sábado, 31 de maio de 2014

Neoestalinistas?

Esta entrada vai um pouco personalizada. É coisa de que não gosto mas creio que, no fim, ao contar um caso recente, compreenderão.
Talvez poucos como eu tenham defendido uma aliança progressista e patriótica sem exclusões. Talvez poucos como eu tenham manifestado a convicção de que, se essa aliança evidentemente não tem tradução institucional/eleitoral sem o PS, também não pode prescindir da força de classe, da determinação de luta e da coerência do PCP. Talvez poucos como eu tenham demonstrado que a sua crítica ao PCP (se não tivesse críticas, era comunista e não tinha deixado de o ser há largos anos) é fraterna de esquerda e só injustamente e sectariamente pode ser rotulada de anticomunista primária.
Por tudo isto, preocupa-me quando o PCP tem atitudes que podem prejudicar a sua afirmação eleitoral e contribuir, como tiros nos pés, para todo o ataque propagandístico que se lhe opõe, e a toda a esquerda por arrastamento. Nos últimos tempos, venho a ver sinais de uma nova vaga esquerdista e de um revolucionarismo primário e romântico, de cartilha.
Relembro o que aqui escrevi, sobre uma entrevista de Nuno Ramos de Almeida a Domingos Abrantes. Nuno Ramos de Almeida, que julgo estar bem informado sobre o PCP, pergunta “mas não se verifica em alguns sectores do PCP uma recuperação da imagem de Estáline?”, ao que Domingos Abrantes, iludindo a gravidade disso, responde que é uma questão marginal. Não posso dizer se sim ou se não existe essa recuperação de Estáline, mas é inegável que, em blogues e muitas páginas do Facebook, há intervenções nesse sentido por parte de pessoas cuja linguagem e redes de contactos aponta facilmente para uma ligação ao PCP.
Não preciso de declarar a minha posição em relação ao estalinismo. Vou com muitos que adiantam as mais variadas explicações – a necessidade de assegurar a construção do socialismo num só país, a industrialização forçada, a repressão dos kulaks, a guerra e a reconstrução da economia, etc. Mas isto são explicações, interpretações, que nunca podem ser confundidas com justificações morais. Estáline e a sua corte partidária foram responsáveis por crimes, que mancharam o socialismo. Pura e simplesmente, crimes, também, afinal, crimes contra os ideais socialistas ou comunistas; e que, tantos anos depois, esteja a ser reabilitado, é coisa muito triste.
Triste mas não surpreendente. Creio que faz parte da formulação de uma narrativa saudosista de explicação do colapso da URSS, mas que não precisaria de ter recuado até Estáline. A menos que alguma gente, tantos anos depois, nunca tenha digerido bem o XX Congresso. Mas alguém no PCP – ao que me dizem, estranhamente, principalmente jovens – está a esquecer que a análise do seu XIX Congresso não legitima esse saudosismo.
“As condições externas influenciaram em medida apreciável as soluções e os caminhos de construção do socialismo e contribuíram para os atrasos, erros e deformações que se verificaram. (…) As condições externas influenciaram em medida apreciável as soluções e os caminhos de construção do socialismo e contribuíram para os atrasos, erros e deformações que se verificaram”. Não me parece que esta apreciação seja apologética de Estáline, como se tudo isto só se tivesse passado depois.
O caso pessoal de que ia falar tem a ver com a pancada que apanhei num blogue manifestamente legado ao PCP (até com o deputado Miguel Tiago como co-autor), o Manifesto 74, acerca de um panegírico às FARC colombianas. Não há dúvidas de que as FARC são uma guerrilha combativa, de inspiração marxista-leninista e que controlam uma área considerável do país, um dos que tem governos neoliberais, reaccionários e dependentes dos Estados Unidos. Mas tem duas manchas principais que mancham a sua imagem junto de qualquer pessoa “bem situada”. Em primeiro lugar, traficam droga. Posso condescender com isto se, como dizem, é a fonte de sobrevivência dos camponeses da sua área de controlo. Em segundo lugar, fazem raptos de pessoas inocentes, muitas vezes durante longos anos, para obterem resgates. Para mim, não há pragmatismo revolucionário que possa justificar isso.
E aqui fica a transcrição de parte da discussão desse “post”.
João Vasconcelos-Costa disse...
Nem uma palavra sobre os raptos de reféns, por vezes durante longo tempo?
Vicente Duque disse...
(…)
Anónimo disse...
É porreiro ler o comentário de pessoas, como João Vasconcelos-Costa que olham para as FARC (muito provavelmente) como grupo terrorista, em vez de libertador da Colômbia. Se o tempo voltasse atrás uns 54 anos, em território cubano (e se existisse a internet) era provável ler o mesmo comentário de João Vasconcelos-Costa, «nem uma palavra sobre os raptos de reféns pelas tropas de Fidel?»
João Vasconcelos-Costa disse...
Nunca li que a guerrilha de Fidel tivesse raptado e mantido como reféns durante longo tempo pessoas inocentes. O comentário do anónimo não desmente que as FARC o tenham feito. Queira-se ou não, isto chama-se terrorismo, coisa que foi muito discutida pelos teóricos da nossa família. Porque, se não sabe, eu situo-me no terreno ideológico deste blogue, com actividade política desde os anos 60, embora sem filiação partidária desde há 35 anos.
Anónimo disse...
O problema é esse e possivelmente o não acompanhamento deste problema que não só afecta a Colômbia, como também o Mundo. Se as FARC vencerem, termina o negócio de narcotráfico entre a oligarquia corrupta deste país e os EUA (principal responsável pelo que está a passar na Colômbia). Caso não houvesse FARC, podiamos bem esperar por uma revolução. É pena que discuta aspectos a que chama de terrorismo nas FARC e esqueça as torturas que os paramilitares colombianos impõe aos prisioneiros das FARC, como também aos comunistas daquele país. Por alguma razão, o exército da oligarquia corrupta da Colômbia é formada por militares israelitas.
João Vasconcelos-Costa disse...
A retaliação já é um procedimento político correcto e ganhador de apoio popular? Eu sou de um tempo em que o PCP tinha extremo cuidado em não fazer vítimas inocentes, nomeadamente nas acções da ARA. Pelos vistos, há uma geração de jovens comunistas que voltou ao passado mais duvidoso do movimento comunista
Argala disse...
Bom texto Bruno.
Quando terminei de ler o texto e comecei a ler os comentários do João Vasconcelos-Costa, achei que os podia sobrevoar e deixar umas achegas sobre o aniversário das FARC-EP. Mas não posso. Não posso por causa disto:
1."Queira-se ou não, isto chama-se terrorismo, coisa que foi muito discutida pelos teóricos da nossa família. Porque, se não sabe, eu situo-me no terreno ideológico deste blogue, com actividade política desde os anos 60"
De que família teórica é vossemecê afinal?
2. Defina "vítima inocente" e diga-me quem são as "vítimas inocentes" que estão nas prisões das FARC-EP. Meu caro, até o direito internacional burguês define com alguma precisão o que são Prisioneiros de Guerra (POW). Vá ler as Convenções de Genebra.
Respondendo agora ao primeiro comentário. As FARC-EP cobram imposto aos compradores da folha da coca. Esse imposto é o gramaje. As FARC-EP não a cultivam, mas também não a destroem (não fariam mais nada.. ). E sim, essas folhas de coca destinam-se maioritariamente à produção de cocaína, como é óbvio.
E desta vez convém que o primeiro comentadeiro vá também ler o que diz o direito internacional burguês em relação à taxação em tempo de guerra. Mais, leia até o NOSSO direito burguês, nomeadamente a nossa Lei Geral Tributária no seu art. 10.º (Tributação de rendimentos ou actos ilícitos). Eu cito: "O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses actos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis."
Posto isto, qual é exactamente o problema?
Ver aqui posições de quem se diz da família teórica do blogue que chegam a ser mais atrasadas que o próprio direito internacional e nacional da classe dominante, é obviamente preocupante e impede que o debate avance.
Um abraço e vivam as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo !!!
Anónimo disse...
Pelos comentários de João Vasconcelos-Costa, as FARC devem deixar de retaliar e sempre que fizerem prisioneiros do lado dos paramilitares, em vez de uns bons pontapés, devem lhes dar "festinhas" e caramelos. É melhor assim. A retaliação contra o inimigo é coisa muito feia. O comunista tem por obrigação tratar os carrascos com bombons e outros aconchegos.
Por mais injustiças que existam contra os comunistas colombianos, (alguns exilados em Espanha) e por mais torturas e mortes que existam contra as FARC a ideia é criticar as FARC por qualquer ponto que seja, neste caso, "o rapto de reféns". Só este ponto, justifica para pessoas como o Sr. João Vasconcelos-Costa que abandonemos a causa das FARC e que ponhamos uma etiqueta a dizer "terrorismo" por cima deste movimento de guerrilha.
Por último, posso dizer que o imperialismo norte-americano (que mata e destrói na América do Sul), agradece às posições politicamente correctas de pessoas como o Sr. João Vasconcelos-Costa.
João Vasconcelos-Costa disse...
E se lessem alguma coisa sobre as diferenças entre Marx e Bakunine?
Está-me a preocupar começar a ver que a nova geração comunista é mais sectária e ortodoxa do que a minha geração, nos tempos da recusa do estalinismo. E não me digam que Estaline não é para aqui chamado.
Diogo disse...
Revoluções sem sangue?! Claro que Estaline é para aqui chamado, nem que seja para o entender João V-Costa.
Argala disse...
"E se lessem alguma coisa sobre as diferenças entre Marx e Bakunine?” Quer aventurar-se um pouco mais?
"a nova geração comunista é mais sectária e ortodoxa do que a minha geração"
Que a nova geração de comunistas o oiçam, e comecem a enterrar de uma vez por todas as teses liquidacionistas do XX Congresso. As tais dos "tempos da recusa do estalinismo". As tais teses capitulacionistas que fizeram com que parte do movimento comunista esquecesse coisas tão básicas como:
"Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar."
Anónimo disse...
O João Vasconcelos-Costa pertence ao comunismo revisionista. É que chamar sectário e ortodoxo a quem gosta de Estáline é muito rico. O João Vasconcelos-Costa devia saber que grande parte da sua geração apreciava Estáline, devido à grande vitória soviética frente ao nazismo. Isto foi antes da implosão da União Soviética, como também antes das campanhas mentirosas e pagas com muito dinheiro para denegrir o comunismo.
Nós não somos sectários. Gostamos é de ser esclarecidos em relação à história e por favor não me venhas com as tretas do revisionismo que acusam Estáline de ser um assassino, senão o melhor será tirar uma assinatura no partido do Rui Tavares.
Jerónimo de Sousa, diga a esses meninos que estão a fazer mal ao partido…

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Resultados eleitorais (III)

Analisados os resultados eleitorais e conjecturando sobre as suas consequências, devemos passar para as perspectivas de aliança à esquerda. Antes do mais, e para me situar metodologicamente, transcrevo o que escrevi na minha página do Facebook:
Vou falar dos “espaços políticos”. Não vou entrar por discussões filosóficas, mas é chocante que haja por aí tantos vestígios do positivismo mecanicista mais rasteiro, com total incapacidade de domínio da dialéctica. Os meus alunos de “Racionalidade científica” são capazes de ver isto. 
Há um engano de base em muito do que se discute sobre o espaço partidário. A meu ver como uma visão mecânica, esquemática, sem conhecimento da dialéctica. A visão mais vulgar é geográfica, limitada a duas dimensões, a um plano. Onde está o PS, onde está o PCP, o que fica em área entre eles, está ou não vazia para preenchimento. 
Não se podem comparar quantitativamente qualidades diferentes. O PS é, como o PSD e o CDS, um partido eleitoralista, com captação de votos por marketing político ao sabor da conjuntura. O PCP, concorde-se ou não com o que daí decorre, é um partido de classe. Quem não compreender o que isto significa, quer na formulação original de Marx, quer posteriormente na perspectiva leninista, não pode compreender o que é necessário para chamar o PCP a uma aliança. O PCP não faz alianças de partidos, faz alianças de blocos sociais ou históricos. É a sua natureza e o seu direito. 
Da mesma forma, quanto a um novo partido alternativo, um “partido outro”, como tenho defendido. Não pode ser um partido entre o PCP e o PS, como é o erro do Livre, ou como possivelmente será a causa do encolhimento do BE. É qualquer coisa qualitativamente nova, num plano “geográfico-partidário” superior ao actual. É um partido que, para além do marketing eleitoral, tem de compreender e reflectir a mudança na estrutura social e nas correspondentes aspirações individuais e sociais, numa perspectiva que difere da perspectiva clássica do PCP e da falta de perspectiva social do PS. Tem de ser visto em altitude, enquanto à superfície se passa a disputa clássica. 
Está a haver por aí uma grande falta de capacidade de reflexão teórica. A discussão política não é só os sound bites dos colunistas privilegiados pela comunicação social. E veja-se o mecanismo perverso. X cria um fenómeno mediático por agitar as ondas com uma atitude protesto ou uma cisão, mesmo sem qualquer ideia clara a marcar diferença. A comunicação começa a dar cada vez mais espaço a X. X continua a fazer um discurso superficial, mas que entra nos ouvidos. Nenhuma alternativa política vinga sem boa imprensa, e é X que tem. Não conhecem os X? 
(Falando de X, esta nota vem a propósito da última crónica de Daniel Oliveira, no Expresso. Merece mais crítica, mas fica para depois).
Da mesma forma, é preciso analisar a questão em dois cenários. Primeiro, a curto prazo, em que tanta gente, voluntaristicamente, quer ver concretizada a aliança de esquerda, não sei como. Ou derivando para uma culpabilização sem sentido político (a política não é um romance), “este ou aquele partido, ou todos é que têm a culpa”. Segundo, com serenidade objectiva, considerando que a história nunca se fez na escala de tempo dos nossos desejos e que a impaciência não é uma virtude revolucionária. 
Muita gente, eu obviamente incluído, deseja uma aliança de esquerda. De qualquer forma, não é de esperar uma aliança pacífica, um contrato sem margem para fugas. Não me parece que se possa ir para além de um programa mínimo, sempre a desafiar uma rotura, cuja responsabilidade será sempre pesada pelo eleitorado. Mas, se os partidos podem ser responsabilizados pelas coisas concretas, nenhum partido pode ser responsabilizado por desentendimento em coisas de fundo, pelo menos três: a alternativa à política de austeridade e a recuperação do sistema de estado social, a reestruturação da dívida, e o tratado orçamental. Pedir que esqueçam isto é pedir-lhes que se descaracterizem a favor de uma alianã envenenada que, nestas condições colapsaria em breve tempo.
Queiram ou não muitos dissidentes do PCP, em várias vagas, a sua tendência é logo a de uma ligação formal ou informal ao PS. Curiosamente, isto é tanto mais forte quanto mais recente é a dissidência, como se vê com a gente como eu que foi saindo, silenciosamente, ao longo dos anos 80. Não me parece que isso adiante nada. O sentir profundo dos militantes do PS vai contra Pinas Mouras, Mários Linos e outros. Por isto, um homem íntegro, como Raimundo Narciso, viu quem não tinha lá lugar, bem como (testemunho-o) teve muitas dúvidas Barros Moura. Uma alternativa ao actual PS só pode nascer de dentro, o que considero quase impossível.
Muitos dos ex-PCP, nomeadamente a Renovação Comunista, são água insossa. Misturam algumas figuras muito respeitáveis, alguns ideólogos a tentarem conjugar Marx com teses revisionistas na moda, muitos que, e têm razão, rejeitam principalmente métodos de organização e funcionamento do PCP, mas que não basta para definir uma nova alternativa de esquerda.
As divergências entre os dois principiais pólos de esquerda, PS e PCP, são profundas, essencialmente: tratado orçamental, reestruturação da dívida e preparação, como cuidado, para a necessidade eventual de saída do euro, forçados ou por decisão nacional. Convergem, admitamos, na recusa da política austeritária e na defesa do estado social. Seria muito, como base de um programa comum. Simplesmente, a credibilidade de um tal programa exige a clarificação da obtenção de recursos. O PCP diz claramente: reestruturação da dívida, incluindo “haircut”. O PS não diz nada. Pode, assim, haver aliança? E, se houver, que valor prático tem, a não ser desgastar a imagem da esquerda, arrastando a mais consequente? Diz-se que para um entendimento, é preciso que todos cedam um pouco, que façam compromissos. Isto é um truísmo. O que não dizem é até que ponto é de exigir que vão esses compromissos.

Será um debate difícil. O resultado inicial possível é o de uma “aliança tensa”. Mas deve ser tentada. Se sobrevive ou não à prova de fogo da governação, logo se verá. O que me parece dogmático e apenas fundamentado numa história passada que pode sempre ser revista, é que se postule, como faz Daniel Oliveira na sua última crónica no Expresso, a absoluta e definitiva impossibilidade de uma aliança entre PS e PCP, no plano da acção governativa, principalmente devido à "condição de que o PCP manda", mas também, vá lá, ao "fortíssimo sentimento comunista nas bases do PS". Mas não se lembram de 1973, do Congresso de Aveiro e das eleições? 
Também é importante que se dê um sinal inequívoco ao eleitorado, que julgo que deve começar pelo PCP e pelo BE, porque são os acusados de serem partidos fora do sistema de governação. Devem mostrar-se claramente disponíveis para negociações com o PS, desejavelmente com base numa plataforma acordada pelos dois partidos. É esta a tese que tenho vindo a defender, a da construção de uma aliança em dois passos.
E, segundo cenário, se não for possível uma aliança a curto prazo?
Para muita gente, é coisa catastrófica. São pessoas justamente impacientes, que estão a sofrer, mas que não têm em conta que a história se faz por ciclos, alguns de longo sofrimento. Não tivemos quase cinquenta anos de fascismo?
Mas nem vou para tão longo período. Vejamos o caso grego. Ao contrário da nossa cristalização histórica, que nos está a encurtar a visão, houve a retracção brusca do Pasok (a Pasokização), com emergência do Syriza. É certo que não tem paralelo entre nós. O PS não está a perder tanto como o Pasok e o BE (equivalente do Syriza) está a definhar, bem como o partido comunista KKE a não subir como o PCP. Mas há alguma coisa em comum. O que será a consequência para o PS de uma eventual coligação à direita, independentemente de quem beneficiar com esse provável estrondo?
O que quero dizer é que, sendo certo que quando mais depressa este governo se for melhor, uma certa pausa não é uma catástrofe e abre possibilidades imprevisíveis de reformulação do quadro político. Haja forças!
A seguir, escreverei uma “Carta aberta para uma frente de esquerda".

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Os resultados eleitorais (II)

Ia arriscar-me a um exercício perigoso, o de extrapolar os resultados de domingo para uma previsão das legislativas. Em primeiro lugar, muita água vai passar por debaixo das pontes e, inclusivamente, dois pequenos resultados podem vir a sofrer evoluções imprevisíveis. Falo do MPT (repetir-se-á nas legislativas o efeito Marinho e Pinto, então em Estrasburgo?) e do Livre. Em segundo lugar, não é nada fácil transpor os resultados de umas eleições com 66,1% de abstenções para legislativas que, na última edição, tiveram muito menos, 41%.
Uma possibilidade seria a de distribuir essa diferença de 25,1% de abstencionistas proporcionalmente aos resultados dos partidos, domingo. Não é correcto, porque é muito provável que a transferência de partidos para a abstenção tenha sido longe de uniforme. Provavelmente, foi mais forte nos partidos do abusivamente chamado “arco da governação” (melhor é dizer os partidos do memorando) do que nos partidos mais coesos ideologicamente, que fixam mais o seu eleitorado (mais o PCP/CDU e agora o Livre, menos o BE). Também me parece haver maior fluidez entre abstenções e votos brancos e nulos.
Depois desse exercício, senti-me mais tranquilo por ter sido divulgada uma sondagem para as legislativas (se tivessem sido no domingo) que não se afasta consideravelmente (3% no máximo em alguns resultados) das minhas projecções. Essa diferenças são facilmente explicáveis por a sondagem não ter considerado com destaque o fenómeno Marinho e Pinto e por apresentar uma percentagem exorbitante de brancos e nulos (2,5 vezes a percentagem das europeias),
Para o que se segue, vou portanto basear-me nesses dados que calculei: PS – 32,2%; PSD+CDS – 28,5%; CDU – 12,6%; MPT – 5,7%; BE – 4,6%; Livre – 2,2%; outros – 6,7%; brancos e nulos – 7,6%; abstenção (pressupostamente igual a 2011) – 41,0%.
A menos que venha a haver até às legislativas uma situação nova, crítica, estes resultados mostram uma situação política bloqueada, frustrante, que provavelmente só terá expressão de insatisfação em saídas marginais ao sistema partidário estabelecido: abstenção, brancos e nulos ou aparecimento/crescimento de pequenos partidos, por si ou por encosto a figuras com popularidade, à Marinho Pinto (deixo agora de lado a questão do populismo). Ao menos, felizmente, nada faz prever a emergência a curto prazo de partidos fascistas.
O que não parece merecer dúvida é que o “arco troikiano” (também tenho direito a usar a palavra arco…), nestes três anos, perdeu imenso terreno, passando de 80% em 2011 para 59,2%, domingo passado. E somando-se a isto que do arco só a aliança do governo é que se atreve a continuar mais papista do que o papa, já que o PS tem feito um grande esforço para fazer esquecer o seu apoio ao memorando e para apresentar propostas anti-austeridade, mesmo que ambíguas e pouco substanciadas.
O povo está descontente e revoltou-se pelo voto contra esta política troikiana. Mas porque não pela positiva, votando maciçamente na esquerda, e principalmente na esquerda consequente? É preciso ter em conta principalmente dois factores. Primeiro, é sabido que as situações de sofrimento e de empobrecimento, mas também com incerteza, medo e precariedade no trabalho, nem sempre acalentam posições subjectivamente revolucionárias. Se às condições objectivas correspondessem sempre condições subjectivas, seria óptimo e Gramsci não teria precisado de tanto esforço para discorrer sobre isso.
Em segundo lugar, e especificamente a nível nacional, temos uma esquerda radical que sobe sempre nestas situações, de forma significativa, mas nunca de forma a constituir-se, em termos institucionais, como alternativa de poder, não chegando aos 20% de votos (CDU+BE). Para já não falar no seu combate difícil contra alguma noção instilada, ideologicamente e comunicacionalmente, da inutilidade do seu voto, por ser uma esquerda só de protesto, insensata, irresponsável e incapaz de fazer alianças. Para além, claro, da herança de todas as malfeitorias, “se não foste tu foi o teu pai”. Mas não foram ignorantes, insensatos, emotivos no seu protesto os “sans culottes” de 1789?
Dito isto, há outra forma de ver esses 20% da esquerda radical. É que impedem o PS de ter maioria absoluta. Os 32,2% que prevejo para o PS (a tal sondagem da semana passada dá-lhe 29,1%) estão muito longe daquilo que se estima ser, em virtude do método de Hondt, o limiar para maioria absoluta, cerca de 43%. A questão crucial vai ser a das alianças pré ou pós-eleitorais. Que a direita, derrotada, estará disponível para uma aliança de “consenso nacional” com o PS, apadrinhada por Cavaco, é evidente. E o que escolherá o PS? É a discussão essencial, como criar condições para que o PS opte por uma aliança à esquerda. A meu ver, é ilusório, pensar-se que os 11% que faltam ao PS para a maioria absoluta possam ser fornecidos, por exemplo, pelo Livre. E seria a canibalização de um tal aliado.
Mas antes, um outro aspecto pouco discutido. Habituámo-nos a ouvir que ganhar as eleições é ficar em primeiro lugar. Daí que, dizem, para que a direita não continue a governar, é preciso fazer ganhar o PS. Isto pode ter efeitos propagandísticos mas, em termos políticos, para formação do governo, é totalmente errado, em muitos casos. É preciso não esquecer que não é "quem ganha a corrida ganha o prémio todo”, estilo eleições inglesas. E que qualquer governo pode nem sequer iniciar funções se for reprovada uma moção de rejeição do seu programa.
Vejamos os dados que apresentei. O PS não tem maioria absoluta mas, segundo a tradição, é convidado a propor um governo. Não parece lógico que todos os outros partidos se unam para rejeitar um governo dirigido pelo PS. Como nada aconselha, nesta situação política e económica, um governo minoritário, que até provavelmente seria recusado pelo PR, fica a questão de que aliança, como discutiremos a seguir.
Mas admita-se que, dado o quase empate, é o PSD, sozinho ou em coligação, que ganha. Novamente, não tem maioria absoluta, mas não tem outra hipótese para uma aliança que não o PS. Admitamos que o PS não quer, preferindo ficar em águas mornas. Simplesmente, o PS tem de considerar que é certo que o PCP+PEV e o BE apresentariam uma moção de rejeição. O que faria o PS? Abster-se era mais um grande passo para a sua descredibilização. Aprovar só lhe deixaria, logicamente, a alternativa de uma aliança à esquerda. Veja-se, portanto, que, em termos friamente objectivos, “ganhar” o PSD até nem era obrigatoriamente uma desgraça.
Escrevi “ficar o PS em águas mornas”. Foi a actuação e discurso típicos de Seguro durante todo este tempo e viu-se. Olhando só impressionistamente para os resultados e ensaiando algumas hipóteses de transferências, não vejo sinais de ganhos do PS à custa da aliança do governo. As transferências devem ter sido mais complicadas. Por isto, também é complicado, e imprevisível, saber-se onde se vai buscar votos para colmatar a diferença de mais de 25% entre as europeias e as legislativas. O esforço vai ser maior à esquerda-esquerda, sempre menos penalizada pela abstenção e que não deve ter perdido muito nas europeias. Os abstencionistas e os votantes do MPT provavelmente vêm do bloco central. Como se repartirão os que, nas legislativas, voltarem às urnas?
A outra incógnita é a descida do BE. Para onde foram metade dos seus votos (menos, se considerarmos as legislativas e autárquicas)? Em princípio, não é um eleitorado potencialmente abstencionista – embora possam ter engrossado, à “anarca”, os nulos – e não estou a vê-los votar Marinho e Pinto. Mais fácil me parece que tenham ido para o Livre, um partido também tipicamente de jovens intelectuais da pequena burguesia (desculpem o chavão…). Onde é, e como, que o BE pode recuperar? Não me fico por explicações tão superficiais como a direcção bicéfala ou a falta da imagem de Louçã, que também é uma pessoa irritante para muita gente.
Em relação à direita, importa também contar com o seu provável comportamento eleitoralista, como se vê pelo DEO. Muita gente que conheço não pesou muito o aumento do IVA e da TSU, aparentemente pequenas percentagens. Ficaram impressionados foi com os 20% de reposição na função pública e com a redução da contribuição de solidariedade sobre as reformas. Também não viram que muitas coisas no DEO dependem de cortes indefinidos e que a UE tudo fará para apoiar o governo, que também beneficiará da tendência geral europeia de descida das taxas de juro, para cuja causa o governo em nada contribuiu.
De tudo isto, resulta claro que, para uma solução a curto prazo (mas também há outras escalas de tempo, em política – escreverei sobre isto), a situação está bloqueada numa simples alternativa, em que é decisivo o papel pendular do PS: ou se alia à direita ou à esquerda. Não há outra solução, nem sequer a de outros tempos em que se podia pescar à linha cada votação, mesmo com queijos limianos.
E, que me perdoe o Sr de la Palisse, para uma solução de esquerda/centro-esquerda, são indispensáveis tanto o PS como os partidos à sua esquerda (e movimentos ou expressões de intervenção política social). O mal será, como se diz, que “eles não se entendem”? O que significa isto, o que é preciso para que se entendam? Darei a seguir a minha modesta opinião.
NOTA – este texto cai sobre a disponibilização de António Costa para se candidatar a secretário-geral do PS. Vou ficar atento, até porque conheço muito pouco do que pensa António Costa sobre as três questões centrais que abordarei na próxima entrada: o tratado orçamental, a reestruturação da dívida e a política de alianças. Em todo o caso, nestes tempos de política de marketing de imagem e “boa imprensa”, parece-me que Costa é melhor trunfo para o PS. Mas, como não tenho nada a ver com o PS, directamente, fico-me por aqui.
(Imagem – a conjuntura de Poincaré)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Os resultados eleitorais (I)

Começo por comentários factuais, passando amanhã para algumas conjecturas, forçosamente mais sujeitas a alguma subjectividade.
1. Já vai o tempo em que se dizia como coisa indiscutível que não se podia fazer fé nas sondagens. Neste caso das europeias, até se sabe que a sempre esperada grande abstenção retira rigor às sondagens. No entanto, as suas previsões foram bastante credíveis. Numa noite de balanço sobre vitórias e derrotas, as sondagens também ganharam.
2. Não me parece justificar-se surpresa – e talvez nem sequer preocupação excessiva – com a abstenção (65,3%). Vem de acordo com uma tendência de crescimento linear, também nas restantes eleições. Nas últimas europeias, a abstenção foi de 60,1% em 1999, 61,4% em 2004 e 63,3% em 2009. Repare-se que o aumento de 2% entre 2009 e 2015 foi o que já tinha havido entre 2004 e 2009.
Até esperava mais, numa situação em que não há diferenças claras de posição e propostas entre os dois pólos do centrão, ambos europeístas, adeptos das normas da economia europeia estabelecida (por exemplo, o pacto orçamental) e opostos a qualquer dissolução ou saída unilateral da zona euro. Falei com pessoas desta área central, que têm oscilado de voto e que desta vez se iam abster. Talvez o MPT tenha contribuído para levar às urnas alguns desses potenciais abstencionistas.
3. Não esperava os resultados brancos e nulos. Os brancos, considerados normalmente votos conscientes de manifestação de descontentamento geral, desceram 0,3%, de 4,7% para 4,3%. Já os nulos, muitas vezes tidos como de eleitores menos instruídos, que se enganam, subiram substancialmente (tanto quanto se podem comparar pequenas percentagens), 1,1%, de 2% para 3,1%. Talvez o voto nulo esteja a servir para deixar registado (em texto ou desenho) o protesto.
4. Por muito que a desonestidade intelectual da comunicação social de serviço esteja a tentar minimizar a derrota da direita, não há dúvida possível: teve uma derrota clamorosa. Uma queda de 12,4% (31% do seu eleitorado de 2009) e a perda de 3 deputados (em 10) só é “derrota relativa” num país de aldrabões. Até se chega a dizer que foi natural perder por o governo ter sido “obrigado” a governar duro. Claro, pois por isso perdeu. É como o clube que perde o jogo porque jogou mal.
5. Em contrapartida, sendo indiscutível que o PS ganhou, seria de esperar que a vitória tivesse sido muito mais expressiva. Mais 3,8% e mais 1 deputado parece-me muito curto para quem, como se viu em toda a campanha e ainda ontem, pôs todas as fichas na sua validação, desde já, como alternativa para o governo a formar-se em 2015. Creio que, como disse acima, isto reflecte a desconfiança de algum eleitorado do centro, oscilante, em relação à possibilidade de o PS ser uma verdadeira alternativa, tendo em conta a ambiguidade – e até demagogia – das suas propostas, a total falta de carisma de Seguro e o cansaço com um partido tão vicioso e carreirista como os de direita. Também não deve ter atraído eleitores mais à esquerda que, em outros tempos, votavam útil no PS, quando este, por exemplo com Guterres em 1995, foi uma alternativa possível à direita retinta.
6. Porque tem havido essa ambiguidade no centrão, porque tanto se fala num consenso europeu reflectido no “arco de governação” (uma expressão perversa em termos democráticos), também é interessante ver a evolução da votação conjunta dos três partidos que assinaram o memorando. Caíram 7,5%, de 66,7% para 59,2%. Para onde foram estes votos? Discutiremos mais adiante (10).
7. Do PCP/CDU pouco há a dizer: 12,7% (mais 2%) e 3 deputados (mais 1) são indesmentivelmente um resultado notável, mas gostava de salientar um aspecto que ainda não vi focado. O PCP arriscou muito, sendo o único partido a abordar frontalmente a questão do euro, embora de uma forma correcta e inevitavelmente prudente. Talvez tenha perdido votos com isto, até de uma zona de votantes BE em saída deste partido, mas essa eventual perda talvez tenha sido compensada por quem apreciou a coragem política que, com isso, o PCP demonstrou. Permitam-me uma nota pessoal: não sendo eu votante regular na CDU, desta vez foi esta posição sobre o euro que me fez votar.
8. Os números não permitem esconder que o BE está em queda acelerada, perdendo 2 deputados e 6,1% de votos (de 10,7% para 4,6%), 60% do seu eleitorado. Transferências para a CDU? Para a abstenção, de desanimados com a imagem de degradação do partido? Para o Livre? Efeito da mudança na direcção? Não sei, mas certamente que o BE vai ter de reflectir muito a sério. Espero que sim, porque, situando-me numa perspectiva unitária de esquerda consequente, não me agrada nada este resultado, ao contrário do da CDU.
9. A área da esquerda / centro-esquerda consegue 51% dos votos (juntando o Livre), subindo 2% em relação a 2009. Aritmeticamente (infelizmente, não significa politicamente) reforçam-se até as condições para um governo progressista e contra a política de austeridade, com maioria absoluta.
10. O fenómeno Marinho e Pinto ainda terá de ser bem estudado. Confesso que, talvez por ter acompanhado pouco a campanha, nunca me passou pela cabeça. O meu palpite é que os 7,1% de votos do MPT são essencialmente votos de iniciais abstencionistas do centrão. É o sector em que, como vimos, há uma perda equivalente e em que mais se esperava um aumento considerável da abstenção. Note-se que Marinho e Pinto, tanto quanto vi hoje em declarações durante a campanha, focou a sua campanha na crítica à ineficácia, falta de ética e falta de alternativas dos três partidos dessa área. Diga-se também que, ao contrário do que já se diz por toda a parte, não é linear que Marinho e Pinto seja um populista de direita, direita em que costuma situar-se o MPT. Não o vejo adoptar um discurso generalizadamente antipartidos, à Medina Carreira, muito menos antidemocrático. Mas que tem fortes laivos de demagogia e de um justicialismo primário, não me parece haver dúvida. Não creio que seja isto que precisamos e que justifique tão impressivo resultado eleitoral.
11. Apesar de não ter eleito nenhum deputado, justifica-se uma nota sobre o Livre. Os seus 2,2% de votos são um resultado interessante, para um partido jovem (mas ajudado por muito "boa imprensa"), e permitem-lhe um lugar em discussões à esquerda nestes tempos próximos.
Ficam então para amanhã as considerações políticas sobre o que pode ser o nosso futuro, à luz destes resultados – deixando claro que ainda estamos longe das legislativas e muita coisa pode acontecer até lá.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Leitura para o dia de reflexão (II)

Julgo que quase não se dá pela campanha eleitoral, que pouco esclarecedora tem sido. Na lógica da redução da política pela comunicação social a combates de galos, o que se tem visto mais é a troca cansativa, repetitiva, desonesta, de golpes mais ou menos baixos e de mera retórica entre Assis e Rangel/Melo. Claro que não me apetece minimamente sequer comentar isso. Mas, apesar da demagogia e hipocrisia de muitos programas ou manifestos, ainda vou tendo por norma que eles são documentos fundamentais para a formação da opinião e para a escolha democrática. 
Vou tentar fazer uma comparação entre os compromissos dos vários partidos ou coligações, mas só – por razões que creio que serão compreensíveis – dos que se situam à esquerda do governo. Tentarei centrar-me no essencial, com objectividade e dando desconto às inevitáveis declarações de tipo panfletário ou posições genéricas e ambíguas. Dou também prioridade às propostas, referindo os diagnósticos só quando eles marcam uma distinção significativa entre os partidos. Quanto a propostas, parece-me muito importante salientar as diferenças em dois planos: primeiro, no que se refere à actuação no próprio Parlamento Europeu ou junto das outras instituições europeias, bem como às relações internacionais dos partidos; segundo, no que respeita às políticas nacionais relativas à União Europeia e à zona euro, bem como à solução da crise.
Deixo de lado, principalmente quanto ao manifesto do PS, tudo, e é muito, o que são propostas tipicamente legislativas nacionais, que nada têm a ver com estas eleições. São coisas para se ver daqui a ano e meio.
1. Posição geral em relação à Europa
a) Como é bem conhecido, o PS tem uma posição favorável à União Europeia (UE) e ao euro, na linha geral dos partidos sociais-democratas. Como diz no seu manifesto, “hoje, muito do que acontece em Portugal decide-se na Europa. A União Europeia é parte da nossa vida e da nossa identidade enquanto país. Por isso, Portugal precisa de ter em Bruxelas uma voz muito mais forte em defesa dos interesses nacionais. Os portugueses sabem que o PS sempre liderou o projeto da integração europeia de Portugal. Foi assim na adesão à CEE, na Estratégia de Lisboa, na entrada para o Euro, na conclusão do Tratado de Lisboa. É preciso que torne a ser assim também agora.”
Assim, embora formulando críticas a alguns aspectos do funcionamento das instituições europeias e a défices de democracia, o PS não põe em causa, no essencial, o que tem sido a construção europeia, nem a sua configuração institucional nem, mais recentemente, o pacto orçamental. 
Está inserido no grupo parlamentar europeu da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas e pertence ao Partido dos Socialistas Europeus. O seu “candidato” a presidente da Comissão é o alemão Martin Schulz.
(NOTA – escrevi candidato entre aspas porque me parece abusivo tudo o que se tem dito sobre essas candidaturas. De facto, o Parlamento Europeu limita-se a aprovar ou não um nome designado pelo Conselho europeu, que tem apenas de “ter em conta” os resultados eleitorais. Creio que ninguém sabe ao certo o que significa esse “ter em conta”).
b) Para usar um termo muito vulgar, a CDU manifesta-se vincadamente eurocéptica, considerando que a construção europeia tem servido os interesses do capital e que, em relação a Portugal, teve efeitos globais negativos, mau grado as ajudas de coesão. Considera que a adesão ao euro agravou substancialmente esses efeitos negativos, em virtude dos processos de desindustrialização e de abandono do aparelho produtivo, das privatizações, da financeirização da economia e de submissão às imposições da União Europeia e dos grandes interesses económicos e financeiros. No entanto, não propõe o abandono da UE. 
No Parlamento Europeu, a CDU pertence ao grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde mas o principal partido da coligação, o PCP, não está filiado em nenhum partido supranacional.
c) O BE tem uma posição de princípio que pode parecer pouco clara. É fortemente crítico da UE tal como ela é de facto e principalmente do euro, mas revê-se no projecto europeu (ideal ou teórico). Invocando teoricamente uma posição de internacionalismo do movimento popular, deposita esperança na luta política a nível europeu e na possibilidade de derrota da fortíssima coligação neoliberal que hoje domina a Europa, por acção comum na terreno europeu, nomeadamente por desobediência às burocracias e instâncias europeias não democráticas. No seu manifesto, fala-se expressamente de “esquerda europeísta”. Isto contra a posição pública de alguns dos seus membros bem conhecidos, que entendem que hoje, estando blindado o terreno europeu, é prioritariamente a nível nacional que as camadas populares melhor podem lutar contra a política de austeridade e de desvalorização salarial.
O BE também faz parte do grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde mas, ao contrário do PCP, está filiado num partido internacional, o P. da Esquerda Europeia, cujo “candidato” é Alexis Tsipras, dirigente do partido grego Syriza.
d) Finalmente o Livre, ainda um pouco nebuloso. Parece-me ser o mais profundamente europeísta, talvez com uma sinceridade ingénua diferente do pragmatismo e seguidismo do europeísmo do PS. Como se verá adiante, todas as suas propostas, mesmo em relação aos graves problemas da crise que atravessamos, têm solução é no quadro institucional europeu, embora, contraditoriamente, o Livre considere esse quadro como profundamente vicioso. Quanto ao seu posicionamento no PE, no caso de ter um deputado (coisa muito improvável), nada se sabe. Rui Tavares começou sentado na bancada do Grupo da Esquerda Unitária, passou para o grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia. Quanto a partidos, manter-se-á fora de partidos supranacionais ou integrar-se-á no Partido Verde Europeu?
2. Actividade no Parlamento Europeu e junto dos outros órgãos
a) Tentando extrair o essencial de um manifesto muito prolixo e arcaicamente panfletário, parece-me que o PS se propõe contribuir para a construção europeia pela “democratização e integração do Sul no núcleo duro da União Europeia, Estratégia de Lisboa para o crescimento e o emprego, negociação final do Tratado de Lisboa, parcerias estratégicas com África e Brasil.” (…) “Queremos que todos os Estados Membros tenham uma oportunidade real de implementar a estratégia europeia Europa 2020 para um crescimento mais inteligente, verde e inclusivo. Queremos uma Europa de convergências económicas, sociais e financeiras. Queremos uma Europa de real cidadania europeia no acesso à prosperidade e à participação política, com os direitos e deveres inerentes!”
No concreto, o PS propõe: i. uma ação decisiva, abrangente e concertada para ultrapassar a crise da zona euro, completando e reequilibrando a União Económica e Monetária; ii. coordenação das políticas económicas e sociais dos países da zona euro, de forma a que os países com superavits mais elevados possam absorver mais exportações dos outros que precisam de crescer; iii. apoio à criação de empregos alternativos e à reconversão profissional e seja acionada sempre que o desemprego ultrapasse um limiar máximo; iv. completar a União Bancária e criar um fundo de recuperação bancária financiado por mutualização dos próprios bancos, de forma a proteger os contribuintes; v. complementar os orçamentos nacionais com uma capacidade orçamental própria da zona euro para apoiar investimentos e reformas e para proteger de choques económicos; vi. ação forte do Banco Central Europeu e com novos instrumentos de mutualização europeia que reduzam o peso da dívida passada e o custo da emissão da dívida futura; vii. reforçar o papel do Parlamento Europeu e articulá-lo melhor com o dos Parlamentos nacionais.
No plano institucional e da concepção da vida da união, o PS defende “uma União Europeia para as pessoas, com mais democracia que permita uma efetiva participação dos cidadãos e uma partilha quanto aos deveres, aos riscos e responsabilidades dos Estados” e, nomeadamente, como mais relevantes, o reforço da igualdade entre Estados Membros, a eleição directa do presidentes da Comissão Europeia, a criação de um governo económico europeu, orçamento da zona euro com receitas próprias (taxa sobre as transacções financeiras).
b) A CDU (ou melhor, a declaração programática do PCP) recorda a oposição do partido, desde o início, à integração de Portugal na então CEE e, depois, a adopção do euro, considerando que essa posição está demonstrada na evolução da realidade social, económica e política do país, principalmente com a crise em que se encontra. Chama a atenção, incisivamente, para as políticas comunitárias que foram mis gravosas e lesivas dos interesses nacionais, nomeadamente da agricultura, das pescas e do mercado único.
A CDU propõe-se, entre muito mais, defender: i. uma Europa de cooperação entre estados soberanos, rejeitando o federalismo e as imposições supra-nacionais; ii. recusa da diminuição do número de deputados; iii. a reversibilidade dos tratados e acordos, começando pelo Tratado de Lisboa e pelo Pacto Orçamental; iv. o fim dos chamados “programas de ajustamento”; v. criação de planos comunitários de emergência para apoio à economia; vi. reforço substancial do orçamento comunitário, com função redistributiva e resultante da contribuição dos estados-membros proporcional ao seu PIB; vii. modificação profunda da PAC e da política de pescas; viii. a eliminação de offshores e e outros paraísos fiscais; ix. a água pública e reversibilidade das liberalizações nos transportes e na energia; x. alteração dos estatutos e as orientações do BCE e controlo por cada estado do seu banco central; x. política europeia de defesa do emprego, pelo progresso e pela justiça social; xi. defesa do ambiente e salvaguarda dos recursos naturais; xii. paz, amizade e solidariedade com todos os povos do mundo; etc..
c) As propostas concretas do BE não se afastam muito das da CDU, mas partem de uma atitude muito diferente, defendendo um “projecto de esquerda europeísta (…) de refundação da Europa, (…) a gerar em torno desse projecto a confiança que a euroburocracia desbaratou e provocando uma revolução cidadã”, passando isso pelo escrutínio democrático das políticas e decisões comunitárias. 
O BE propõe i. novas políticas europeias para o emprego e o desenvolvimento; ii. a penalização dos excedentes das economias do centro; iii. a extinção das troikas; iv. a alteração dos estatutos do BCE; v. o controlo da banca e dos fluxos de capitais nas fronteiras da UE (Nota – não se fala no interior do espaço da UE); vi. a extinção de offshores; vii. o regresso da política de coesão, bem como a revisão da política agrícola comum; viii. e, como suporte destas políticas, um reforço do orçamento comunitário, por aumento das transferências funcionando como forma de redistribuição.
d) O Livre apresenta uma longa lista de propostas, como que um programa para um parlamento com poderes legislativos, que o Parlamento Europeu não tem. Não tem uma abordagem da interrelação de problemas e da crise a nível nacional e europeu, como se tudo o que for bom para a UE (?) é forçosamente bom para Portugal ou como se tudo o que Portugal necessita pode ser conseguido em Bruxelas ou Estrasburgo. 
Descontem-se algumas propostas muito genéricas (embora importantes), outras de muito pormenor, de alcance reduzido ou irrealistas, como, por exemplo, um plano europeu contra a pobreza infantil, uma Carta Europeia dos Direitos do Cidadão Sénior, políticas de proteção do Direitos dos Cidadãos Portadores de Deficiência, combate à extinção de espécies ou a imposição uma cláusula anti-lavagem de dinheiro em todos os acordos comerciais com países terceiros [JVC, piedosa intenção!…].
Fica ainda uma longa lista de propostas, em boa parte inadequada aos poderes limitados do Parlamento Europeu, e de que destaco as que me parecem mais significativas (e também, se lidas por extenso, reveladoras do europeísmo extremo do Livre e do seu quase pró-federalismo: i. revogar o Tratado Orçamental; ii. convocar uma conferência económico-financeira para resolver os problemas das dívidas, do euro e do crescimento débil, numa espécie de Bretton Woods europeu; iii. alargamento do mandato do BCE ao apoio ao crescimento e à criação de emprego; iV. criação de “uma genuína união bancária”, com um fundo financiado por fundos europeus, gerido por peritos independentes sob a supervisão do Parlamento e do Conselho; v. emissão de euro-obrigações; vi. projecto Ulisses de desenvolvimento das economias periféricas, baseado nos exemplos históricos da Tennessee Valley Authority e do Plano Marshall, pilotado por uma agência integrada com capitais do Banco Europeu de Investimento; vii. orçamento comunitário por cobrança de receitas próprias (taxas europeias, impostos sobre as multinacionais), sem dependência das transferências dos estados-membros; viii. harmonização fiscal empresarial dentro do espaço europeu; ix. proibir a privatização da água; x. determinar regras para salários mínimos na Europa  regras comuns d estraçalho digno.
3. Posição em relação ao euro
a) O PS é firme defensor da permanência na zona euro: “Queremos permanecer na zona euro, mas ela tem de ser dotada dos instrumentos que lhe faltam para termos uma verdadeira União, não só Monetária, mas também Económica, Social e Política!”. É uma posição comum a vários tipos e graus de europeísmo. Reconhece-se a disfuncionalidade do euro mas, para a resolver, porque se dogmatizou a impossibilidade de dissolução da zona euro ou de saídas unilaterais negociadas, entra-se em contradição, receitando mais do mesmo, no caminho tendencialmente federalizador ao serviço dos interesses económicos que impuseram esta configuração da Europa e do euro.
b) o PCP (ou CDU), pelo contrário, embora reconhecendo que uma saída da zona euro levanta problemas, defende, por isso mesmo, que a saída deve ser bem preparada, com um processo bem estudado, desde já, com uma transição suave e ordeira. E que, como condições essenciais, a saída deve decorrer da vontade popular, deve ser dirigida por um governo progressista e patriótico e deve proteger os rendimentos e poupanças da generalidade da população.
c) a posição do BE tem oscilado. Quando era coordenado por Francisco Louçã, a posição era claramente oposta ao abandono do euro, “aventura” apresentada como de consequências desastrosas. Provavelmente esta posição era muito determinada pela pressão de influência do coordenador, porque, ultimamente, não parece clara a posição do partido, lendo-se mesmo posições divergentes de membros destacados do partido. De qualquer forma, o manifesto do BE para as eleições europeias não aborda sequer a questão do euro, a não ser para referir a responsabilidade do euro na origem da crise europeia.
d) O Livre é frontalmente oposto a uma dissolução do euro e muito mais a uma saída unilateral, que, além do mais, considera incompatível com a manutenção na UE.
4. Programa para saída da crise portuguesa, no contexto europeu.
a) O PS não enquadra as suas propostas num diagnóstico global das origens da crise, pelo que elas se ressentem de alguma segmentação e até de contradição. O manifesto para as europeias foca principalmente o emprego, o investimento e a sustentabilidade do Estado social, principalmente por meio de políticas comunitárias, principalmente: inserção na Estratégia Europeia para o Crescimento Europa 2020; supervisão (?) dos desequilíbrios macroeconómicos europeus; condução do PEC e do pacto orçamental para reequilíbrio das finanças públicas; participação nos grandes programas comunitários que estão a ser lançados. Anote-se que o PS não só votou a favor do pacto orçamental como entende que ele pode ser útil para o reequilíbrio das finanças públicas, uma espécie de “agarrem-me senão eu mato-o” (ou, amarrem-me ao pacto senão eu “défiço”.
Em relação à dívida, o PS defende a mutualização parcial da gestão da dívida (o que parece diferir de mutualização da dívida propriamente dita) e a emissão de euro-obrigações. Propõe o prolongamento das maturidades e a renegociação das taxas de juro, mas opõe-se a qualquer restruturação que inclua a redução de montantes ou “haircut”.
b) A posição da CDU é consentânea com a sua percepção já antiga da UE e principalmente do euro como prejudiciais à economia portuguesa e lesivas dos interesses dos trabalhadores. A ideia que tem da origem da crise é a que cada vez mais é partilhada por economistas reputados. Ao contrário da vulgata desonesta da direita – em que o PS se deixa enredar para se justificar – a crise não é principalmente uma crise da dívida pública, por excesso de despesa nos últimos anos. 
Resulta de disfuncionalidades profundas do euro, nomeadamente o excedente do centro, a sobrevalorização do euro em relação às moedas periféricas, na altura da entrada, a competição pela desvalorização interna praticada pelo governo Schroeder, o crédito barato pela exportação de capitais centrais para a periferia e depois, com o seu refluxo, a descapitalização bancária numa situação de grande défice privado, uma crise bancária cujo resgate o estado providenciou.
Assim, as três principais posições da CDU são: a recusa do pacto orçamental, a reestruturação da dívida e a preparação cuidadosa do abandono do euro, como condições para a sustentabilidade da recuperação do bem-estar social, para a criação de emprego e para o investimento. 
Em relação à reestruturação da dívida, o PCP não fica pela sua mutualização ou pela negociação para redução dos juros e prolongamento das maturidades, defendendo a renegociação dos seus montantes e rejeitando a sua parte ilegítima. Propõe que, com isso, o serviço da dívida seja compatível com um crescimento económico pelo menos da ordem dos 3%, atribuindo um período de carência e indexando o valor dos encargos anuais com esse serviço da dívida a uma percentagem previamente fixada das exportações anuais do País. Assegura também a salvaguarda da parte da dívida correspondente aos pequenos aforradores e daquela que está na posse do sector público administrativo e empresarial do Estado.
c) O BE, como o PCP, também recusa a explicação reducionista e desonesta da crise, como resultante simplesmente de despotismo e assaca responsabilidades à perda da competitividade no quadro do euro e à liberalização comercial e financeira, tudo traduzido num crescente desequilíbrio das contas externas, com défices permanentes, a contrastar com os crescentes excedentes da Alemanha.
O BE recusa o pacto orçamental e, ao contrário dos outros partidos, propõe a realização de um referendo ao pacto.
Quanto à reestruturação da dívida, o BE defende-a em dois planos. No comunitário, como acção integrada em relação à dívida de todos os países da periferia e mediante mutualização, com gestão comunitária de meios centrais para esse objectivo. No plano nacional, defende, tal como o PCP e em contraste com o PS, uma reestruturação que envolva todos os factores da dívida, maturidades, taxas de juro e montantes, garantindo-se a compatibilização com uma trajectória de sustentabilidade.
d) Como se viu atrás, o Livre não apresenta propostas concretas, no plano nacional, para uma política de recusa da austeridade e de solução do problema da sustentabilidade da crise. As suas propostas situam-se exclusivamente a nível comunitário, nomeadamente a conferência económico-financeira a convocar, a mutualização das dívidas e a emissão de euro-obrigações. Mesmo a redução do montante das dívidas ficaria a depender exclusivamente do centro, por perdão da dívida detida pela comissão e pelo BCE.
*  *  *
Este trabalho comparativo serviu-me também para ir reflectindo sobre coisa elementar: em que partido vou votar? Simples: naquele que melhor me der resposta integrada e coerente a estas questões – 1. qual a sua visão da UE e, em particular, da zona euro, da sua matriz neoliberal e das suas concepções políticas e económicas hegemónicas? 2. Que políticas de emprego, crescimento, procura interna e investimento são necessárias e qual o montante dos recursos públicos exigidos? 3. É esse montante compatível com o serviço da dívida? 4. Em caso negativo, qual a proposta do partido em relação à dívida? 5. Prevendo o caso de a restruturação falhar e não haver outra (ou melhor) alternativa senão a saída da zona euro, qual a posição do partido?

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Leitura para o dia de reflexão

Com a aproximação das eleições europeias, alguns grupos internacionais de economistas têm vindo a tomar posição sobre a União Europeia, e mais enfaticamente sobre o euro. Parece-me útil fazer uma resenha sumária dessas tomadas de posição.
1. A desconstrução do euro
O documento colectivo “Deconstructing the Euro” foi publicado em 25 de Março. Os seus sete subscritores, todos professores universitários de economia, numa lista encabeçada por João Ferreira do Amaral, tomam como exemplo a progressiva debilidade da economia francesa e consideram que a austeridade não é o remédio; antes pelo contrário, só agrava a situação.
Os problemas da economia dos países problemáticos da eurozona radicam no facto de a taxa única de câmbio do euro não é adequada às diversas economias, pelo que as taxas virtuais em relação à Alemanha ficam criticamente sobrevalorizadass, agravado por, relativamente à Alemanha, os salários desses países terem crescido mais rapidamente e a produtividade mais devagar. Com a fixação imutável das taxas de câmbio, os países periféricos cada vez mais acumularão défices em relação à Alemanha, assim como permanecem não competitivos em relação a países como os Estados Unidos e o Japão [os autores não referem a China].
Os autores consideram ser irrealista esperar-se que a Alemanha perceba que o equilíbrio na eurozona e mesmo alguma tranquilidade social, de que a sua economia necessita, a leve à correcção da sua política actual, por um lado de forçar a austeridade nos outros países, por outro de manter a sua própria competitividade à custa de custos de trabalho altos, estímulo da poupança e travão ao consumo. Educados no culto da “economia moral”, os eleitores alemães não aceitarão uma mudança de política.
Assim sendo, este manifesto reclama uma reconstrução do sistema monetário, com esforços repartidos e sem que isso signifique ofensa ao espírito europeu ou regresso dos nacionalismos. Em resumo: 1. A Alemanha e a França recuperariam a suas moedas pré-euro, o que levaria a uma revalorização face ao euro. 2. Os restantes países ou mantinham como moeda este novo euro desvalorizado ou retomariam as suas moedas anteriores, desvalorizadas em relação ao marco. 3. A isto se somaria um plano de salvaguarda da estabilidade bancária e a negociação de mecanismos para a gestão das dívidas denominadas em euros.
2. O manifesto do Grupo Glienicker (GG)
“Para uma união do euro” foi publicado em 17.10.2013, no Die Zeit, por um grupo de onze professores alemães – economistas, juristas, politólogos. Partem da posição de recusa da perspectiva oficial de que a crise terminou ou pelo menos está a passar e de que os mercados acalmaram em relação ao euro, por longo tempo. Entendem que, pelo contrário, nenhum dos problemas fundamentais por detrás da crise se resolveu, nem a crise bancária, nem a crise das dívidas, nem a crise da competitividade, muito menos o empobrecimento e a crise social dos países periféricos.
Em oposição ao manifesto anterior, o GG propõe, como solução, um programa acentuadamente federalista. Não discutindo – e certamente não aceitando – a dissolução da zona euro, partem do princípio de que a indiscutível manutenção do euro exige uma integração mais forte. Parece-me ser a muito frequente fuga para a frente dos eurofílicos quando não podem deixar de reconhecer a disfuncionalidade do euro.
As propostas que formulam são conhecidas nesse campo favorável de opinião sobre a União e o euro: 
a) concordância com o tratado orçamental como disciplinador da dívida pública, complementado com uma sólida união bancária que limite os riscos de excesso de dívida privada; 
b) concordância com o princípio de que os contribuintes dos países com resgate devem suportar uma grande parte do fardo da crise e sofrer reformas dolorosas. No entanto, para evitar extremos, a Eurozona deve dispor de um mecanismo de seguro, incluindo um seguro contra o desemprego, sendo elegíveis todos os países-membro que organizarem o seu mercado laboral de acordo com as necessidades da união monetária (?).
c) reforço da democracia e do estado de direito, especialmente necessário quando as crises “radicalizam asa sociedades e ameaçam as instituições democráticas”, não se podendo aceitar que seja mais fácil à União apoiar os estados no plano financeiro do que no plano da democracia e da lei.
d) direito da União de intervir para a garantia de bens e serviços públicos que possam ser postos em causa por uma crise de um ou mais países, como, por exemplo, a continuidade de redes energéticas ou a segurança do espaço aéreo e, consequentemente, recusa de políticas nacionais proteccionistas em caso de crise. Como corolário do mesmo princípio, consideram a moeda única como imm bem comum da zona euro, cuja responsabilidade compete a todos.
e) negociação de um novo tratado da zona euro, com transferência de poderes intergovernamentais para um governo eleito por um euro-parlamento,  “capaz de agir economicamente – direito de intervenção na autonomia orçamental dos estados, negociação de pacotes de crise [JVC: austeridade? nova troika?], encerramento de bancos, garantia de um fundo de resgate, tudo suportado por um orçamento “federal” por contributos dos países membros, no valor de 0,5% do respectivo PIB.
Como se vê, defendem, no essencial, a concepção consagrada que tem substanciado, na teoria e na prática, o projecto europeu e, a meu ver, alinham de facto com a ortodoxia europeia, entendendo que os tóxicos europeus se tratam com mais tóxicos, no sentido da federalização.
3. O manifesto dos académicos franceses
“Manifeste pour une union politique de l’euro” é subscrito por uma lista de 15 universitários franceses de diversas áreas das ciências sociais, encabeçada por Thomas Piketty, membro do PS francês e agora muito conhecido pelo seu livro “O Capital no Século XXI”. Parece-me exemplificar bem a situação actual, na Europa, de convergência entre o neoliberalismo imperante no pensamento único dos governos e instituições europeias e as posições de cedência da social-democracia. 
De facto, com algumas nuanças, o manifesto Piketty não se afasta significativamente do manifesto do grupo Glienicker, que “saúdam com muito interesse”, no sentido de “fortalecer a união política e fiscal dos países da zona euro”, olhando em primeiro lugar para o papel da França e da Alemanha na economia global. O que pretendem, dizem, é levar ainda mais longe as propostas do grupo de Glienicker. A meu ver, está tudo dito.
Em relação ao que vimos do manifesto alemão, repete-se o essencial, e principalmente numa abordagem que sobrevaloriza os aspectos institucionais e formais em relação à economia, ao desenvolvimento e à solidariedade: um parlamento para a zona euro (câmara europeia), a par do Parlamento europeu, com representações proporcionais dos parlamentos nacionais dos países da zona euro e com poderes para cobrar impostos; ministro das finanças e governo da zona euro respondendo perante a câmara europeia; revisão urgente dos tratados para estabelecimento destas alterações institucionais; orçamento federal financiado por impostos directos sobre todos os euro-cidadãos e não por contributos nacionais em função do PIB, como proposto pelo grupo Glienicker.
Como pequeno piscar de olhos para a esquerda, uma proposta de harmonização do imposto sobre as empresas (IRC), com uma taxa mínima geral, à escala da zona do euro, a nível nacional de 20%, mais uma taxa federal (sic!) de 10%, evitando “paraísos fiscais". 
Também um mecanismo de mutualização da dívida, mas recuado, na linha da proposta do grupo de peritos para o fundo de redenção da dívida. Curiosamente, a este respeito, o manifesto, na linha do manifesto alemão, questiona a legitimidade de mecanismos de intervenção em crise, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade ou as transações monetárias directas (OMT), por “afectarem de uma maneira ou outra os contribuintes dos países da zona euro”.
Registem-se algumas intenções piedosas, em geral, deste manifesto. Segundo os autores, ele é necessário para  “trazer o nosso modelo social até ao processo de globalização”, “activar a democracia e as autoridades públicas (…) para recuperar o controlo e efectivamente regular o capitalismo financeiro globalizado do século XXI”.
4. O manifesto progressista
Promovido por uma rede de economistas progressistas europeus (Euro-pen) o manifesto “Um outro caminho para a Europa – Apelo para as eleições europeias” difere radicalmente dos que temos vindo a discutir. Tem uma posição económica sem ambiguidades, que põe em prioridade relativamente aos aspectos institucionais, e avança com propostas incisivas para saída da crise e alteração radical da política dogmática que tem prevalecido na Europa, com destaque para a zona euro.
O manifesto propõe cinco eixos principais de mudança:
a) terminar com a austeridade, com abandono do pacto orçamental e do PEC e substituindo o objectivo orçamental de equilíbrio estrutural por uma estratégia coordenada que permita a cada estado-membro a política orçamental adequada, quanto a estímulo da procura e investimento.
b) combate à deflação, fornecimento de liquidez pelo BCE e assunção por este do papel de refinanciador de última instância das dívidas públicas. Criação de euro-obrigações e reestruturação das dívidas. Regras da união bancária que impeçam actividades especulativas mais arriscadas, com separação entre banca comercial e de investimento. Eliminação de paraísos fiscais e centros “off-shore”.
c) expansão do emprego e redução das divergências económicas, pondo-se fim à pressão para a redução dos salários e direitos dos trabalhadores. Considerar que a competitividade deve assentar sobre a produtividade e o investimento. Estabelecimento de um salário mínimo europeu.
d) reduzir as desigualdades, defender o estado providência, através de políticas de redistribuição, de protecção social e de solidariedade à escala europeia, com mudanças profundas nos sistemas fiscais transferindo carga fiscal dos trabalhadores para a riqueza.
e) desenvolver a democracia, alargando-a com maior controlo dos parlamentos e maior intervenção dos cidadãos, a nível nacional e europeu, e impedindo “os banqueiros, os tecnocratas e os grupos de pressão financeiros ou industriais de determinarem as decisões que nos afectam a todos”.
Note-se que, na sua conclusão, este manifesto afirma que “a emergência de uma coligação progressista no novo Parlamento Europeu será determinante para pôr fim às políticas em falência, conduzidas pela ‘grande coligação’ entre o centro-direita e o centro-esquerda que até agora tem governado a maior parte da Europa [JVC, itálico meu]”.
Certamente que muita gente viu com o maior agrado que esta última afirmação não impediu que o manifesto, em relação a portugueses, para além de Francisco Louçã, tenha sido subscrito por dois socialistas, João Cravinho e Henrique Neto e por José Almeida Serra, vice-presidente do Conselho Económico e Social. Eppur si move?
5. Uma posição individual
Não se trata de um manifesto, mas vale a pena ler, comparando com eles, o artigo de Costas Lapavitsas, “The left needs a progressive euroscepticism to counter the EU’s ills” (“A esquerda precisa de um eurocepticismo progressista para se contrapor aos males da UE”), publicado no Guardian de 7 de Maio. O autor é bem conhecido entre nós por um seu livro com colaboradores portugueses (E. Pires e N. Teles), “Crisis in the eurozone”.
Lapavitsas reconhece que parte da esquerda, pró-europeia, tem apresentado propostas para os males que estão a afligir a Europa. Que rejeita a austeridade orçamental, a devastação da economia e a destruição do estado social. Que advoga políticas para a redução do desemprego. Que defende a redistribuição dos rendimentos e da riqueza. Que propõe o controlo do sistema financeiro.
Simplesmente, segundo o autor, a questão principal, que abre terreno eleitoral à extrema-direita, é que essa parte da esquerda não reconhece que nada disso é possível no quadro das instituições europeias, desenhadas desde Maastricht para serem governadas por burocratas privilegiados ao serviço dos grandes negócios, e depois por uma zona euro dominadora das políticas económicas nacionais e que endureceu os mecanismos conservadores no coração da UE.
Para Lapavitsas, é utópica a esperança na criação de “uma Europa melhor”, considerando que “os mecanismos institucionais da UE já foram demasiadamente longe para poderem ser reformados. Têm de ser desmantelados e substituídos. A esquerda deve, pelo contrário, é dar voz à frustração dos trabalhadores, enviando uma mensagem clara que combine políticas radicais com eurocepticismo progressista”.
Para isto, duas vias essenciais: 1. oferta aos estados do euro de uma opção de saída cooperativa, enquanto que, no conjunto, o euro se devia transformar num sistema de taxas de câmbio ordenadas e de controlo de fluxos de capitais. 2. compreensão da impossibilidade de um estado único europeu, por inexistência de um “povo europeu” (“demos”) e porque se tem visto que, nesta fase, o estado-nação oferece maior protecção e meios de luta aos trabalhadores contra a ofensiva dos grandes negócios.
Eu assinaria por baixo!

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Os bloqueios políticos (I)

Entre outras reacções suscitadas pela minha entrada anterior, “Defender o estado social: base de um programa de unidade?”, uma, no Facebook, vem ao encontro da nota final dessa entrada, sobre o quadro partidário actual e a necessidade da sua renovação. Escreve António Martins Coelho, prestigiado militante de esquerda, com velha experiência de luta política e agora independente: “não vai haver qualquer convergência nem agora nem no futuro entre os partidos que temos. O ponto de partida tem de ser este, o resto é perder tempo. Maquiavel está a ganhar ao Marx, batemos no fundo e é uma ilusão o Soares e o Vasco Lourenço estarem à espera de uma explosão social. O povo é sereno, como disse o "almirante", e a partir de agora começam a distribuir umas migalhas e o povo agradecido até lhes pode dar uns votos inesperados. Ficamos com outro país, destruídos muitos dos avanços sociais, e sem esperança. Como sempre, desde há séculos, perante as dificuldades emigra-se. A esquerda deixou, como quase sempre, passar o momento oportuno, agora é tarde.
Infelizmente, partilho muito desta visão, que quero chamar de realista, com alguma vergonha de que possam dizer que é antes pessimista ou derrotista.
O que eu quis fazer nessa entrada (talvez para “redução ao absurdo”) foi mostrar como mesmo uma base recuada – e expliquei porque é recuada, em minha opinião – podia ser, com boa vontade, um teste político, à vista dos eleitores, sobre o bloqueio da vida política-institucional portuguesa. Também, para os muitos que hoje alimentam o desejo de convergência de esquerda, quis mostrar que esse desejo pode reflectir, consciente ou inconscientemente, uma posição oportunista.
Os bloqueios políticos
Como já aqui tanta vez escrevi (veja-se só a última, como referência) entendo que o bloqueio do nosso sistema partidário já é irreversível e que isso só se resolve com a criação de um novo partido. Vou discutir isto, mas defendo-me desde já da acusação antecipada de irrealista: considero que é muito difícil a criação de um novo partido e muito mais se o horizonte temporal for correspondente ao deste ciclo político.
O bloqueio do sistema tem dois aspectos, claro que interrelacionados: o bloqueio das escolhas, que coloca questões de alternância e a prazo mais imediato, diz respeito à atitude psicológica dos eleitores em relação à natureza e comportamento dos partidos; e o bloqueio das políticas, que limita as alternativas, é mais profundo, não é tão imediatamente sentido pelos eleitores e tem mais a ver com as propostas políticas e o posicionamento ideológico dos partidos. Claro que o desbloqueio das políticas seria um contributo central para o desbloqueio das escolhas.
A degenerescência do nosso sistema partidário deriva de uma multitude de causas, objectivas e subjectivas, mas, afinal, todas com efeitos potencializados na rejeição pelos eleitores, com taxas crescentes de abstenção. Enumeremos, sem sobrevalorizar os aspectos ideológicos, hoje de menor valia para os eleitores. Primeiro, no pântano que se estabeleceu sucessivamente no poder:
  • O carreirismo partidário, acabando num patamar de promiscuidade entre a política e a economia, senão mesmo, em alguns casos, de corrupção.
  • A incultura política e a falta de solidez ideológica.
  • A dependência excessiva dos líderes, deixando os eleitores presos a uma lógica mediática de combate entre figuras, mas também da sensação frustrante de engano sucessivo por um e outro “mentiroso”.
Indo mais longe, no domínio político e ideológico (mas, a meu ver, menos determinante no plano eleitoral, com eleitores politicamente desmotivados ou condicionados) aquilo que contribui para os bloqueios de alternativa, como i. a negação dos conflitos de classe e do seu papel no processo histórico: ii. a negligência na defesa do controlo estatal da propriedade dos meios estratégicos de produção; iii. a aceitação de ideias básicas informadoras do neoliberalismo; iv. a redução a discurso retórico da luta contra as desigualdades e contra o afastamento das partes do capital e do trabalho no rendimento nacional; v. a recusa da recuperação da soberania perdida para as instâncias europeias, nomeadamente o caso mais recente do tratado orçamental, etc.
Segundo, na esquerda dita radical:
  • Uma imagem, não combatida com sucesso mesmo quando parcialmente inexacta, de sectarismo, rigidez ideológica e afastamento da realidade, bem como de fidelidade acrítica a um modelo político extinto.
  • A imagem longamente estabelecida, com ou sem razão, de “controleirismo” nas movimentações unitárias.
(Nota – Falo de “quando parcialmente inexacta” ou de “com ou sem razão” por não desejar que estas caracterizações sejam desviadas para a discussão da sua validade. Essas coisas existem, como “factos” políticos e, mesmo que na esfera subjectiva, ou são combatidos pelos partidos ou contribuem para o bloqueio. Negar esta alternativa é atitude de avestruz.)
  • Noutro sector, a irresponsabilidade e a imagem de inconsequência de propostas, além do que o eleitor “respeitável” considera coisas infantis.
  • Pior, a ideia de que são partidos que só pretendem fazer oposição a qualquer governo e que nunca aceitam fazer parte de soluções “construtivas”.
Aos bloqueios de origem partidária acrescem os efeitos de amplificação e distorção pela comunicação social, com destaque para o que mais chega às pessoas, a televisão. Telejornais, comentários de opinadores de serviço e debates – com um predomínio escandaloso e quase sinal de “tomar por parvo” o espectador – tratam a política sem seriedade, sem rigor analítico, sem pluralismo, ou reduzindo este a uma versão grotesca, de combate de galos. 
Da mesma forma, a redução da política a simples intrigas intra ou interpartidárias, de quem disse o quê, com óbvia valorização do tacticismo habilidoso, como um jogo a que a ética é alheia. Ou ainda, requente máximo da alienação à decadência do império romano, a transformação da política em entretenimento, em programas de círculo de amigos muito espertos e muito engraçados (honre-se a relativa excepção da Quadratura do Círculo).
Com tudo isto, parece estulto falar ainda de outra consequência do descrédito do sistema partidário, o populismo, principalmente focando as acusações onde são mais visíveis os partidos, isto é o parlamento. Pelo populismo (mas não só) morreu a 1ª República, mas bastaram dois ou três anos para se ver que há sempre um Salazar à espera.
Tentando reflectir
Embora aceite que o problema tem raízes também psicossociais e culturais (veremos a seguir) não consigo analisar o problema do bloqueio do sistema político-partidário e da chamada crise de representação esquecendo do quadro da estrutura de classes e da sua evolução. É um velho problema, que já vem dos anos 60 ou antes, o de um eventual “emburguesamento” das camadas trabalhadoras, incluindo a classe operária. Continua uma discussão viva, com a qual não quero complicar esta conversa, limitando-me a dar algumas pistas.
Em primeiro lugar, a situação objectiva (últimas duas décadas, dados de diversas fontes).
  • Redução não muito acentuada do peso do operariado industrial (mais o proletariado da agricultura e pescas) na população activa, e com contributo crescente dos imigrantes;
  • Forte aumento (20%) da taxa de assalariamento, com maior crescimento nas classes intermédias e nos intelectuais e quadros técnicos;
  • Redução da actividade manual ou tendência para situações mistas (por exemplo, no grande comércio ou na distribuição);
  • Pequeno aumento da percentagem de mulheres assalariadas, mais significativo em actividades de maior qualificação;
  • Redução moderada (cerca de 10%) do peso da pequena burguesia (trabalhadores por conta própria e pequenos proprietários);
  • Os capitalistas, incluindo os administradores de grandes empresas e os especuladores financeiros, duplicaram em número.
Estas mudanças infra-estruturais foram acompanhadas por importantes mudanças culturais, vivenciais e ideológicas. Sem preocupações de hierarquizar e sistematizar, lembre-se: maior osmose social, com projecção de valores e aspirações individuais diferentes e simpatia por visões mediatizadas de sociedades virtuais; desumanização dos espaços de vida, enclausuramento, enfraquecimento da vida comunitária; deslocação para a “periferia” (idosos, jovens, reformados, desempregados) de boa parte dos problemas; decréscimo acentuado da taxa de sindicalização, o que liga também à precariedade, particularmente dos trabalhadores imigrantes; pressão para o êxito pessoal, com cultura de competição, egoísmo e distorção ética; medo do futuro, pela crescente insegurança do trabalho; mudança radical dos paradigmas sociais, da cultura, dos lazeres, das relações familiares; o agravamento dos problemas ecológicos; etc., etc.
Não é preciso vincularmo-nos a uma perspectiva marxista para percebermos que tudo isto requestiona a dialéctica entre o conteúdo e a forma da acção política. Também que continua a haver questões centrais, de fundo e de natureza estratégica, que não podem ser confundidas com considerações imediatistas. Refiro-me, por exemplo, ao carácter de classes dos partidos. Um partido de esquerda é, por natureza, um partido anticapitalista. Não pode apelar a todos os eleitores, transversalmente, defendendo uma política social justa ou menos predadora do que a da direita. Tem de dizer claramente que está com os trabalhadores contra o capital, mostrando também que pode contribuir para a expressão política de um grande bloco de trabalhadores e pequenos patrões.
(Nota: mesmos as políticas “sociais justas”, como provado no livro agora famoso, de Piketty, não impedem que os rendimentos do capital cresçam mais aceleradamente do que a riqueza do país.)
Esta questão prende-se a outra confusão, a meu ver: o desbloqueio político à esquerda (em sentido amplo) corresponde ao caminho para a conquista de hegemonia da esquerda, à Gramsci? O que é isto? Desculpem teorizar um pouco, mas creio que se justifica, porque já li isso, coisa que me parece uma barbaridade. Começa por ser total confusão entre estratégia, movimento histórico, luta de classes; e, por outro lado, política de curto prazo, alianças, táctica partidária.
Não há uma hegemonia da direita ou da esquerda. A hegemonia é exercida por classes e, operacionalmente, pelos seus instrumentos políticos, culturais, ideológicos. Assim, falar agora em hegemonia do neoliberalismo, a que estamos a assistir, é correcto, identificando o neoliberalismo com o capitalismo tal como ele tem vindo a manifestar-se desde os anos 80. Também é obviamente correcto e ajustado à concepção de Gramsci falar-se de luta pela hegemonia por parte da classe operária (nesse tempo), cada vez mais necessariamente participante de um bloco social alargado mas coerente. Como parte fundamental dessa luta, a substituição do bloco histórico anterior (outro conceito gramsciano, isto é, a interpelação entre infra-estrutura económico-social e a estrutura cultural e ideológica).
Agora o que não há é hegemonia da esquerda, que é apenas um nível político (e ambíguo, só com significado operacional, a cada momento), não uma estrutura social, de relações de classes. Os partidos de esquerda definem-se por agirem para organizar politicamente o tal bloco social objectivamente anticapitalista, que, de certa forma, lhes é anterior. Mas também dão solidez ao bloco mostrando que as classes e camadas envolvidas têm interesses comuns. Esta relação dialéctica elementar é incompreensível se essa unidade estratégica para expressão e organização política de um bloco social for confundida com alianças (agora diz-se mais convergências) tácticas, muitas vezes apontadas a um simples ciclo eleitoral.
É claro que não estou a defender a inutilidade dessas alianças. Também, ao reconhecer bloqueios, não critico os esforços generosos de muitos que se esforçam por os combater rapidamente, apelando a um espírito unitário. Simplesmente, receio que tudo resulte em frustração, pior ainda a emenda do que o soneto.
Em alternativa, e mesmo sabendo que não satisfaz os impacientes, insisto na posição aqui tantas vezes defendida – a necessidade de um novo partido. Mas, perdoem-me o jogo semântico, não é um outro partido, mas um “Partido Outro”, desbloqueando a vida política não por diferença no plano dos outros partidos mas sim por reconstrução (dialéctica…) a nível superior, com um outro sentido da política no século XXI.
Não vai ser fácil e não será para amanhã. Exige muito trabalho militante, custa dinheiro e precisa de "boa imprensa". Mas é precioso começar a pensar, antes que venha aí uma palhaçada à italiana, ou mais uma coisa idílica de intelectuais libertários a desacreditar mais a política.
Já vai longo este texto. Concluirei amanhã, desenvolvendo um pouco o que defendo dever ser esse partido.