segunda-feira, 28 de julho de 2014

Retomando a entrada anterior - a aliança à esquerda do PS

O coro frequentemente acrítico que reclama a convergência à esquerda baseia-se na necessidade de impedir a aliança do PS com a direita e destacando-o de uma governação mais ou menos claramente comprometida com o neoliberalismo e a submissão aos ditames da União Europeia. Dizer isto é uma lapalissada e é preciso ir mais longe, mesmo sem colocar a questão que pode complicar o debate, se o PS é de esquerda. É possível essa movimentação do PS para um entendimento de esquerda e está o PS disponível? Admita-se que sim. 
Procurará o PS, sem maioria absoluta, um compromisso com outros, à direita ou à esquerda, ou prefere uma política de pêndulo, com alianças pontuais? Admita-se que vai em compromissos permanentes.
Depois, para que esse “arrastamento” do PS para a esquerda não seja um logro e uma acção sem consequências, a que compromissos podem chegar o PS, o PCP e o BE (para só falar de partidos) quando a defesa (dita como comum) do Estado social, do crescimento e do emprego exigem a sustentabilidade da dívida (com reestruturação) e a rejeição do Tratado orçamental? Mas admita-se que podem, para não nos desviarmos do objectivo central desta entrada.
Admita-se tudo isso, mas com consciência de que é altamente improvável e que há que tentar a convergência da forma mais eficaz possível. Uma constatação desde início é que a maioria dos “convergencistas” mostram tanta simpatia por hipóteses emergentes de novas organizações políticas, divisionistas, quanto hostilidade manifesta ao PCP (provavelmente por velhos traumatismos pessoais) e ao BE (por causas porventura menos compreensíveis). Assim, valorizam muito mais os novos grupos pela sua abertura ao PS do que os criticam pela sua ostensiva falta de diálogo com o PCP e o BE.
(NOTA – o que, no caso do BE, não é muito coerente com o 3D ter andado a desafiá-lo para dissolução numa nova entidade não pró-PCP e não pró-PS, mas visivelmente orientada para aliança com o PS.)
A questão principal que se põe a muitos “convergencistas” sinceros e bem-intencionados é: a pressão eficaz sobre o PS vem principalmente 1. do reforço dos partidos à sua esquerda, num amplo movimento unitário com organizações, movimentos e grupos informais de natureza social, cultural, comunitária ou de defesa de causas transversais; ou 2. de grupos minúsculos, com capacidade negocial reduzida por disponibilidade antecipada para a rendição e grupos que são campo de lutas inglórias entre personalidades?
(NOTA – É claro que a primeira hipótese também passa por idêntica pressão junto do PCP e do BE para debate sobre vícios que contribuem para o afastamento de eleitores ou sua fixação em velhos estereotipos.)
Dito isto, lembre-se que há muito se tem defendido neste blogue que o esforço de alianças à esquerda (em sentido lato, do PS e da esquerda à sua esquerda) deve ser empreendido com diferentes níveis de compromisso, de objectivos e de identidades estratégicas. Daí também diferentes processos e fases distintas. Primeiro uma aliança coerente entre a esquerda à esquerda do PS, com sentido estratégico; depois, um entendimento táctico entre essa aliança e o PS.
Tudo isto porque – até já devia haver vergonha de se escrever tal vulgaridade, mas parece ser preciso – a urgência sempre invocada não pode justificar uma acção com consequências mais danosas (a história é feita de urgências?).
Transcrevendo duas conclusões da última entrada,
A aliança entre a esquerda à esquerda do PS e este é importante e indispensável, por muitos anos, para derrotar a ofensiva do capitalismo em fase de neoliberalismo, mas passa, primeiro, pelo reforço de uma aliança mais coesa e consequente entre as forças políticas, sociais e comunitárias e os indivíduos sem partido da esquerda à esquerda do PS. 
É urgente promover-se a realização de uma grande iniciativa unitária marcadamente de esquerda, com "paridade funcional" do PCP e do BE, mais organizações, movimentos sociais, organismos comunitários formais ou informais e cidadãos que partam de pontos essenciais comuns para um programa de esquerda: combate à política de austeridade, reposição dos esbulhos dos últimos três anos, crescimento e emprego; rejeição do tratado orçamental; noção de que a dívida é insustentável e precisa de ser reestruturada, em moldes técnicos a estudar. 
Entretanto, o PCP e o BE tomaram a iniciativa de acções unitárias, mas separadas, não obstante uma reunião entre eles. O PCP, em 18 de Junho, anuncia que, “ao mesmo tempo que tem em curso uma acção de diálogo e debate com democratas e patriotas em reuniões e contactos diversos, (que) esta semana teve início com a realização em Lisboa e no Porto de reuniões com pessoas sem filiação partidária, o PCP toma agora a iniciativa de propor a realização de um conjunto de reuniões e encontros com forças, sectores sociais e políticos e outras entidades. 
Por sua vez, já em carta de 6 de Junho, os coordenadores do BE, Catarina Martins e João Semedo, declararam que “estamos empenhados nesse percurso de pensamento e articulação com vista a formas de convergência de oposição e de proposta em torno de bases programáticas claras que, gerando mobilização e entusiasmo, permitam ganhar força política, social e eleitoral. A dimensão dos problemas que o país enfrenta exige uma grande convergência das esquerdas.”, tendo-se declarado mais tarde “a necessidade de um diálogo aberto entre partidos e forças que lutam contra a austeridade, que saiba juntar energias e envolver cidadãos independentes, ativistas e movimentos sociais, indispensáveis ao esforço para a construção de uma alternativa alargada.”
Em reunião entre os dois partidos, conclui-se que há uma grande convergência, que há uma estrada comum a percorrer mas “em bicicletas separadas”. Pode causar alguma perplexidade que o esforço unitário esteja a ser desenvolvido em paralelo, com cada um dos dois partidos a convidar os seus dialogantes privilegiados. Não é mobilizador para muitos que, honestamente, se queixam de que a esquerda não se entende (embora talvez muitos desses estejam a falar da esquerda larga). 
É certo que, em política, não se deve ser voluntarista e cada coisa a seu tempo. No entanto, sem se negar a total autonomia dos partidos para desenvolverem estas iniciativas, pode-se chamar a atenção para o facto de os partidos terem uma imagem de certa forma desgastada e em parte em relação a aspectos estereotipados, de sectarismo e enquistamento. Este é um momento em que um processo unitário inovador, no conteúdo e na forma, contribuiria para desfazer clichês.
Acresce que se está a pouco mais de um ano de eleições legislativas e que ambos os partidos reconhecem ser objectivo comum “a convergência mais importante é, para o líder do PCP, o acordo em relação à necessidade de derrotar o governo e romper com a sua política.” E assumem ambos como eixos de luta “a renegociação da dívida, as condições necessárias para o desenvolvimento económico, a necessidade de uma reflexão sobre o Euro, a devolução do que foi roubado pelo governo aos trabalhadores e pensionistas, a defesa dos Serviços Públicos, entre outros” (PCP) ou “construir um amplo campo de recusa das imposições da União Europeia e de concretização de um programa de transformação social fundado no primado dos direitos constitucionais e na universalidade dos serviços públicos” (BE).
Se os dois partidos de esquerda consequente chegarem a uma plataforma comum, programática e de acção, com esta base, provavelmente não conseguirão o alinhamento com ela do PS, mas ficam em posição política mais forte e perante o eleitorado para evidenciar o colaboracionismo do PS. Mas o tempo urge (e principalmente o tempo eleitoral) para a elaboração dessa plataforma, tempo que não deve ser perdido com acções unilaterais pelas quais ficaria à espera, como acto final, a conjugação das duas correntes numa aliança comum. As pessoas estão desanimadas e descrentes, os partidos devem olhar para isso, para fora das suas sedes.
Também muitos provavelmente entenderão que uma aliança sólida não se pode circunscrever aos partidos. Eles próprios os dizem, referindo-se a outras organizações não partidárias, a movimentos e a cidadãos independentes, a quem se estão a dirigir. Ora, parece evidente que a congregação desse conjunto de organizações é muito mais fácil em torno de um bipolo partidário, evitando conotações, um aspecto sempre muito sensível para os independentes.
Sem a pretensão de ensinar o padre-nosso ao vigário, aqui ficam algumas notas sobre o que se considera essencial num processo de construção de numa aliança da esquerda à esquerda do PS (mas a dialogar depois com o PS).
1. Uma das preocupações centrais deve ser a de desfazer o mito largamente difundido (pelo PS e pela comunicação social) de que o PCP e o BE são negativistas, partidos de oposição pela oposição, partidos “sem vocação para governar” (coisa absurda, por natureza). Pessoas honestas aceitam esta noção antidemocrática de “arco da governação”, ao que se deve responder, com mais ênfase do que até agora, com a articulação entre a crítica e as propostas de acção política, nomeadamente as propostas concretizadas para acção de governo. E não bastam os programas eleitorais, que ninguém lê.
2. A declaração da nova plataforma unitária de esquerda e as suas propostas programáticas de governo devem ser logo transformadas em proposta ao PS de discussão de um entendimento de esquerda mais alargado. Não devem ficar só como desafio ao PS e devem ser vistas pelo eleitorado como uma prova de boa vontade a favor de um entendimento contra a política austeritária e neoliberal. O eleitorado julgará da honestidade de cada uma das partes.
3. A nova aliança deve fugir aos esquemas tradicionais de relação de forças entre as componentes, para que não seja um jogo de soma zero, em que alguém ganha à custa de alguém que perde. Deve ser e pode ser um jogo de potencializarão, em que todos ganham.
4. Os dois partidos devem reconhecer que, num quadro de desgaste generalizado da imagem dos partidos, e também para se diluírem crispações e velhos antagonismos pessoais de muitos ex-membros dos dois partidos, há que dar grande relevo às entidades não partidárias, formais ou informais. Pela sua actividade continuada e pelas suas posições muito próximas das dos dois partidos da esquerda consequente, parecem especialmente bem colocadas, à partida, a Iniciativa para a Auditoria Cidadã da Dívida e o Congresso Democrático das Alternativas (o que não é o mesmo que o manifesto 3D).
5. Uma das formas possívels de ultrapassagem das limitações apontadas seria a realização, no mais curto prazo possível, de um fórum para a unidade, com uma comissão promotora equitativa, com representantes do PCP, do BE, da CGTP, do CDA e da IAC, que cooptariam pessoas com actividade conhecida de reflexão e de intervenção política, mas sem serrem personalidades mediáticas. Seria essencial que esse fórum não se limitasse a ser uma realização única, antes o lançamento de uma acção persistente de debate, descentralizado e com recurso às novas tecnologias da informação e às redes sociais.
6. Para além de um programa de defesa do Estado social, de reparação dos esbulhos das classes populares e de reconquista da independência nacional no plano monetário e orçamental, é altura de propostas alternativas de acção política, nestes domínios, serem enquadradas por uma nova visão da sociedade, da cidadania e da democracia participativa, do papel do trabalho, da renovação da vida comunitária, da família e dos lazeres, da solidariedade, da interculturalidade étnica, dos valores da educação e da cultura, de uma comunicação social cultural e moralmente saudável, etc. 
Isto foram preocupações de alguns partidos ou movimentos europeus há vinte anos, altura em que os Verdes europeus e outros assumiam algumas dessas preocupações antes de base renderem aos cantos de sereia social-democrata. É hoje altura de uma esquerda a renovar-se conciliar com coerência e sem oportunismo modista o seu núcleo de valores e história com a reflexão sobre a mudança, sem deixar essas bandeiras caírem nas mãos de fenómenos político-mediáticos como o 5 estrelas, o Podemos e, até certo ponto, o Livre. Muito haverá para se discutir sobre isto. Fica para entrada seguinte.

P. S. (3.8.2014) – Congratulei-me pela disponibilidade manifestada pelo PCP e pelo BE para entabularem diligências com vista a essa aliança de esquerda consequente. Escrevi com base nas notícias de jornal. Só depois li o comunicado oficial do PCP.
Para “uma alternativa que, rompendo com a política de direita de mais de 37 anos de alternância entre PS, PSD e CDS-PP, assenta numa política patriótica e de esquerda”, (…) “o PCP toma agora a iniciativa de propor a realização de um conjunto de reuniões e encontros com forças, sectores sociais e políticos e outras entidades.” O mal é dizer-se que essa alternativa “tem como elementos decisivos o desenvolvimento e intensificação da luta dos trabalhadores e do povo, a convergência dos democratas e patriotas e o reforço do PCP e dos seus aliados na CDU.”
Parece-me óbvio que não é nada disto que eu apoio e que, nesses termos, o meu desejo de uma esquerda unida é “wishful thinking”.
Como exemplo do que ainda (sempre?) se mantém de sectarismo, quase fanatismo, de muitos comunistas, admito que mais papistas do que o papa, veja-se uma cadeia de discussão em que fui bem mimoseado: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=669561593121520&set=a.113367988740886.18583.100002030573081&type=1&comment_id=670587663018913&offset=0&total_comments=65>. Mais ainda, e muito preocupante, é vir-se nitidamente como muitos discursos marxistas-leninistas no PCP, e tristemente por parte de mais novos, são claramente neoestalinistas. É só ler alguns blogues e comentários no FaceBook.

sábado, 19 de julho de 2014

A agitação no BE

A última entrada deixou omissos alguns pontos, que se retomam agora.
a) A política de alianças e as coincidências
Muita gente verá nesta crise um passo necessário para vencimento da sua tese de “convergência salvadora”. Já muito se escreveu neste blogue a denunciar tal mito e a demonstrar o seu carácter irracional, senão mesmo oportunista. É difícil calcular o impacto desta corrente “cegamente convergencista”, porque só se dá por ela no Facebook, mas com muita insistência. Pode-se caracterizá-la como a mitificação de uma aliança de “esquerda”, uma esquerda considerada por petição de princípio, sem que se proponha sequer as bases de um programa unitário, se avalie a sua viabilidade e se criem condições para um enquadramento social do diálogo interpartidário.
Não é preciso ser-se analista muito arguto para se perceber, lendo o comunicado da Manifesto, que a posição vai buscar apoio a essa corrente de opinião, recorrendo a argumentos tão coxos como a necessidade – mais, a possibilidade – de evitar a aliança à direita do PS por influência de uma nova força política à sua esquerda, mesmo que com dimensão infantil (não só em termos eleitorais…). Esta posição ficou ainda mais manifesta quando Daniel Oliveira resolveu meter-se na briga.
Também não será provavelmente abusivo pensar em algumas coincidências. Primeiro, a simpatia manifestada, nas entrelinhas, pela candidatura de António Costa. Não prenuncia só uma futura aproximação ao PS como até já a aposta no interlocutor. mesmo as opiniões sobre questões cruciais como o euro, a reestruturação da dívida e o Tratado Orçamental têm estado em rápida guinada oportunista.
Outra coincidência poderá ser com o processo de diálogo que o PCP está a promover, envolvendo o BE. Era altura certa para os “convergencistas” se desmarcarem, dando um recado ao PS.
Só pergunto se Daniel Oliveira, depois de ter visto fracassada a sua tentativa de OPA ao BE feita pelo 3D, e não tendo assumido humildemente a posição da coordenadora do 3D de dar por fim as suas actividades, ainda continuará a tentar juntar para o seu projecto muitas pessoas do 3D sem tão sôfrega ambição política. É o comunicado do Fórum Manifesto e as declarações de Ana Drago e de Daniel Oliveira que se referem ao 3D.
b) E o eleitorado?
À falta de sondagens sobre estes acontecimentos, pode dar alguma indicação a pequena amostra das centenas de comentários “online”. Parece patente que há perplexidade e incompreensão, não sendo lógico compatibilizar o desejo de convergência da esquerda com a pulverização partidária, mesmo que se anuncie essa pulverização como passo para unificação seguinte. As pessoas sabem intuitivamente que postos os santos nas suas capelinhas não se transferem para uma igreja comum, mesmo que maior e mais rica. E ainda falta o Podemos em versão portuguesa...
A não ser que parte dos comentários, com muita ambiguidade política e simpatia PS nas entrelinhas da crítica, reflictam a posição de pessoas que ainda têm em comum: i. a ideia não rigorosa de que o PS é um partido de esquerda, adoptando elas  significados românticos e apenas historicistas do termo; ii. uma perspectiva não classista da política e do processo histórico; iii. uma exclusão muito forte, quase visceral, do PCP como força indispensável de qualquer aliança de esquerda.
Ninguém sabe bem o que é e o que vale o eleitorado “de esquerda” do PS, bem como o eleitorado potencial deste novo polo de esquerda moderada que agora aparece, esta nova espécie (como noutros países) a querer compensar a crescente deriva social-liberal do PS. Não há que especular prematuramente. É certo que se sente uma forte sensação de necessidade de mudança urgente, mas há muita coisa incerta, a amadurecer. Certo é que quem anda a agitar as ondas não pode invocar a vontade desconhecida de um eleitorado particular, que nem sequer está delimitado. Invoque-se apenas o seu direito – indiscutível – de intervirem como acham melhor e depois serem responsabilizados, também pela frustração dos eleitores.
c) Conclusão
Repetindo e recompilando muitas propostas já aqui apresentadas,
  1. A aliança entre a esquerda à esquerda do PS e este é importante e indispensável, por muitos anos, para derrotar a ofensiva do capitalismo em fase de neoliberalismo, mas passa, primeiro, pelo reforço de uma aliança mais coesa e consequente entre as forças políticas, sociais e comunitárias e os indivíduos sem partido da esquerda à esquerda do PS.
  2. Por isto, é de lamentar que, estando a decorrer processos de diálogo para fora do partido promovidos tanto pelo PCP como pelo BE, sejam iniciativas separadas e aparentemente não convergentes.
  3. O eixo fulcral da luta popular e patriótica (no bom sentido do termo) contra o domínio neoliberal é um programa comum coerente e mobilizador e não os arranjos partidários para a formação de governos, tudo indica que conjunturais e frágeis.
  4. A tese dos secessionistas de que o seu novo polo político, sem o PCP e o BE, e mais simpático ao PS, contribui decisivamente para impedir uma aliança PS-PSD (eventualmente CDS) é uma falácia. Parece a anedota dos escuteiros que iam ajudar a atravessar a rua a velhinha que não queria atravessar. Os dissidentes devem esclarecer, por imperativo de ética política, como se consegue tal milagre que, para mais, vai contra a experiência política de dezenas de anos.
  5. A defesa do estado social, de que os dissidentes fazem ponto único da sua agenda e por si só justificativa de um governo do PS com esta “nova social-democracia”, é uma bandeira aparentemente consensual. Todavia, isso torna-se numa farsa se não houver entendimento programático em relação aos seus requisitos a montante, nomeadamente a rejeição do Tratado orçamental e a preparação o mais breve possível da restruturação da dívida.
  6. A ideia de que o PS é o centro de uma salvação a curto prazo da política de austeridade, seja a que preço for, é oportunista. A história ensina que há cedências que se pagam caro e que a impaciência não é uma virtude revolucionária, por muito que custe a quem sofre até ao momento do avanço na luta.
  7. É urgente promover-se a realização de uma grande iniciativa unitária marcadamente de esquerda, com "paridade funcional" do PCP e do BE, mais organizações, movimentos sociais, organismos comunitários formais ou informais e cidadãos que partam de pontos essenciais comuns para um programa de esquerda: combate à política de austeridade, reposição dos esbulhos dos últimos três anos, crescimento e emprego; rejeição do tratado orçamental; noção de que a dívida é insustentável e precisa de ser reestruturada, em moldes técnicos a estudar. 
(Na imagem, Lúcio Quíncio Cincinato, exemplo histórico de ética republicana)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

A insustentável leveza de uma certa esquerda

13.7.2014
Creio que não terei sido o único a ficar surpreendido com as notícias de ontem sobre o Bloco de Esquerda (BE), apesar de serem conhecidas algumas tensões internas. Suscitam reflexão, quer no que se relaciona com as forças e debilidades do BE e suas implicações como exemplo da situação daquela área política quer quanto às previsíveis alternativas políticas a percorrer pelos agentes desta cisão.
O espaço geográfico ocupado pelo BE é relativamente indefinido e acidental, em muito decorrendo apenas da crispação das relações entre o PS e o PCP. Várias tentativas de o aproveitar acabaram em fracasso, como a FSP, o MDP, o PRD. Repare-se que nem sequer há coerência entre essas tentativas, com um PRD quase de centro-direita e um MDP partido alternativo mas que, por incompreensão do conceito, acabava por se definir, com dificuldade de entendimento pelo homem comum, como “nem marxista-leninsta nem social-democrata”.
Muito mais ambígua foi a apresentação de uma identidade definidora do BE. O que seria a aliança de um partido trotsquista, de um partido esquerdista ex-maoísta e reduzido ao referencial albanês e de um movimento (depois partido por OPA de outro) dissidente do PCP na sequência do frustrado golpe de Moscovo de Agosto de 1991?
Parece indiscutível que, não obstante aparecer como coisa simpática e arejada, perante a referida crispação da situação à esquerda, o seu sucesso deveu-se a factores pouco sólidos, desde logo muita empolação pela comunicação social e muita encenação política, como ainda se continua a ver, por exemplo, no Syriza e no Podemos. Também a sua base de apoio tinha alguma fragilidade ideológica, com recrutamento preferencial entre jovens pequeno-burgueses e intelectuais, com atracção também por bandeiras libertárias. Daí o sucesso das “causas fracturantes”, tidas como exemplo de modernidade (ou mais correctamente, de pós-modernidade) mas rapidamente usurpadas por outros, nomeadamente pelo governo Sócrates. Também a democracia participativa, que podia ter sido uma imagem de marca, nunca se traduziu em iniciativas visíveis, a não ser casos raros de proposta de orçamentos participativos.
É em tudo isto, e muito mais, que, a bem de toda a verdadeira esquerda, o BE deve reflectir. No entanto, não sendo eu militante do BE, seria abusivo adiantar aqui mais alguma coisa sobre isso.
E o que querem os secessionistas? Aqui já entramos no domínio público da política e qualquer um pode opinar. A sua posição parece-me muito pouco transparente e, em muitos aspectos, pouco inteligente (o que não são) ou então, consequentemente, pouco vertical.
Vem logo à ideia a questão do relacionamento com o PS. Afinal, sempre houve uma sobreposição social entre o BE e sectores do eleitorado do PS mais à esquerda. Repare-se nas oscilações eleitorais, sempre mais visíveis entre o PS e o BE do que, por exemplo, entre o BE e o PCP.
A agitação no BE, simbolizada pela demissão de dirigente de Ana Drago, tem a ver com a recusa de aliança do BE com o mini-movimento (cerca de 5000 apoiantes e apenas online) do manifesto 3D. Melhor, mais do que aliança: dissolução do BE, com cedência da “chapa” partidária, numa organização que também envolveria o Livre e que, a meu ver, era gato escondido com rabo de fora: excluindo conversações iniciais com PS e PCP, tudo indicava que privilegiariam posteriormente um trabalho de “ancoragem à esquerda” (!?) do PS.
Honestamente, a comissão coordenadora do 3D veio depois assumir a inviabilidade do seu projecto e declarar que terminava todos os contactos políticos. No entanto, por exemplo, Daniel Oliveira, em crónica no Expresso, afirmava que isso não o inibia de prosseguir essa acção, a título individual. Conhecida a sua história política pessoal e as suas ligações com esta corrente dissidente do BE, mesmo tendo já deixado o BE há bastante tempo, parece-me legítimo pensar-se que podem tudo ser nós da mesma rede.
A corrente dissidente “Fórum Manifesto” que agora abandona o BE é identificada nos jornais como o movimento político que, sob a direcção de Miguel Portas, tomou o MDP, mudando o nome para Política XXI. Não sei se é bem assim. Ao que julgo saber, muitos desses ex-comunistas, incluindo dirigentes como o próprio João Semedo, José Gusmão, José Manuel Pureza ou Marisa Matias, também pertencem à tendência unitária Socialismo, com a corrente louçanista e não parece que acompanhem os secessionistas. Já a corrente UDP, agora transformada (só em parte) em tendência Esquerda Alternativa, de Luís Fazenda, mantém-se aparentemente silenciosa neste debate. Que confusão organizativa!
A corrente Fórum Manifesto, fundadora do BE, considera que a evolução do BE não concretizou os princípios e valores que constituíram o partido, pelo que deixou de se rever nele. Seria então indiscutível o direito, e até a coerência, de uma desvinculação, mas o que é estranho é que seja uma decisão colectiva, o que, habitualmente, significa a vontade de continuação de uma acção política conjunta.
Considera também que era "compromisso matricial do BE a construção de pontes e o fomento do diálogo entre as esquerdas. A memória é curta. Quem se lembra da arrogância frequente do BE e de muitas atitudes suas de sectarismo dificilmente acredita em tão piedosas intenções.
Diz também o Fórum Manifesto que quer “contribuir para a formação de convergências fortes e credíveis à esquerda do PS, com claros objectivos de influenciar a governação do país”. Não percebo de todo. Com quem se pode fazer essas convergências à esquerda do PS? Com o PCP? Não passa pela cabeça de ninguém que esta corrente o queira fazer. Com movimentos sociais, sem implantação eleitoral e de militância reduzida a momentos ocasionais? Ou com o Livre, acrescentando aos seus 2% algumas décimas que a corrente secessionista trará do BE?
Ou, de facto, o que está em causa é mais uma oferta, por ora encapotada por vergonha, de uma muleta para o PS, talvez na onda costista? A pretensão do Fórum de que a sua futura acção tenha “claros objetivos de influenciar a governação do país neste momento de urgência nacional” parece legitimar a ideia de que a sua intenção seja colocar-se num campo “respeitável” de partido de governo, obviamente que com o PS. Claro que não tem nada de mal, mas é preciso saber-se em que termos e com que condições. 
Para já, o que ficamos a saber é pela negativa: que a tendência Fórum Manifesto critica a “imagem de um partido cada vez mais virado sobre si próprio, indisponível para o diálogo e para a convergência com outras forças políticas à esquerda; centrado no protesto, e por isso indisponível para estabelecer compromissos efectivos de governação”. Que compromissos, a que preço, com que objectivos? Aguardo resposta, com curiosidade…
Anote-se também que, não se apresentando nada de radicalmente novo e diferente como ideia e forma de acção política, apenas simples movimentações tribais, porventura contaminadas por protagonismos pueris, politicamente, contribui-se perigosamente para a confusão e descrença do eleitorado.
Relembro que, na origem, os agora secessionistas representaram um dos dois grupos que saíram do PCP em 1991. É sina das dissidências comunistas darem em namoro ao PS? Foram os pinamouristas, Vital Moreira, recentemente a Renovação. Agora os acompanhantes de Miguel Portas em 1991?
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14.7.2014
O texto que antecede estava para ser publicado hoje de manhã, não fosse ter lido hoje uma notícia, “Ana Drago e Daniel Oliveira admitem aproximar-se do Livre e do PS” que confirma o que escrevi atrás, como hipótese fundamentada. Muito se mexe Daniel Oliveira! 
Vamos então ter uma grande novidade política, com a junção de Ana Drago e mais companheiros do Fórum Manifesto (30, 300? 1000?), de Daniel Oliveira e os que, do manifesto 3D, honestamente extinto, ficaram com ele como irredutíveis gauleses da convergência a todo o preço e mais o Livre, outro paladino da convergência.
As coisas ficam mais claras. O que separa estes componentes? Aparentemente nada. Justiça se lhes faça, as suas posições encaixam-se com coerência, não obstante Daniel Oliveira, no Expresso, ter criticado forte e feio a criação do Livre, assim como ter considerado então que o Livre ou um novo partido não conseguiria “ancorar” o PS a uma aliança de esquerda, obrigá-lo a adoptar uma política antiausteritária e forçar o PCP e o BE a uma postura de governo, tudo coisas que agora vêm justificar esta nova movimentação política.
Algumas declarações de Drago/Oliveira são inadmissíveis, porque não podem ser assacadas a falta de capacidade mental. “Os partidos servem para oferecer escolhas políticas às pessoas que tenham uma consequência na sua vida. Tem de haver uma consequência e não pode ser uma afirmação de princípios que não tenha depois uma disponibilidade para levar avante (com todos os constrangimentos que conhecemos) uma via diferente deste empobrecimento perpétuo (…) Uma posição exclusivamente de princípio à esquerda, mas sem consequência alguma, tem pouca utilidade”. Quer isto dizer que necessário é dar esperanças de sucesso eleitoral, oferecer “consequências” (sic, ?) seja a que preço for, mesmo abdicando dos tais “princípios à esquerda”? Não posso crer em tal descarado oportunismo.
Depois, Ana Drago, criticando a direcção do BE, “recusou hoje a exclusão automática do PS na construção de uma alternativa política (…). Excluir à partida o PS de uma alternativa política que permita resguardar o país, o Estado social e permita oferecer um futuro diferente; excluir à partida o PS quando ainda está a fazer um debate interno e ainda não se sabe exatamente o que vai apresentar aos portugueses, isso é desistir da luta, é desistir de ter um Governo com uma parte da esquerda em Portugal.”
Isto não é honesto. A posição do BE foi bem diferente: “não dar qualquer apoio a um governo, mesmo que dirigido pelo PS, que prossiga políticas de austeridade como as impostas pelo Tratado Orçamental”. Escamotear a diferença entre "por ser do PS" e "apesar de ser do PS" é intelectualmente escandaloso.
E lá vem o actual “debate” interno no PS, que certamente vai mostrar grandes diferenças quanto à austeridade, ao tratado orçamental, à reestruturação da dívida (nem é oportuno falar disso, segundo Costa)... Muito excitados com essa cega-rega do PS andam muitos independentes quase-PS.
Finalmente, e o mais importante, a tese Drago/Oliveira/Tavares de que “o problema da esquerda à esquerda do PS em Portugal, durante muitos anos, foi uma incapacidade de puxar o PS para a esquerda”. (…) Uma esquerda que sabe o que é fundamental tem de obviamente desafiar o PS para a construção de um eixo programático - um eixo que salvaguarde o que é fundamental e permita a construção de um futuro diferente. Esse é o desafio”.
Podem explicar-me como é que o PS vai sentir-se obrigado a corresponder a esse desafio, se entender que prefere uma aliança à direita ou até um jogo de “chantagem” de um governo minoritário com alianças pontuais à esquerda e à direita?
“Objectivo principal das movimentações no perímetro do Bloco é impedir que os socialistas cedam à tentação de fazer alianças à direita”. Podem explicar-me como é que se amarra o PS à esquerda e se impede uma sua aliança com a direita ou parte dela?
Podem convencer-me, e a muita gente, de que a vossa posição não é mais uma oferta submissa e oportunista de serviço ao PS (a troco de quê?)?
Se não podem, não estaremos perante um gritante embuste político?