma decisão enquadrada nas regras democráticas daquele país. Porém, está a assistir-se da parte dos mais altos representantes das instâncias internacionais a declarações que em nada facilitam uma solução ajustada à situação que se vive naquele país. Pelo contrário, as tomadas de posição já conhecidas vão no sentido de influenciar e condicionar a liberdade de escolha e decisão dos gregos, ao colocar na agenda política, ao arrepio dos tratados europeus, a sua saída da zona euro com todas as consequências daí decorrentes. 
Por outro lado, no mesmos sentido da consulta eleitoral na Grécia, os resultados das consultas eleitorais realizadas recentemente em França, na Alemanha, em Itália e no Reino Unido deram um sinal inequívoco de que também naqueles países as populações estão a rejeitar as medidas de austeridade que lhes querem impor em nome de um ajustamento orçamental cujos exemplos já conhecidos em nada estão a contribuir para melhorar as economias, nem sequer se revelam úteis para atingir o apregoado objectivo de resolver o problema das suas dívidas públicas. 
Por estas razões, os signatários desta carta aberta entendem que nas actuais circunstâncias se deve prestar todo o apoio e solidariedade com o povo grego, expressa sob a forma de uma exigência de cancelamento das medidas de austeridade que lhe foram impostas. Entendem também que os governos europeus não devem poupar esforços junto da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu para ser encontrada uma solução que alivie a tensão que nestes dias se vive em toda a Europa. Exigem, finalmente, que sejam respeitados os resultados das eleições de 17 de Junho enquanto escolha democrática do povo grego.
O documento, assinado inicialmente por sessenta pessoas, está aberto à subscrição pública, neste endereço

Uma peça em três atos

1º ato, 2010-2011.
A crise é fundamentalmente de indisciplina governativa, do défice orçamental, de países periféricos laxistas. Diziam isto os do núcleo duro do neoliberalismo ou ordocapitalismo, infelizmente também muitos portugueses com osteoporose vertebral. A seguir, mais especificamente, a crise é da dívida. No caso da Espanha e da Irlanda, só a sotto voce se admitia que essa malfadada dívida era principalmente da banca, embrulhada na bolha imobiliária. Em todo o caso, como vamos sempre precisar de dinheiro, o primeiro objetivo é recuperarmos a confiança dos mercados, dos Gekkos, dos predadores, gente que, por natureza, atua sempre com base em coisas morais como a confiança, a lealdade, a solidariedade.
Os abandalhados do sul têm de pagar e aprender. As lições e os castigos dos alemães nunca custarão a estes próprios. A populaça alemã aceitou acarneiradamente uma considerável redução do seu poder de compra - a desvalorização interna - mas agora não admite pagar para os gregos (e portugueses) porque, apesar de isto ser essencial para garantir o euro, os alemães não percebem minimamente como dependem do euro, que é o que têm porque o velho marco se acabou. Pior, os portugueses também não o percebem e não usam isto a seu favor.
Uma senhora quadrada e medíocre que veio do frio tem feito neste tempo um percurso balizado pela indoutrinação dos seus economistas de serviço e pelo taticismo pequeno-partidário das suas eleições. Nada pior para quem mexe o motor europeu e para quem dá a mão a beijar a uns rapazitos periféricos. Portanto, ordens de serviço militar, com a flexibilidade intelectual que por natureza essas ordens têm. Défice orçamental máximo de 3% do PIB, dívida pública máxima de 60% do PIB, inflação máxima de 2%. Claro que todos estes parâmetros são “religiosos”, até a querer-se que fixados nas constituições. Por exemplo, os EUA, com a política expansionista e neo-keynesiana de Obama, acham muito aceitável, temporariamente, um défice orçamental de 10%.
Uns “tontos”, até na onda bem comportada de “propostas modestas”, propuseram mutualizações da dívida, integração dos sistemas bancários europeus, emissão de “eurobonds”, taxa Tobin, realocação dos fundos europeus, etc. No entanto, “nein”, “nein”, “nein”! Patético! A Europa só será Europa quando a Alemanha, como jangada de pedra, se for para o Ártico com a temperatura que lhes vai no genoma, exceto quando vêm gozar o clima destes seus devassos companheiros sulistas.
A par de tudo isto, a hegemonia ideológica da economia moral. Pobrezinhos mas honradinhos. Um país governa-se como uma casa de família de S. Comba Dão. Os mercados, gente tão séria, cuidado, não os enervemos! O Estado é a corrupção e a incompetência, viva a iniciativa privada. Vivemos acima dos nossos meios. Não há dinheiro, ninguém nos empresta (como se o dinheiro viesse do crédito e não da produção). O nosso poder político importante é que ainda estamios em democracia e podemos dizer que o passos Coelho tem melhor aspeto, veste melhor e aldraba menos nas licenciaturas videirinhas do que o Sócrates, ou vice-versa. Etc.
Entretanto, já então conversava com alguns mais esclarecidos ou preocupados, mesmo que muito longe da minha posição revolucionária. Coisa típica, disse-me alguém muito próximo, que respeito, que em 2011 votaria CDS porque ao menos  tentava conciliar austeridade com crescimento. Elogio a premonição, quando só agora, com Hollande, se põe isto na discussão, mas não consigo perceber como é que  se imagina algum crescimento na espiral recessionista de empobrecimento, desemprego, perda de poder de compra, contração da “procura agregada”, “solução” do défice essencialmente por redução da despesa, donde incapacidade de investimento, diminuição do PIB e portanto do denominador de todos os índices (daí aritmética elementar).
Há dias, confesso que como quem atira barro à parede, dizia em conversa de amigos que isto era coisa para um buraco negro de pelo menos 30 anos. O meu grilo disciplinou-me, “talvez estejas a exagerar, como é que podes adiantar com rigor um número desses tão exagerado?”. Afinal, é exatamente a previsão posterior de um grande comentarista económico (e alemão!), Heiner Flassbeck. 
Finalmente, nesta fase, começou o BCE de Trichet a avançar um pezinho. Muitos saberão que, no negócio Miterrand-Khol do euro, a Alemanha ganhou o desenho do sistema à imagem e semelhança do Bundesbank. O BCE não é minimamente um instrumento de política financeira, não apoia e garante um orçamento federal, não emite dívida nem sequer a monetariza, e tem por regra absoluta controlar a inflação, o pavor histórico dos alemães, pensando em Weimar. Quanto aos investimentos e ao seu banco, o BEI, nicles.
No entanto, este jogo de “clarezas” jurídicas e políticas (dos tratados) e de "real politik" tem muito que se lhe diga. O BCE não pode subscrever dívidas nacionais mas fartou-se de as comprar nos mercados secundários.
Isto mostra, como muitas outras coisas, que a política é uma comédia de enganos, não é coisa para quem quer lê-la com a seriedade da Bíblia. Que, tal como a economia de um estado não é a economia de uma família, a moralidade da política também não é, nem pode, nem deve ser o aperto de mão de "gentlemen". “Politics: it’s fight, stupid!”. Voltarei a isto.
2º ato, 2011-2012.
Começa a abrir-se uma frecha na frente ideológica ou religiosa da receita austeritária derivada do catecismo neoliberal, tão devoto, dogmático, intelectualmente indigente como qualquer outro catecismo. As TVs, olhinho esperto para as audiências, começam a perceber que o homem comum já desconfia da certeza ducal ou cantigueira. Os jovens economistas das minhas relações, pretensamente formatados pelas escolas que agora têm nomes ridículos em inglês, metem-se em brios, querem pensar por si.
O BCE admite finalmente, mesmo que só para si próprio, que o centro da crise é o sistema financeiro e desata a financiar os bancos, a taixa de juro baixíssima, quase nula, com que eles vão comprar, a juro muito superior, a dívida soberana dos seus próprios países. Há séculos, um traidor destes seria decapitado. Mas é coisa indiscutível: a banca é coisa sagrada, garantia da sobrevivência dos povos e dos seus estados. Alguém imagina Portugal sem Ricardo Salgado? Eu imagino! “Without you”.
Os nobéis americanos falam em uníssono, espantando-se, envergonhando-se, com os seus colegas académicos europeus. De forma alguma estranha, se formos ver os percursos profissionais de Gaspar, Draghi, Monti, Papademous, etc. Todos a passarem pela porta giratória de governos / organizações internacionais / Goldman-Sachs. Foram fadados como apóstolos de uma religião, têm de cumprir essa missão. Não são obrigatoriamente más pessoas, como talvez não fossem Torquemada ou Savonarola. Já agora, em termos de apreciação meramente psicológica, de devaneio intelectual, bem gostaria de testemunhar uma conversa dos dois primos, Gaspar e Louçã. Deve ser tristemente divertido. 
A Grécia tem papel principal neste ato, a prenunciar o próximo. Uma personagem gorda e pomposa avança e destila discurso troikiano convencional, mas há um coro ainda um pouco silencioso, dramaticamente clássico, que percebe que tudo aquilo soa a falso, que não vão cumprir.
No fundo do palco, enquanto o tal ator grego entra em “pathos”, o coro europeu entra em sinais subtis de pânico. Desde logo passa uma fila de banqueiros que cantam coisa triste, “já pagámos, já reestruturámos e não vai dar nada”.
Ao mesmo tempo, uma fila de soldados gritando “nein, nein, nein”.
Entreato, 2012-2012. 
Enquanto os espe(c)tadores comem um croquete, alguém lembra algumas coisas:
Houve eleições na Grécia. Eleições são eleições, indiscutíveis, mas bem houve quem arrotasse contra a falta de sabedoria dos gregos, que chatice, mais a necessidade de eleições daqui a um mês. Estes gregos irresponsáveis que nos lixaram a tranquilidade germânica do euro vão continuar a olhar de soslaio para nós portugueses, tão bem comportados, tão admiradores dos fritzes (Hotel Palácio do Estoril!)?
3º ato. 2012.
Sobe o pano e mostram-se numa tela imagens da eleição de Hollande e das eleições gregas. Também do discurso da Bastilha de Mélenchon. Com a projeção da imagem de Hollande, alternam dois gritos: “austeridade” e “crescimento”, coisas claramente compatíveis para efeitos de comício, mas tão só. As pessoas ficam confusas, mas tudo isto é circo e espetáculo, mesmo quando, lá ao cantinho, vem Seguro dizer que também dizia o mesmo cá na parvónia. Tratado da disciplina orçamental com um anexo de um parágrafo anodino sobre crescimento. Não há pachorra!
Ligação a Washington, ao FMI, à Sra Lagarde: “austeridade mais crescimento”. Ligação a Timor, a Cavaco: “austeridade mais crescimento”. “Estamos a brincar ou quê?” (desculpa, Carlão angolano, não pensava vir a citar-te tanto!).
Entretanto, passa à boca de cena uma coluna militar em passo de ganso, dizendo que a Alemanha estará sempre contra, “nein, nein, nein”. Sai pela direita alta e espreita uma cara à Draghi que diz com elegância italiana “tá, tá, a senhora diz que manda, mas aqui de Francforte/Paquetá eu decreto que a morena é linda e que me vou derramar, em sua honra, em injeções nos bancos, trincando uma coxinha de frango ou de galinha”.
Depois de uma fila confusa de gregos mais ou menos gordos e bigodaços, vem um atrevido que diz que a Syriza vai dar uma volta nisto. Para já, vai rasgar o memorando com a troika embora sem sair do euro. Será isto possível? Isto ou outras formas de usar a nosso favor que os grandes perdedores da crise do euro serão os alemães? Fica para o próximo capítulo.
Claro que é epílogo importante, aquele em que o autor quer dizer que a tragédia pode não ser farsa, pode ter dimensão heróica.
P. S. - Faltou dizer que também entram no espetáculo, pelas coxias de ambos lados, a Argentina e a Islândia.

Por "provocação" de um leitor


Um leitor sugere-me que devo escrever ao que o tal novo partido vem, traçar o quadro da sociedade que será viver com tal partido no poder. Também o que tenho a dizer quanto à solução de curto prazo da crise da falta de dinheiro e reformas da economia.
Em relação ao primeiro aspeto, bastaria ir pelas ligações, mas aqui vai mais explícita a indicação da entrada em que caracterizava, no essencial, o que entendo dever ser um novo partido.
Quanto à falta de dinheiro (?), já estava prevista uma entrada IV, mas afazeres muitos vão atirá-la para o próximo fim de semana.
E aqui fica o agradecimento pelos alvitres.

domingo, 20 de maio de 2012

A esquerda (III)


O que vou escrever hoje resume-se assim: a convergência de esquerda é impossível no nosso quadro partidário esclerosado, exige uma rotura provocada pelo aparecimento de um novo partido, mesmo que de pequena dimensão.

O que disse ontem parece-me claro em relação a essa proposta minha essencial: a sempre desejada unidade da esquerda tem entre nós, presentemente, uma expetativa temporal que não responde à urgência de resposta à crise. Pior, mesmo que se conseguisse miraculosamente tal unidade, ela nada adiantaria em termos programáticos e de perspetiva de ação imediata. Os tempos estão de revolução, não de congresso valsante!
A “esquerda radical” está confusa (ou a confundir-nos). O PCP ao menos diz claramente que defende a reestruturação da dívida e adivinha-se facilmente que deseja a saída da eurolândia, embora nada adiante sobre como pensa atenuar os inevitáveis custos económicos de tal decisão, a curto prazo. O BE fala numa vaga renegociação que perece não ser mais do que pedir aos parceiros troikianos que tenham pena de nós, aliviem o aperto de prazos, juros, metas. Sair do euro, diz Louçã, seria uma catástrofe. Sem tão afirmativa certeza, por isto com maior ambiguidade, vão alguns “bloguistas” do BE, a protestarem a altos gritos contra a austeridade, mas sem uma ideia de solução ou, pelo menos, sem cientificidade, de bandeira de luta.
No mais, como todos os trotsquistas europeus, mesmo os mediáticos como Varoufakis, ficam sempre presos ao sonho da redenção por mudança da política europeia, sabe-se lá como, coisa que vai campeando pela esquerda europeia bem pensante. De proposta modesta a proposta mais modesta - já vai em três revisões - é sempre uma economia de conto de fadas, apenas o outro lado do espelho da Alice em que se contemplam os sonhadores do neoliberalismo. Fé no preto ou fé no branco, para mim é mesmo igual, é fé. Que nem sequer pode assegurar coisa tão primária como dar um badagaio à Sra Merkel.

Talvez por isto, por esta confusão, é que agora vejo tão boa gente se comprometer com uma posição política - mais um manifesto, já enjoa - que só aponta, na prática, para uma intervenção a nível do Parlamento europeu. Intervenção a muitos títulos mordoma e invejável, diga-se de passagem, e sem as chatices de se sujar com a mediocridade da política doméstica.
Do PS nem falar. Um ou dois socialistas - que admiro - têm posições muito avançadas em relação à crise com que nos defrontamos, mas são apenas marginais consentidos. A posição oficial, agora fortalecida pela política de Hollande, é patética. Austeridade mais crescimento?! Como escrevi ontem, eu nem exijo que os nossos políticos de hoje tenham posição sólida sobre coisas como a reestruturação da dívida, a saída do euro, a nacionalização da banca, o controlo muito forte dos movimentos financeiros. Só queria que me dissessem se, ao menos, não rejeitam isto liminarmente. Estou convencido de que o PS rejeita isto liminarmente.
E como é que partidos metidos na lógica da luta eleitoral não hão de pensar assim, sabendo-se que se movem num pântano ideológico e eleitoral - outra vez a hegemonia! - que é dominado, a 80%, pelo pensamento neoliberal, pela economia moral, pela passividade mental que ainda pesa de cinquenta anos de salazarismo?
Portanto, querer em tempo útil - isto é, o tempo necessário para não nos deixarmos ir pelo esgoto, como os nossos irmãos gregos, ou, para ser mais intelectual e cientificamente bonito, sermos sugados pelo buraco negro da recessão-austeridade - querer, dizia, construir uma alternativa eficaz batendo à porta da Soeiro, do Rato ou de nem sei onde é a sede do BE, é apenas coisa de velho viciado no jogo e que mete moeda atrás de moeda na “slot machine”.
Também há os que apostam na rua, e estes merecem-me muita simpatia, mas não a minha concordância prática. Volto sempre ao calendário. Ele aponta é para o terreno tradicional de luta, eleitoral, de convencionalidade partidária. Veja-se a Espanha. Os ativistas da Porta do Sol  transportam bandeiras de esperança em que alguma coisa mude, mas não vai mudar a tempo e, entretanto, se o país vizinho vier a ser sugado pelo tal buraco negro, não se criou a tempo nenhum instrumento político com eficácia imediata.
Diferentes, e também diferentes entre si, são os casos grego e francês. Em ambas as situações, a perspetiva de mudança do quadro político-partidário passou pelo aparecimento de um novo partido, com grande sucesso no terreno político convencional.
Sobre a Grécia, fala-se da subida espetacular da coligação Syriza. Faz-se analogia primária com o nosso BE. É verdade que, cá e lá, são ambos crentes na fada da boa Europa. Mas a Syriza diz coisa muito clara a que o BE não se atreve, porque não quer afrontar os tais 80% de hegemonizados, de bons homens honestos. A Syriza diz claramente que, desejando que a Grécia mantenha a sua integração no euro, quer rasgar o compromisso com a troika. Há algum partido português que diga isso, com tal clareza? Mas reconheçamos que a diferença essencial é que uma crescente maioria de eleitores gregos vota nisso (mesmo que nem todos queiram também a saída do euro), ao passo que o eleitorado português ainda vai nessa de que compromissos são para ser respeitados, já dizia o Salazar que pobrezinhos mas honradinhos.
O que não se tem discutido é o papel de um novo partido, a Esquerda Democrática. Com um resultado eleitoral não magnífico mas respeitável, é hoje fiel da balança. Representa o que podia ser entre nós um partido de “esquerda do PS”, embora eles tenham aparecido como cisão de direita da Syriza. Foi criado, pasme-se, há dois anos e conseguiu agora uma votação de 6%. Parece-me de esperar que, face à conflitualidade extremada com que os gregos se defrontarão nas próximas eleições, a ED ainda venha a crescer mais, tratando-se de um partido “moderado”, que rejeita a saída do euro mas que não se deixa ir em qualquer política troikiana de austeridade. Não estranho que chame muitos votos de eleitores do “centrão”.
Diferente é o caso francês. A sua novidade partidária é o Parti de Gauche (PG), o Partido de Esquerda. Também resulta de uma cisão recente, mas em sentido contrário: do PS, para a esquerda. E, jovem partido, conseguiu que o seu líder, Jean-Luc Mélenchon, fosse escolhido como candidato comum de esquerda por uma frente que até incluiu o partido comunista. Ao contrário do exemplo grego, o PG é “radical”, defende claramente a saída do euro, mas tudo com um estilo e linguagem - Mélenchon é um comunicador genial - que transmite uma imagem de sensatez, seriedade, que não repugna, à portuguesa de brandos costumes, ao “bon petit bourgeois”.
Em ambos os casos, houve um importantíssimo fator comum. Os dois partidos foram criados por pessoas que assumiram riscos mas que também tinham os meios práticos necessários para a criação de um partido. Não é nada fácil, recolher as assinaturas, criar e manter um sítio na internet, arranjar salas para as necessárias sessões de lançamento do partido, custear as deslocações, etc.
Nem devia estar a lembrar o caso histórico mais eloquente da necessidade de assegurar, eficaz e pacientemente, a base aparelhística de uma reforma partidária: Gorbachov! E já antes, embora sem sucesso, Khruchov.
Fazer um partido, hoje, é essencialmente ganhar meios numa cisão. Ou uma saída “de direita” do BE, ou uma saída “de esquerda” do PS. Mas nunca de mãos a abanar.
Todavia, não me repugna uma forma prática de “OPA” partidária que desagrada a bons amigos meus. Afinal, foi assim que nasceu o BE, que não teria sido possível só com camaradagem asiática de trotskistas e maoistas, sem a Política XXI. E esta, por ação de Miguel Portas - a que até me opus na altura, mas hoje não sei se com razão -  foi uma OPA amigável ao meu MDP.
A outra forma, como nestes exemplos grego e francês, é a dissidência ou divórcio em que o divorciado não sai com uma mão à frente e outra atrás. É o mínimo de sentido prático e de sabedoria política, que falta a tão bons amigos que tenho no PS, mas que, se sairem, vão só com a roupinha do corpo.
Da mesma forma, os meios de que dispõe um parlamentar europeu são excelentes. Estou certo de que Miguel Portas os teria sabido usar bem. Diz-se que se estava a preparar para uma convenção do BE, no fim do ano. Numa outra iniciativa que vejo agora, a inabilidade é evidente. O traquejo político, como o dos verdes anos do Miguel, ainda vale muito. E eu, apesar de simples amador em política, tive alguma experiência que me faz dizer agora que não tenho pachorra para muitas coisas.
Finalmente, e talvez a despropósito para muitos leitores - eu acho que não - falei atrás uma e outra vez em “moderação”, correspondência ao senso comum de sensatez. Acho que pode ser uma característica fundadora de um novo partido, na atual situação subjetiva do balanço da hegemonia (cá estou outra vez!). A ED grega é "sensata", o PG, em relação à “langue de bois” da esquerda radical francesa também é “sensato”. 

Será que podemos oferecer aos eleitores portuguerses da tal maioria de 80% uma alternativa razoável, sensata, "de bons costumes”, com a suprema habilidade de calmamente os fazer refletir? Não é oportunismo. Em política há sempre tempos de passos em frente e tempo de passos atrás, de “hold the fort”. E também aqueles de passos aparentemente atabalhoados, como o Estica do "Bonnie Scotland", que não se sabe bem se são para a frente ou se para trás.
À margem - porque é que os trotsquistas estão a ganhar tão bons lugares na infoesfera mundial, também na portuguesa? Não percebo. Ou estou a ser hipercrítico, ou acho seriamente que o contributo trotsquista para o pensamento político foi medíocre, como tudo o que veio da Rússia dessa época, Lenine incluído. Será que os herdeiros do homem morto no México apenas usam isto, o de ter sido assassinado a mando do psicopata Estaline? Ai, "o filósofo renano", como escrevíamos há muito tempo para despistar as bestas dos coronéis censores.

sábado, 19 de maio de 2012

A esquerda (II)


Há dias (16 de maio), exemplarmente, o Público trouxe dois artigos de opinião convergentes na tese de que o objetivo central da política portuguesa, mormente nesta crise, deve ser a união da esquerda. Vá lá, ambos deixam expressa a ideia de que entendem por isso a unidade de ação da esquerda e do centro-esquerda. Já parece ter-se ido o tempo da caracterização do PS como esquerda, tout-court.
Um dos artigos é de simples opinião, embora de um dirigente de uma associação política mas com pouca expressão e, a meu ver, depois de sucessivos fracassos de intervenção - o último dos quais, por sua grande culpa, a recém-autodefuntada Convergência e Alternativa, com que alinhei. Parece-me estar condenada a ser cada vez mais um grupo de amigos a envelhecer em alegre convívio, o que até é ótimo, se o vinho e os petiscos forem bem escolhidos. Afinal, esquerda caviar também pode ser esquerda Poliphonia 2008, muito bom, mais "piplar" e mais acessível.
Diferente é o outro artigo, porque a sua defesa da mirífica solução da aliança de esquerda, agora de esquerda e centro-esquerda - mas na prática sempre o mesmo, PCP-BE-PS - vem claramente como substrato de mais uma nova proposta de manifesto.
Em primeiro lugar, acho que já ninguém com senso político (onde estão os políticos traquejados da minha geração?, “onde cantan los poetas andaluces de ahora”?) liga a estes manifestos que aparecem como cogumelos em manhã húmida, à esquerda ou à direita ou ao centro ou em cima ou em baixo, mas sempre de gente bem comportada. Coisas amorfas, banais, que eu não assino mas que amigos meus muito caros me dizem assinar porque mal não faz, estão de acordo com o essencial (quase 0,00001), contribui para espírito de “hold the front”. É verdade, mas é seguro que tudo isto é inocente? Que estas coisas vegetais não são elementos de construção de projetos políticos com agendas pessoais?
No caso mais recente, nem me senti muito defraudado, porque não fui chamado a intervenção direta. No entanto, interessei-me, porque alguém muito meu estimado me dizia que a perspetiva era a da criação de um novo partido, coisa que quem me leu aqui, aqui, aqui e aqui, sabe como me é importante. Até suspendi iniciativas que tinha combinado com excelentes amigos políticos, para não prejudicar esta, que tinha sustentação prática mais sólida. Afinal, tudo resultou num zero à esquerda de documento político, a apelar à construção de uma “esquerda livre” - a última descoberta propagandística, que não consigo perceber o que é, a não ser para uma magra minoria de militantes socialistas maltratados ou por ressentimento pessoal em relação à atitude de um partido com que se rompeu, em termos de "legitimidade eleitoral". Afinal, coisas pequeninas.

Eu sou de esquerda e sou livre. Muitos amigos meus são de esquerda e são livres. Essa centralidade "manifestariana" numa esquerda livre não nos diz nada. E se eu fosse de esquerda e não me sentisse livre creio que nada me impediria hoje o que fiz há trinta anos, libertar-me. Claro que respeito e até admiro quem, por sentido de eficácia da sua ação política, queira permanecer na cadeia.  Mas é coisa pessoal e grupal que não deve ser bandeira de um manifesto político de âmbito geral. Este tipo de coisas fazem-me sempre lembrar o célebre manifesto dos soldados do RALIS: uma lista de reivindicações de inegável significado político e militar, onde pelo meio vinha a exigência de usar sapatos em vez das botas.
Mais importante são duas coisas, uma dita e outra não dita no manifesto. Primeiro, sempre o mito da tal unidade de esquerda, coisa que nunca foi possível mas que será possível agora a cada iniciativa ou manifesto de um novo grupo de protagonistas ou de quem vai reverencialmente bater à porta do Rato (sobre isto, conto um dia destes um dos melhores ditos políticos de que me lembro, de um homem tido como bisonho mas de quem eu conheço o humor desde criança, Jaime Gama).
A coisa não dita, e que me tinham “prometido” era a iniciativa de construção de um novo partido de esquerda, alternativo, consequente. Venho a saber, por fonte bem informada, que afinal o que se vislumbra da grande influência prática do mentor desta iniciativa não é de todo em todo um novo partido - ufa! que trabalho e que despesa, mesmo com todos os recursos do parlamento europeu - é apenas a possibilidade de uma candidatura independente às mais importantes eleições que temos no calendário próximo: claro que para o parlamento europeu. Como diz a cada minuto como bordão o animador das festas de ex-liceu tropical da minha mulher, “estamos a brincar ou quê?”
É óbvio que não me passa pela cabeça subestimar a importância estratégica da unidade de esquerda (dou de barato a extensão do termo). Mas há coisa mais elementar na cultura política do que a distinção entre a estratégia e a tática ou, relacionadamente, a gestão do calendário, em função da dinâmica temporal das crises com que nos defrontamos?
Não me parece que possa passar pela cabeça de alguém minimamente sério em política a dúvida de que, hoje, tudo gira à volta do programa de austeridade dito “memorando da troika” (duplicado em agravo pelo governo). Ao mesmo tempo, a relação disto com a política do euro. No entanto, pasme-se, o novo manifesto, embora falando na desunião europeia, não tem uma única proposta sobre a crise, a austeridade que nos foi imposta. Muito menos, claro, sobre a questão essencial, a que define as águas, e que até vou formular da forma mais defensiva, menos assertiva: podemos recusar o programa da troika? Podemos desafiar o poder  germânico? Podemos invocar as cláusulas de emergência do tratado europeu para adotarmos uma política soberana? Aceitamos, mesmo que só em princípio, a reestruturação da dívida sob nosso controlo de devedores? Aceitamos, em princípio, a eventualidade de termos de abandonar o euro? Reparem que só estou a formular perguntas (em próximo escrito proporei respostas). Mas eu não assino nenhum manifesto nem me comprometo com políticos que nem sequer tenham a coragem de dizer que, ao menos, estão abertos a discutir essas questões.
Estas questões são obviamente as cruciais. Austeridade mais suave, mais um ou dois anos de benefício, um pouco menos de juros, não são significativos. Austeridade mais crescimento é disparate que nem um leigo em economia entende, porque sabe que ninguém engorda a fazer dieta. No entanto, com variantes, esta é a proposta de "diferença" do PS. Nem Hollande valerá. Austeridade mais crescimento, a última descoberta "redentora" da vergonhosa rendição blairiana da social-democracia ao neoliberalismo, é querer homogeneizar azeite com vinagre, coisa que qualquer patego sabe que é impossível.
E qual é a do PCP? Uma coisa que me valeu o voto, a reeestruturaççãio da dívida, mas que nunca consegui ver minimamente definida e entendível. E a do BE? Pior ainda, no caso de um partido chefiado por um professor de economia. Como na generalidade dos partidos trotskistas, um discurso sonhador de crença numa fada europeia que tudo resolverá, ou “propostas modestas” de um grego mediático de quem os seus compatriotas se riem nas urnas (os milhões que o homem já ganhou nos media era bom que tivesse entregue sei lá a que organização social ou política grega).
Como se as decisões europeias, numa mescla de estados ainda com grande força individual, e polarizada na Alemanha e seus satélites (ó holandeses, já esqueceram Anne Frank?) não dependesse essencialmente do poder político interno, de cada estado. Se Louçã fosse primeiro ministro, qual seria o seu comportamento no primeiro conselho europeu a que fosse? Fazer uma sabatina académica sobre a reforma da UE e as virtudes do euro, como se Sto Anacleto fizesse um daqueles repetitivos sermões sobre a necessária reforma hélas redentora da santa madre igreja? Afinal, há diferença essencial no espírito religioso-económico dos dois primos, mesmo que com cara para diante ou para trás, à Janus?
A alegre (o termo é propositado) procissão das “esquerdas” portuguesas é coisa que eu muito espero que aconteça um dia. Mas condicionar o hoje e o amanhã a esta utopia é o risco de todas as utopias. Tanto servem para iluminar o nosso horizonte mental, e muito bem, como para desculpar a falta de alternativa de luta no dia presente.
Qual é essa alternativa? Fica para amanhã.
NOTA 1 - Com este escrito, este é mais um passo para o que disse acima, “não fui convidado”. Claro que cada vez serei menos, mas já assumi que, neste nosso panorama em que até gente que tenho por excelente vai a tudo, a minha missão, solitária, chata, provocadora, detestável para muita gente, vem da passagem muito sublinhada do meu querido livro de juventude, “Memórias do cárcere” (de Graciliano, com vénia ao de Gramsci): “Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”. Ou, em jeito mais simples e plebeu, quero ser aquele que diz que o rei vai nu! Doa a quem doer. Mesmo a um querido amigo que me diz sempre que eu não devo esquecer que, em guerra, não posso criticar os meus aliados.

NOTA 2 - Parlamento europeu. Por razões certamente logo percetiveis, dedico esta crónica, por diferença, à memória de Miguel Portas, com quem até tive agrestes discordâncias políticas. Mas era um homem de carácter, íntegro, em quem se podia confiar, um homem superior. Afinal, um adversário imensamente estimável e respeitado, como foi comigo. Não é, à maneira de hoje, o adversário político que é um gajo porreiro e com quem se vai trocar conversas brejeiras sobre umas gajas. É, como eu e o Miguel, relação digna entre duas pessoas que, no fim da luta, como dois campeões de xadrez, se cumprimentam até com a solenidade que simboliza um afeto especial, com o olhar que transmite ao outro o respeito e a consideração. Até admito que um dia me aconteça isto com o seu irmão Paulo. Eu não preciso que concordem comigo, o que exijo é que as discordâncias estejam ao meu nível. E do Miguel.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A esquerda (I)


Ia escrever já - e vou fazê-lo logo a seguir - sobre coisas recentes que discutem formas de relacionamento “à esquerda”. Esquerda? Esquerda radical? Esquerda radical de nome mas de facto conservadora? Esquerda moderada? Centro-esquerda? Gente de esquerda que depois gente das minhas relações usa contra mim por serem oportunistas? Eu, de esquerda, afinal o que sou? Quando alguém muito chegado me trata simplesmente como “amigo do Louçã”? Fiquei com dificuldade, achei que, neste mundo comunicacional tão equívoco, precisava de fazer uma espécie de “declaração de interesses”.
Isto de esquerda tem hoje muito que se lhe diga. O meu mais querido grilo falante até acha que, para alcance do meu “discurso” junto de muita gente, eu nem devia usar o termo, devia inventar outro. Mas não consigo, ele está ligado a todos os meus neurónios, sai-me com a naturalidade incontrolável da respiração. 
Também ainda hoje me dizia um amigo - que nada é de esquerda, o que não tem nada a ver com ser meu amigo - que aceitava este meu entitulamento mas que não o confundia com coisas trogloditas que lê (vinha a propósito de uma incrível tomada de posição de uma daquelas coisas muito mais papistas do que o papa que o PCP criou e que ainda vão sobrevivendo por aí).
Reparo com isto que nunca me defini bem publicamente. Nem interessaria, em princípio, porque muito mais valem as posições e teses do que as etiquetas. Também porque um homem educado não fala de si próprio, deve escrever de forma a que os leitores o saibam identificar sem ele exibir a sua caracterização pessoal, os seus afetos, as suas dores de vida, as suas doenças ou dos seus queridos. Todavia, estamos em tempos muitos difíceis que justificam alguma clarificação, porque são tempos propícios a enormes confusões, de que vejo diariamente muitos se aproveitarem, aldrabando os leitores honestos mas pouco críticos. Não exijo aos outros essa clarificação, mas sinto o dever de a fazer. Quero que, ao lerem o que escrevi ou escreverei neste “blogue”, os leitores tenham o filtro que lhes permitam ver se o que eu escrevo é objetivo ou ideológico (o que até nem é incompatível). 
Sei que me arrisco à acusação de estar assim a ser um exibicionista presunçoso de pergaminhos políticos, culturais. Tudo pesado, vou pelo meu impulso talvez boçalmente primário, de simplesmente me apetecer que me saibam situar, que não me confundam com tanta aldrabice intelectual e política que por aí anda. Afinal, não será interessante que se compreenda o que pode ser o percurso de vida intelectual-política de um homem obscuro, em vez de se olhar só para as ideologico-acrobacias espertalhaças dos homens mediáticos, que deixam o cidadão comum perplexo?
Que mais não seja, isto serve para que eu me sinta tranquilo na próxima quinta feira, na magnífica hora semanal em que, com os meus alunos, divagamos por exercícios práticos  de concretização do tema “pomposo” da minha disciplina de Racionalidade Científica. Eles gostam muito e eu gosto muito de que eles gostem muito. Não são aulas, são conversas. Ainda anteontem ficamos a meio de um tema que eles é que tinham proposto, o desenvolvimento sustentado/sustentável (a conversa até começou por esta discussão de adjetivos - são sinónimos?). À socapa, tomei nota de um excelente diagrama que um dos meus alunos foi escrever no quadro sobre as esferas de interação no desenvolvimento. A propósito, senhores professores, sabem mesmo o que é o paradigma de Bolonha?
Em termos absolutamente objetivos, sou um ex-comunista, com o percurso típico, disciplinadamente assumido, de um comunista dos anos 60. Interrompi esse percurso durante alguns anos, após a derrota da revolução checa; entendi que o devia retomar no 25 de abril, até que houvesse tempo para  discutir essas coisas passadas. Nunca houve, até me ter cansado, em 1980. 
Não tenho nenhuma ligação partidária. Sou muito crítico, por razões diversas, dos dois partidos  que toda a gente identifica “à esquerda”, o PCP e o BE (claro que nem falo de uma obscenidade política que dá pelo nome de Verdes). Prefiro localizar-me por referências ideológicas, mais do que por simpatias partidárias, que não tenho (a não ser pelo partido utópico do voto em branco).
Podia fazer o brilharete de me apresentar situando-me nessa coisa muito vaga e ambígua da pós-modernidade - embora, na minha passagem pelo MDP, muito tenha escrito sobre isso, em termos de “alternatividade”. Há muitos anos que escrevi sobre os movimentos sociais, a democracia participativa, a qualidade de vida e o “desenvolvimento humano”, as sociedades de dois terços, etc., muito mais coisas que agora estão na moda. Todavia, acho, honestamente, que nunca me refugiei na defesa destas tendências de enorme importância histórica, mas ainda distantes, para esconder a minha incapacidade - ou não - de fazer a política de hoje, no lugar e no tempo concreto. Talvez porque, felizmente, não dependo na minha singeleza de vida - fora alguns gostos bem burgueses mas economicamente comedidos - de projetos, observatórios, conivências com poderes, que obrigam a artes circenses de equilíbrio entre demagogia de falas a acampados e subscrição de manifestos situacionistas, expresidenciais, bem comportados e politicamente engravatados. 
Não sou marxista, porque acho que a maior ofensa que se pode fazer a Marx é embuti-lo num sistema, numa caixa etiquetada. Foi um génio, contraditório. Quem o ler bem, notará facilmente as diferenças entre o Marx cientista (à maneira da sua época) do Capital, o Marx filósofo alemão (!) das teses, o homem com sentido prático e político do Manifesto, a mente excecionalmente plástica da Sagrada Família e outros textos. Não o sacralizo, mas, dizendo que, por coerência com ele próprio não sou marxista, deixo claro que, ainda hoje, é a matriz da minha elaboração mental, claro que aberta à assimilação de tudo o que veio depois.
Em relação à galeria habitual dos retratos icónicos, esqueço Engels, coitado, patético, generosidade sem limites mas criador fraquito. Passo ao seguinte. Leninista fui, como jovem comunista, mas logo a convulsão de Praga me fez ver que muito estava na rigidez e no esquematismo do pensamento leninista, embora pensamento de alto nível intelectual. É curioso, e discuti muito isso com um caro amigo do grupo dos seis, que, em tempos de Gorbachov, como ele fez, se tivesse querido salvar a  memória de outubro com o elogio de Lenine.  Alguém ainda se lembra de que esse grupo, com Vital Moreira em destaque, se perdia em grandes devaneios sobre Bukharin, Zinoviev ou Kamenev (alguém sabem quem foram?), as grandes vítimas de Estaline? Claro que o hoje nosso grande defensor do ordocapitalismo tem coisas muito mais palpáveis sobre que escrever, lá de Estrasburgo.
Obviamente sem uma palavra sobre Estaline ou Mao (mas devia tê-la sobre Cunhal, houvesse tempo), não posso deixar de referir outra minha grande influência magistral, creio que com grande importância para a crise que vivemos: Gramsci!
De Gramsci, como já tantas vezes aqui tenho lembrado, julgo indispensável refletirmos hoje sobre o seu conceito da hegemonia. O marxismo considerado primariamente como simples jogo de forças de poderes estruturais ou infra-estruturais, mas sempre objetivos ou materiais (no sentido filosófico do termo) - e é aqui que Lenine começa a adulteração de muito do que Marx escreveu - acaba por considerar os homens como agentes mas também essencialmente objetos históricos de uma simples racionalidade económica, com algum vício de determinismo histórico. O plano subjetivo, das ideias, das motivações, das "remunerações", dos mitos e pavores, contava pouco, talvez porque a subtileza europeia ocidental da dimensão humana tinha pouco a ver com a rudeza não humanista da tradição russa (de tal forma que Marx, não tendo tido tempo para maior elaboração, remeteu a Rússia e a China para o “modo de produção asiático” - ironia da história!).
O que Gramsci nos vem dizer pode parecer banal, mas é preciso situar na época o que era o pensamento revolucionário. Até porque esse contributo essencial foi fruto da época, com Gramsci no cárcere a assistir à influência meteórica do fascismo na classe operária e em outras camadas sociais desfavorecidas (e Mussolini tinha sido um socialista destacado! Assim como Hitler usou o termo socialista na sua designação nazi). O poder do proletariado posto ao serviço dos possidentes, em “cultura de massas”, que triste ironia para um Gramsci no cárcere! 
Pode haver uma situação objetivamente revolucionária, em que os oprimidos não podem mais sê-lo e os opressores já não conseguem sê-lo. É o que estamos a viver. Mas, e aqui é que Gramsci inova, um impasse destes, de crise, só se resolve revolucionariamente se a vanguarda dos oprimidos tiver a hegemonia noutro plano: o domínio das ideias, a conquistar a simpatia ou pelo menos a não-resistência da enorme multidão dos amorfos.
O que mais me atormenta é ver como, entre nós, a hegemonia está indiscutivelmente nas mãos da direita, com a potencialização de todos os meios pós-gramscianos de construção do domínio das ideias (comunicação social, net, ligação entre a universidade e os poderes, formatação mental dos jovens de maior qualificação educativa, com a seguinte alienação das elites profissionais jovens pela pressão do “ou és bem sucedido ou vais à vida”, etc.). E, até se ver, a austeridade troikiana em Portugal (troika externa mas também troika interna) teve o voto de 80% dos portugueses.
Já chega de conversa que muitos dirão sulista, snob e elitista. Acho que vale a pena para me compreenderem melhor nos escritos seguintes. Não tardam, provavelmente ainda hoje.