terça-feira, 29 de novembro de 2016

Pode-se opinar livremente sobre Fidel?

Milhões de cubanos viviam sob Batista um regime de miséria, podridão, prostituição, casinos americanos, mafia (ver Padrinho II). Além do mais, depois da colonização espanhola e do protetorado americano, a luta era anticolonialista. Os escritos de José Martí têm muito mais a ver, com a independência nacional, do que com uma revolução socialista.
As primeiras lutas de Fidel, desde Moncada até ao desembarque do Granma, até à guerrilha, têm muito mais a ver com esta generosa mas desintegrada luta de sistemas baseada na visão quotidiana da pobreza, da exploração. Em nada se pode ler uma teoria do poder revolucionário.
Hoje, para muitos, Fidel foi um ditador comunista. Deixo de lado o adjetivo comunista, muito complicado em relação a Fidel. Não o era no início da sua atividade revolucionária. teve de ter muitas relações e debates com o PCC, que nunca foram fáceis. A fase da independência até ao boicote foi de luta política intensa mas infelizmente fracassada. Cercada quase até à asfixia, Cuba rendeu-se ao dogmatismo soviético, tão contrário à imaginação e riqueza de potencial ideológico (até marxista) da revolução cubana.
E é Cuba um exemplo típico de uma ditadura comunista, à soviética? Não estou certo. Fala-se de milhares de mortos opositores. Nunca vi relatado um caso concreto, a não ser o do general Ochoa, que se enriqueceu em Angola com comércio de marfim.
Cuba tem um sistema económico deficiente, com excesso de propriedade estatal, mas um sistema político de poder popular exemplar, sem as distorções corruptas, da nossa democracia parlamentar. Tem presos políticos, mas não sei bem como. Por direito de expressão, coisa para mim sagrada? Só leio notícias genéricas, não concretizadas. 
Mas o que é ser ditador, no caso de Fidel e de um revolucionário?
Primeiro, o que é ditadura? Parece fácil a definição: violação da constituição, dos direitos humanos, nas variadas declarações. Mas não pressupõe isto a plena capacidade das pessoas para pensar e exercer a sua cidadania?
Hoje nem é preciso lembrar os ensinamentos dos clássicos sobre a ditadura do proletariado, conceito pouco compreendido. 
Basta pensar que ditadura, hoje, já não é ter presos políticos e censura. É essencialmente ir contra a opinião maioritária. Mas como se faz esta opinião? Sentado a beber televisão? A ouvir dia a dia a cultura orwelliana das empresas? A ler diariamente ou a assimilar na conversa de amigos a conversa neocapitalista que vem desde a descrição do emprego ao modo de viver quotidianamente, na família, na ausência de vida comunitária?
Tudo depende da visão que se tem da realidade capitalista e da sua superação.
O sistema capitalista e a sua ordem são inseparáveis. Ela inclui a democracia representativa, a liberdade de iniciativa ideológica-política, a liberdade de expressão.
Democracia representativa. Sistema partidário clientelista, corrupto, carreirista, sem valores e ideais. Sistema fechado, com grande dificuldade de alternativa.
Liberdade de iniciativa ideológica-política. Dificuldade enorme de consagração legal de novas iniciativas e propostas de partidos, constrições formais à democracia direta. Conformação da comunicação social a um bombardeamento diário com base nas notícias de índole partidária, com menosprezo do social.
Liberdade de expressão. Não fosse a capacidade de desabafo do facebook, onde estão os meios para a liberdade de expressão? A maioria, tão alienada, nem pensa nisto. Os intervenientes, nem sabem como atuar. Os jornais tinham aberto espaços de opinião. Hoje restringiram-nos a uma lista de colunistas fixos, contratados, a parecer pluralismo. Onde é que o cidadão fora do sistema pode publicar um artigo de opinião?
Este é o preâmbulo necessário a um artigo seguinte: ditadura revolucionária.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Saúde pública - ciência e ideologia

Cada vez mais se esbatem as fronteiras entre as ciências naturais e exatas e as ciências sociais. É bom, mas é necessário clarificar essa relação no espetro da ciência. Sem me querer desviar do intento desta nota, fico por algumas características essenciais do que devem ser os critérios mínimos para a caracterização como científica de uma investigação em ciências sociais: racionalidade na hipótese, na relação entre os antecedentes que conduzem à investigação, objetivação do problema, quantificação e tratamento correto dos dados, isenção ideológica.
Numa área que indiretamente me diz respeito, a saúde pública (SP), parece-me haver uma grande mistura entre trabalho científico e trabalho “ensaístico”.
A SP começou por ser, e até ao meu tempo de jovem médico, quase que exclusivamente uma área de investigação estritamente baseada na ciência em sentido convencional. Ou era epidemiologia, um ramo particular da estatística, para conhecimento da situação da saúde e da doença (não só das doenças infecciosas) nas suas diferenças étnicas, geográficas, sócio-económicas, culturais, etc., até, hoje muito importante, nas consequências para os cuidados nas viagens para destinos exóticos Ou era investigação, com ensinamentos práticos, sobre prevenção das doenças e promoção da saúde, com relevo para a investigação sobre vacinas. Tudo isto é, indiscutivelmente, ciência.
Depois, começou a vaga das políticas da saúde: saúde comunitária, sistemas de saúde, saúde na globalização, etc.. Começo logo por desconfiar da associação de termos política e investigação. É raro eu ler um trabalho em “ciência política” em que não seja evidente um desvio ideológico.
É o mesmo no caso de muita coisa dita de SP, não mais do que discussão de questões sem critério científico, sobre a política e organização institucional da saúde. Sem análise de dados, sem estatística, sem comparações parametrizadas, muitas vezes sem qualquer estudo de terreno, tudo em trabalho de gabinete, ideológico, literário, mas certamente não científico. Nem sequer com recurso a dados objetivos, cientificamente ratados, sobre as condições sanitárias concretas.
Não falo por falar. Embora não goste de sobrecarregar os leitores com muitos dados concretos e referências (mas forneço-os sempre que pedirem) faço sempre trabalho de casa antes destas notas. Li vários artigos de três eminentes especialistas da Harvard T.H. Chan School of Public Health. Confirmam inteiramente o que escrevi. Mesmo os de política da saúde são objetivados e quantificados.
Li depois alguns de eminentes investigadores portugueses. Tudo literário, opinativo, não objetivado. Perguntei-me: em que difere isto de artigos de opinião em jornais, tantos que escrevi, por exemplo sobre política universitária? Mas nunca inclui essas coisas no meu currículo científico.
Falei de saúde pública porque julgo saber do assunto. Mas não se passará o mesmo em outras “ciências sociais”? Antes que me façam uma crítica óbvia, isto é uma pergunta, não uma afirmação generalizante.
(Imagem: o escudo da Harvard T.H. Chan School of Public Health)

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Orçamento de 2017, a ocasião de todas dúvidas

Está visivelmente em curso o jogo de espelhos no conjunto PS e partidos apoiantes, mas principalmente nestes, da preparação do OE17. São repetidas as declarações do BE e do PCP no sentido em que a principal responsabilidade pelo governo e orçamento é do PS, que esta solução é o mal menor, que está longe dos objetivos dos partidos da esquerda-esquerda e, até, a relembrar que o PS e o governo não são propriamente de esquerda.
Compreendo, mas parece-me um esforço só para militante ver e sem consequências para o eleitor e a opinião dos TV-sentados. Também sei que a grande maioria dos que, nesta massa, sofreram com a austeridade fanática, esperam do governo a melhoria da situação e pouco se importam com etiquetas políticas, só existindo para eles dois termos, Costa e Passos. Mas são os que, enquanto não se virem desesperançados da “geringonça”, penalizarão fortemente qualquer rotura pelo BE ou PCP (claro que o PS nunca vai tomar e assumir a iniciativa de rotura).
Os dois partidos de esquerda-esquerda estão prisioneiros e, o que, até agora, tem justificado como do mal o menos parece-me que começa a parecer muito pouco. É certo que austeridade foi completamente contida, mas a reversão foi muito limitada e não houve efeitos no crescimento pela procura e no investimento. 
Até quando os apoiantes do governo vão conseguir mobilizar as suas zonas sociais de influência para manterem expetativas positivas? É a minha grande dúvida acerca do OE17. Mais 10 euros nas pensões?
E o que vai ser o apertão europeia, mesmo que em relação a um OE só ligeiramente desviante do dogma europeu, e pela segunda vez depois do caso tolerado de 2016,mas num quadro europeu excepcional?
Mas, para além desta questão europeia, mais relacionada com o Tratado orçamental e os limites ao défice, que pode criar grandes problemas ao apoio BE-PCP ao governo do PS, ainda é mais funda a divergência em relação ao euro e à dívida e seu serviço.
Aceito que as divergências em relação ao euro não ponham problemas a curto prazo. Ninguém de bom senso (e o PCP é realista) põe a questão do euro a curto prazo, tanto mais que ficaria isolado sem o BE ter uma posição clara sobre o assunto. Já a dívida é diferente, pelo significado importante do seu serviço (essencialmente, juros e amortizações contratadas). A meu ver, essa economia é essencial para se ir mais longe no investimento do que a simples ginástica orçamental que se tem feito no quadro do tratado orçamental.
O PS é absolutamente contrário a uma reestruturação da dívida e não creio que seja possível demovê-lo. BE e PCP tem posições diferentes mas que julgo facilmente conciliáveis. Difícil, ou impossível, será conseguir a anuência do PS.BE e PCP vão aguentar isso até ao limite, é perfeitamente compreensível. 

Mas chegará um ponto em que as duas posições serão irremediavelmente antagónicas, porque a questão do serviço da dívida e a necessidade dos seus decorrentes recursos passará para as interrogações do eleitorado. Então, BE e PCP tirarão as consequências. Quando? Ninguém poderá dizer, hoje. Mas é o ponto crítico.

Julgamentos com júri?

O juiz.conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, figura muito respeitável, propões hoje no Público, num artigo sobre a reforma da justiça, “uma justiça participada pelos cidadãos, dando prevalência ao júri, à intervenção de juízes sociais e à participação de assessores técnicos qualificados.” Não tenho a mínima competência para discutir juridicamente com o autor, mas esta não me parece uma questão meramente jurídica.
À primeira vista, parece uma conquista democrática que, se não erro, já vem da Magna Carta, o julgamento pelos pares. Mas nem tudo o que parece é.
Logo por coincidência, tenho estado a ver o documentário em episódios da Netflix, “Fabricando um assassino” (“Making a murderer). Não garantindo que o documentário é fidedigno, embora todo feito com vídeos oficiais, dá para pensar sobre coisa que já há muito me suscita dúvidas, o sistema de júri. Em cinema, até já é coisa antiga, com os “Doze homens em fúria”.
Muito frequentemente, os casos judiciais são hoje muito mais complexos e as modernas tecnologias forenses exigem boa formação científica para a sua avaliação. Não admira que, entre nós, só se peça júri em casos “imediatos”, tecnicamente simples, mas carregados de emotividade e de reação pública.
Sabemos das histórias que havia todo o cuidado em manter os jurados isolados, sem conhecimento da informação sobre o caso, principalmente das declarações da defesa e da acusação (no documentário, vê-se a sua importância, em época televisiva, para a construção de uma opinião pré-veredicto). Isto hoje é impossível, com TV, net, sms, a menos que se mantivessem os jurados em prisão, incomunicáveis. Muitas vezes, a presunção de inocência, base civilizacional de justiça (contra os julgamentos de Deus e coisas que tal) é substituído por presunção de culpa.
Abundam também os testemunhos de jurados com juízos preconcebidos, sem capacidade de discernimento para analisar os dados objetivos e influenciáveis pelos truques dos advogados, não obstante os inócuos avisos do juiz. Também, como diz um jurado no documentário, esses jurados teimosos e asininamente convencidos tendem a vencer os outros pelo cansaço. No “Doze homens em fúria”, o jurado personificado por Henry Fonda era raciona, praticava a dúvida metódica, era inteligente e assim convenceu os outros. Mas provavelmente a maioria dessas situações é ao contrário.
Mss provavelmente o maior problema seja a incapacidade dos jurados para avaliar corretamente o valor das provas técnicas laboratoriais. Não é fácil a um não cientista lidar com os conceitos de margem de erro, de falso positivo e de falso negativo. Por exemplo, no documentário que tenho estado a ver, um dos elementos que mais deve ter pesado na condenação de Steve Avery foi a prova de que o sangue era dele e não de uma amostra colhida pela polícia, por esta conter EDTA e não ter sido detetado esse composto no material de prova. Ora é muito menos arriscado um resultado positivo (“o sangue é de Avery”) do que um negativo (“NÃO contém EDTA”). Depende da sensibilidade do teste, da calibração do aparelho que já não era usado há anos, muitas outras razões. Se um coletivo de juízes, com peritos, pode ter dificuldades, muito mais doze cidadãos comuns, semianalfabetos em muitos condados do midwest americano, poderem chegar a uma conclusão racional.
E o “beyond a reasonable doubt”? Há coisa mais difícil de definir?
No caso americano, principalmente rural, bem descrito no documentário e não me parece que importante entre nós, avulta ainda o papel da policia. Ela é de grande confiança popular. Sheriffs, acusadores, muitas vezes os juízes, são eleitos. Representam a ordem em comunidades ainda com raízes na selvajaria da conquista do território. Pô-los em dúvida, muito mais acusá-los de crime (no caso, armadilhar um caso com falsificação de provas) é ir contra o sentimento geral do povo e do júri que dele emana.

Na complexibilidade atual, prefiro o sistema de coletivo de juízes, treinados, educados, ao menos,  capazes, em princípio, de se isolarem das pressões emotivas da opinião pública e com o sistema de sabedoria secular do “juiz de fora”. Com capacidade para estudarem e ouvirem opiniões especializadas sobre questões de alta tecnicidade. E com recurso a um tribunal superior com capacidade de apreciar a matéria de facto.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A armadilha da plataforma de governo

Há dias, o BE, pela voz de Catarina Martins e aparentemente desmentindo o que disse na véspera (ou então meteu os pés pelas mãos), propôs que, em caso de sanções, houvesse um referendo, não se sabe bem a quê mas presume-se que ao Tratado orçamental (TO). Ontem, Jerónimo de Sousa propôs a convocação de uma conferência intergovernamental (CIG) da UE com o mesmo fim, o da revogação do tratado.
São ambas propostas irrealistas, sem sentido prático e objetivamente enganadoras da opinião dos eleitores. Fico menos surpreendido no caso do BE, que nos habituou a uma mistura um pouco surreal de boas posições políticas e de infantilidade ou demagogia. Pelo contrário, o PCP costuma ser sisudamente sério, mesmo que com a imagem de “cota”, angolicismo que os nossos jovens agora usam.
O que os faz convergirem neste tema? Tem a ver com o seu compromisso na plataforma de governo? Antes de responder, alguns dados para esclarecimento.
Não vou insistir na questão do referendo, que tem sido bem escalpelizada, com destaque para a crítica (com alguma dose de autocrítica) de António Filipe. A menos que se subverta tudo desde a raiz, denunciando a convenção de Viena que rege o direito internacional em relação a tratados, não podemos facilmente, sem acordo de todas as partes, desvincularmo-nos de um tratado que firmámos e ratificámos. Só por via de revolução, claro. E isto, contra o que diz o BE, seja o tratado um tratado da UE (que o TO ainda não é), seja o que de facto ele já é, tratado assinado e referendado e sem cláusulas de previsão de denúncia por uma das partes. 
Como também parece não merecer dúvidas que o referendo seria inconstitucional, para além de, muito objetivamente, depender do crivo discricionário do Presidente da República.
Lembre-se, todavia, como pessoas ligadas ao BE bem insistiram, que o PCP, agora crítico desta proposta do BE, também repetidamente a fez. É certo que com uma diferença essencial. Na maior parte das vezes, propôs o referendo, sem sucesso, como passo prévio, antes de ficarmos presos pela assinatura e ratificação dos tratados.
E o que é a CIG, agora proposta pelo PCP? Não é novidade, esta proposta. Foi feita, em relação à dívida, a proposta de uma variante de CIG no já esquecido manifesto dos 74. O LIVRE e todos os escritos de Rui Tavares, quem diria que antecipando o PCP!, defende sempre a solução dos problemas europeus vinda milagrosamente por conversão das potências do mal, reunidas em CIG iluminada pelo espirito santo. E, da mesma forma, outros movimentos europeístas, como o Plano B de Mélenchon e o DiEM de Varoufakis.
Uma CIG é um dos mecanismos previstos no Tratado de Lisboa para o processo de revisão de tratados europeus. Primeiro erro do PCP: o TO ainda não é um tratado europeu, até ao fim do período quinquenal de experiência. Não pode, portanto, ser revisto por uma CIG. A CIG não é mais do que uma reunião de representantes de todos os estados membros, para aquele fim específico.
No processo de revisão ordinário de um tratado europeu, qualquer estado membro, o parlamento europeu ou a comissão, apresenta ao conselho europeu (chefes de Estado e de governo) uma proposta de alteração (e, teoricamente, de revogação) de um tratado. Se a maioria dos estados for favorável, convoca uma convenção, com representação de várias entidades, incluindo os parlamentos nacionais, para fazer uma recomendação, por consenso, ao conselho europeu. Só então este convoca a CIG, que decide por unanimidade.
É por esta via que o PCP, sempre realista, está a prever a revogação do TO e, porventura, de todo o capitulo sobre o euro introduzido pelo tratado de Maastricht e transitado para o de Lisboa? Com a Sra Merkel a abrir uma garrafa de champanhe na votação unânime da revogação do TO? Ninguém pode acreditar. Então o que se passa?
Ponto prévio, sobre o atual modelo governamental português, com declaração pessoal. Parece indiscutível que, depois do governo anterior, troikiano e austeritário, há forte apoio à manutenção deste governo, mesmo com muitos sapos a engolir. Não é só uma questão prática; é também a concretização, para muitos milhares de antifascistas da época e seus sucessores, do mito da convergência de esquerda, mau grado a dificuldade atual de definir a esquerda.
No panorama europeu, é do melhor que se pode esperar. Nos tempos de hoje, de ofensiva capitalista mesmo em crise, não devemos imaginar que, ao elegermos um novo governo teremos grandes mudanças. As alterações globais de fundo dependem de uma grande crise económica, social-humanitária ou ecológica, num nível internacional.
Pessoalmente, sou claramente apoiante do governo e da sua plataforma de sustentação, mas em princípio e com atitude crítica. Tenho defendido que tem um grande calcanhar de Aquiles por simples razões: 1. a política de reversão da austeridade tem de ser proativa, exige crescimento, investimento e aumento da procura interna, o que não se compadece com as regras do TO; 2. um grande constrangimento ao cumprimento das metas oficiais de dívida e défice é o serviço da dívida; 3. não há o mínimo entendimento entre o PS no governo e os partidos da esquerda que o apoiam nestas matérias.
Algum irrealismo dos cenários macroeconómicos nacionais e internacionais desenhados pelo PS, numa opção de partida europeísta e respeitadora das regras, e o que a realidade já mostrou entretanto parecem dar razão a esse esquema que descrevi.
É certo que, sob ameaça do ónus de anularem a primeira tentativa de entendimento de esquerda em décadas, BE e PCP vão fazer tudo por tudo. E vai ser cada vez mais difícil, porque a reversão da austeridade tem sido escassa e porque não há uma política que faça prever mudanças significativas, nomeadamente em relação à banca, à fiscalidade, à melhoria bem visível dos serviços públicos, etc. Um dia destes, os eleitores, nomeadamente os de esquerda, vão começar a perguntar-se se a herança de Passos está mesmo a ser desfeita definitivamente e sem ambiguidades, mesmo descontada a inevitável dose de compromisso ambíguo da política.
O BE e o PCP sabem isto, e devem ter algum sentimento de estarem reféns. E, no caso da habitual oscilação do eleitorado do BE, até é bem possível que muito do eleitorado de 2015, socialista descontente, agora simpatize com a imagem de novo PS à esquerda dada por António Costa.
Volto ao tal calcanhar de Aquiles. A questão europeia (TO e reestruturação da dívida) é o ponto de clivagem que BE e PCP ainda vão segurando, mas que, com a evolução da economia nacional e internacional (e nem sei avaliar as consequências do Brexit) muito possivelmente explodirá no OE de 2017.
São lutas políticas terríveis, a exigir enorme convencimento, motivação e mobilização populares. A esquerda, refém, não o está a fazer. Está a privilegiar claramente o plano institucional. E até está a ir na corrente, incidindo mais atenções no momento, o das possíveis sanções – logo, o TO – do que no fundo, a reestruturação da dívida.
Eu compreendo a dificuldade e não queria estar no papel dos dirigentes (e militantes) do BE e do PCP. É preciso esticar a corda sem a partir e ao mesmo tempo, sabendo que os outros vão acabar por a soltar (pressão europeia), estar preparado para o consequente efeito de “cair de costas”, como se conhece do jogo da corda.
Uma coisa, no entanto, é certa. As pessoas cada vez mais querem ser informadas e poderem refletir. Não são estúpidas e a hegemonia exercida pela comunicação social neste caso não influencia, porque pera ela é coisa do “campo inimigo”. A proposta de referendo do BE e a proposta de CIG do PCP igualam-se em demagogia e como manobra de diversão em relação a um compromisso com o PS que está no fio da navalha.
A esquerda cada vez mais vai viver, nos próximos tempos, enormes desafios políticos, estratégicos e táticos. Apoio esta solução governativa, desejo-lhe o melhor, mas tenho muitos receios.
NOTA – Como habitualmente, dou notícia no Facebook destas entradas no blogue. Pelo perfil de centenas de leitores meus no FB, sei que são militantes ou simpatizantes do PCP e do BE. Este é um caso em que fico com esperança em que esse interesse pela minha escrita seja pela independência, objetividade e frontalidade das minhas críticas aos dois partidos, a quem também elogio quando deve ser.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Referendo europeu, segundo o BE

Há dias, citei na minha página do FB as declarações de Catarina Martins sobre a eventualidade de um referendo europeu. A intenção era jocosa, sobre possíveis dificuldades (fictícias…) da “geringonça” mas, reconheço que justamente, tive comentários negativos. O assunto merece discussão, mais do que uns “sound bites” do FB.
Referendo? Porque causas? Sobre quê?
Antes da discussão das declarações para a comunicação social, convêm ver o que diz sobre isto a moção A, largamente ganhadora, e que serviu de base á eleição de Catarina Martins como coordenadora.
No seu capitulo “Defender Portugal do diretório da União Europeia”, o que monta para esta discussão, lê-se:
“Vencer a austeridade exige assumir o confronto com as instituições europeias, que as-  fixiam o campo das escolhas democráticas. (…) Não é hoje credível o projeto de uma redefinição democrática das instituições europeias ou que a disputa da relação de forças se faça a nível europeu. O combate à austeridade e ao autoritarismo exige a disputa de maiorias sociais em cada país, impondo instrumentos de soberania popular que permitam corresponder à vontade de rotura com a usura da dívida e a austeridade. Esse confronto não dispensa a cooperação e solidariedade das forças progressistas na Europa, mas convoca toda a esquerda para o confronto com as instituições europeias. É com essa orientação que o Bloco de Esquerda dialoga com outras forças políticas e movimentos sociais, no Partido da Esquerda Europeia como noutros fóruns.” 
Boa formulação, em aberto, assim como mais adianta se fala da dívida a meu ver com muito pouca concretização, comparado com esse “sound bite” do referendo”:
“A dívida pública e a do sistema financeiro são as maiores ameaças às contas do Estado e constituem os maiores problemas estruturais das contas nacionais. Renegociar a dívida pública e realizar uma intervenção sistémica sobre a banca privada, assumindo o controlo público, são processos essenciais para proteger os recursos nacionais, criando condições para o investimento, emprego e o reforço do Estado Social. O combate à corrupção, ao rentismo e à evasão fiscal, incluindo o cerco aos off shores, permite transparência no uso dos recursos públicos e responsabilizar quem lucrou com a crise e fugiu às suas obrigações fiscais.” 
Inteiramente de acordo. E os acordos com o PS?
As declarações de Catarina Martins não se encaixam nesta prudência, compreensível se se pensar na “geringonça”. São gritos de um dia para esquecer no seguinte, principalmente se se tiver em conta as reações negativas dos parceiros.
Começam por ser uma sucessão de “se”, em que não se percebe se um “se” se todos são determinantes, ou que conjunto de “se”. Se houver sanções? Em que montante? “Está-se a declarar guerra a Portugal e fica na ordem do dia “um referendo para tomar posição contra chantagem”. Qual é a pergunta exata desse referendo? Que chantagem? As sanções financeiras do incumprimento, a política de austeridade, o Tratado orçamental, o euro, a União Europeia? Até onde irá o referendo? À denúncia do Tratado orçamental, à saída do euro, à saída da UE?
Não se pode esquecer também que o referendo é uma faca de dois gumes. E que pode ser um grande tiro no pé. O referendo só é válido se a participação for maioritária. Alguém duvida de que, sem muito mais debate público e mediático, as pessoas, formatadas pela ideia adquirida da “Europa connosco” e com largo domínio pró-europeu da comunicação social, precisam de muito mais esclarecimento? E isto para não falar dos requisitos constitucionais da convocação de um referendo: a proposta é da Assembleia da República e a decisão final é de exclusiva competência do Presidente. Não é arma para se anunciar no calor de uma reunião mediática.
Desculpem a brincadeira do meu “post” no Facebook. Espero ter agora esclarecido a minha posição.

sábado, 25 de junho de 2016

A esquerda tem de imaginar uma nova Europa

Quando tenho um palpite errado, não o disfarço depois. Não acreditava na vitória do Brexit e felizmente falhei. Digo felizmente, tudo bem ponderado, dado que não ignoro os riscos e dificuldades, e me preocupam muitas das razões que provavelmente o influenciaram. Sei que vai haver consequências até para nós, mas julgo que o balanço é positivo. Com uma condição. Esta manifestação popular britânica, tendo muito de contraditório, não deve alimentar a direita xenófoba e ultranacionalista europeia. É dever da esquerda tomar a iniciativa.
As esquerdas europeias têm feito excelentes disseções do que enferma esta UE, de raiz e como evolução política a acompanhar o pensamento dominante neoliberal que, a reboque do ordoliberalismo alemão sempre influente na UE, mesmo na era Delors (os franceses sempre foram o “compaire” desta comédia), assumiu hoje natureza de pensamento único.
No entanto, não é claro o que, em última análise, pensam as esquerdas sobre a Europa, como ideia construtiva. A primeira linha de discussão teórica e prática é entre soberanismo e internacionalismo mitigado (deixo obviamente de fora a hipótese irrealista e manipuladora do federalismo). Depois, e de maior alcance prático imediato, o terreno privilegiado da luta, nacional ou institucional europeu. Pode também ser o europeu não institucional, mas parece-me que se reduz sempre a uma congregação de lutas nacionais, mesmo que coordenadas supranacionalmente.
A atual UE, o seu fundamento e normativo neoliberal, dominado por burocratas críticos e fiéis devotos dessa sacristia, a tábua-rasa dos princípios, a uniformização hegemónica do pensamento económico, a sujeição ao jogo dos poderes económicos, de estados e grupos económico-financeiros, é tida mesmo pelos mais entusiastas da utopia europeia como a negação da Europa idílica e anti-histórica que desejam, em “wishful thinking”.
Ninguém quer esta Europa. Mas como lutar contra isso é uma das mais vivas discussões políticas atuais.
A UE de hoje aprofundou as velhas divisões entre o norte e o sul que intencionava resolver. Para os parceiros do norte, a meta, embora cada vez mais ilusória, é a do seu estado de bem estar, pálida recordação dos tempos áureos da social-democracia dos anos 50. Para nós, os do sul, foi a “ilusão” da “Europa connosco”, dos fundos delapidados, dos movimentos de capitais que perverteram a nossa estrutura económica: desemprego, degradação do Estado social, aumento da disparidade entre rendimentos do trabalho e do capital.
Outro grande argumentou é o do papel de garantia da paz europeia desta UE. Há gente que ainda pensa, geomilitarmente, em termos das guerras do século XX. Guerra é, afinal, por qualquer meio, o ganho de soberania de um ou mais estados sobre outros. Klausewitz, bê-à-bá. Analogamente, golpe político era a saída das tropas dos quartéis, tomarem conta das instituições políticas, prenderem e executarem os adversários, mas sempre com o objetivo final de instalar um outro poder político e económico. Mas, agora, o capitalismo não tem prazer em optar por soluções sangrentas quanto consegue os mesmos resultados por outras vias que mais anestesiam o povo. Não é isto que se está a passar no Brasil?
Alguém duvida de que estamos em guerra, económica e política, já não militar? E que a Alemanha derrotada duas vezes em guerra convencional está a ganhar esta?
No entanto, registe-se muito do acervo positivo da UE: a livre circulação de pessoas, a promoção da produção cultural dos países europeus (nomeadamente no cinema), o intercâmbio de estudantes (Erasmus), o financiamento de programas de investigação, as diretivas – até por vezes demasiadamente exigentes, em termos científicos – de defesa do ambiente e do consumidor, etc. Mas não falo do mito do mercado livre europeu. Não sou perito, mas tenho dúvidas sobre a viabilidade e vantagem de algum protecionismo.
Por outro lado, em tempos de globalização em que ainda nos confrontamos com a dualidade do poder dos EUA e o poder selvagem da China, uma forte entidade económica europeia é importante. Creio que é mais fácil um consórcio de países europeus negociar com firmeza um TTIP com os EUA do que isoladamente (ou nesta UE subserviente).
Em resumo, sou absolutamente contra a solução dos problemas estruturais desta UE correndo para a frente. Da mesma forma, discordo de todos os utopistas que concordam comigo no diagnóstico dos males profundos, irremediáveis, desta UE mas que pensam que ela ainda pode ser reformável a partir de dentro ou de uma milagrosa mudança de ideias, simultânea, de dezenas de países com governos conservadores e formatados no pensamento único.
Plano B, DiEM, seus reflexos nacionais como o nosso LIVRE, são coisa de gente respeitável, inteligente muitas vezes, mas sem sólida base de reflexão política. Para já não falar no resultado catastrófico do europeísmo utópico do Syriza em que, apesar das nuances, continua a insistir Varoufakis.
O Brexit mostrou que o caminho está provavelmente acelerado, o que é um grande desafio para as esquerdas (apetece-me, no atual quadro europeu, e pelo seu compromisso governamental, falar só do PS português, quando falo de esquerdas no plural). Vivemos uma agudização das tendências centrífugas, contra a feroz ação centrífuga dos poderes e da máquina bruxelense. Acresce, com este Brexit, que já havia sido precedido por concessões importantes ao RU. Provavelmente assistiremos a uma UE fragmentada, sem lógica, em que, a pretexto da manutenção da entidade cada vez mais fictícia, cada um vai obtendo cláusulas à sua medida. Coitadinhos dos pequeninos!
A esquerda radical (ou as nossas esquerdas, dando o benefício da dúvida ao PS), têm denunciado os males da UE, têm vaticinado com razão a sua extinção a prazo, talvez curto, mas, a meu ver, fazem propostas de correção quase sempre de apenas melhoria do atual quadro. Mais democracia, mais poderes para o PE, mais transparência, menos controlo de Bruxelas, nomeadamente no que respeita ao Tratado orçamental, etc.
Não se trata de mais ou menos, mas de radicalmente novo. Essencialmente, uma nova proposta de esquerda para uma nova supranacionalidade e um novo modelo de cooperação interregional.
Julgo também que, na fase atual, é preciso, com realismo, distinguir as lutas a nível nacional (claro que potencializadas por convergências internacionais, mesmo os atuais partidos europeus) e, pelo contrário, as construções institucionais inter-países europeus, condicionadas, de um ponto de vista progressista, pelo simples facto de que a maioria dos governos europeus são conservadores e neoliberais. Mas há bem quem pense que a luta pode ser institucional, no quadro da atual UE, milagrosamente autorreformável.
Neste momento, não iria mais longe do que:
  • Ênfase na natureza confederal e não federal da Comunidade Europeia (designação preferível a União Europeia);
  • Extinção ordenada e cautelosa do euro, mas com possibilidade da sua manutenção como moeda comum (paralela, não única!), para transações eletrónicas internacionais;
  • Sistema flexível de paridades monetárias (“serpente”);
  • Uma declaração de princípios da Confederação Europeia e defesa dos direitos;
  • Tratados basilares sobre mobilidade e segurança dos cidadãos europeus;
  • Limitações por motivos importantes de índole nacional à liberdade de investimento em setores estratégicos e de nomeação de gestores para esses setores;
  • Manutenção do Espaço de Shengen;
  • Regulamentação da circulação de capitais e da banca;
  • Cooperação na defesa do ambiente e da biodiversidade, proteção do consumidor, gestão dos recursos naturais, licenciamento de fármacos, etc.;
  • Garantia da liberdade orçamental e fiscal, dentro de limites eventualmente decorrentes do uso do euro como moeda comum externa, com abolição do Tratado orçamental;
  • Extinção do BCE e redefinição da independência dos bancos emissores nacionais;
  • Criação de um fundo europeu de garantia da segurança dos bancos emissores nacionais;
  • Criação de uma “taxa Tobin”,
  • Proibição de paraísos fiscais na Europa e luta pela transparência dos depósitos e aplicações em outros “offshores”;
  • Remissão do papel da Comissão Europeia a proposta de normas, regulamentos comuns e tratados, a tabela comum de taxas aduaneiras, bem como de projetos de desenvolvimento comum;
  • Funções genéricas do Conselho Europeu em relação a problemas maiores, como a dívida, a integração de refugiados, a política externa, a política de defesa, etc.
É urgente que, com estas e obviamente outras ideias, a Esquerda elabore o seu projeto europeu, não ficando pela crítica da UE.

NOTA – Não falei do Parlamento Europeu. Tenho dúvidas. Parece-me, por um lado ineficaz, por outro conivente com a visão proto-federalista da atual UE. Preferia um órgão de vigilância dos princípios, por omissão e violação, de proposta ao Conselho europeu e à Comissão e de pronúncia sobre tudo o que discriminei atrás. Eleito diretamente ou em representação dos parlamentos? Não sei.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Programas e programas

O BE acaba de eleger os delegados à sua convenção, com base em moções que, afinal, refletem sem dúvidas o grupo de dirigentes que as subscrevem e se propõem, com essa base eleitoral, transpô-la para a composição dos órgãos dirigentes. À primeira vista, parece um jogo, porque toda a gente sabe quem está por detrás das moções à votação e à eleição dos delegados. 
Quem seguiu a última convenção, deu obviamente pela clivagem entre o grupo “fundador maioritário”, antiga moção U, a de Semedo, Catarina, Louçã, Marisa e amigos de Miguel Portas (os que restam depois da saída do manifesto) e, por outro lado, os radicais da moção de Fazenda. Hoje vão todos juntos, o que nem sequer critico, para mais não sendo aderente do BE (mas com muito interesse pelo que lá se passa).
Mas talvez não seja bem assim, um simples jogo tático e momento, dada a natureza atual dos partidos e uma relativa evanescência dos programas e da visão estratégica. Efeitos da grande mutabilidade da política nos nossos tempos.
Desde há muito tempo, e sob a noção distintiva de estratégia e tática, era tradicional os partidos terem programas a longo prazo, que incluíam a sua perspetiva histórica, o seu referencial ideológico e as linhas gerais da via para concretizar os objetivos estratégicos. Isto tanto à direita como à esquerda, principalmente no caso de partidos ideologicamente muito marcados (comunismo, social-democracia, democracia cristã).
Não é bem o que se passa entre nós. Do CDS, de quem ninguém duvida da sua mira ideológica, há apenas uma curta declaração de princípios (2300 palavras), da fundação em 1974. Tendo passado dessa democracia cristã para o populismo d direita, agora no neoliberalismo, tudo foi deixado à decisão dos dirigentes e congressos, sem uma clara redefinição dos princípios, desatualizados.
O PSD tem um programa, com última versão de 2012. É um programa curto, de 20 páginas, e tão genérico que serve para lideranças bem opostas.
O PS surgiu como “partido ideológico” e era de esperar que desse importância a um programa com certa fundamentalidade e estruturante. Tem desde 2012, no XIII congresso, uma declaração de princípios muito vaga, tanto mais quanto se pensa que essa época reflete um momento importante d viragem na comunidade socialista europeia, já muito contaminada pelo blairismo e a virar para a conciliação com o neoliberalismo. Daí que essa declaração seja um rol de palavras ocas e floreados, típicas de um partido de “catch all” e de clientelismo sem escrúpulos ideológicos.
Verdadeira tradição de um programa que define uma estratégia para iluminação das teses conjunturais sempre foi o do PCP. Tem sofrido alterações, mas pequenas, em função da conjuntura (por exemplo, o colapso do sistema comunista de tipo soviético). Fora isto, resta saber se o programa é adequado à sociologia e economia dos dias de hoje, de que tenho opinião contrária, ms não cabe essa discussão no âmbito deste artigo.
Volto ao BE. Que eu saiba, nunca teve um programa estratégico, talvez pela dificuldade inicial de elaborar um documento aceitarem por trotskistas, moaístas e dissidentes do PCP. O seu corpo doutrinário vai-se fazendo passo a passo, em moções às convenções e em programas eleitorais.
isto vai sendo um pouco moda. É o mesmo com o Syriza (que tem o programa de Salónica, mas exclusivamente de política económica e com objetivos eleitorais) e também com o Podemos, este chegando ao limite de evidentes contradições, oportunistas, entre os sucessivos programas eleitorais (populista, transversalista e oposto à ideia de esquerda-direita num dia, integrante de uma plataforma de esquerda clássica no outro).
Será que as condições atuais da vida política implicam isto, a regra da oportunidade e conjunturalidade dos programas? Claro que sim, no que toca às propostas para ciclos curtos e muito dependentes da conjuntura, por exemplo os programas eleitorais. Mas a definição programática essencial é necessária para a identificação de um partido. Julio Anguita, atualmente guru do Podemos, ficou famoso no seu tempo de PCE/IU pelo seu “programa, programa, programa!”.

Duas moções do BE, a A (largamente majoritária) e a R (ala mais radical) têm muito a merecer comentários neste quadro da relação entre a ideologia a prazo e a política a curto prazo, principalmente neste momento de todos os apertos do BE (e do PCP) deste jogo necessário mas perigoso da “geringonça”, em que se testam todas as capacidades de ginástica de cintura e coluna. Fica para próxima nota.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Transversalidade ou quarta social-democracia?

Ainda tenho muito para escrever sobre o fenómeno Podemos (e até certo ponto o Syriza antes de ganhar o governo), como desafio inevitável à renovação da esquerda tradicional. Se um partido que afirma não haver mais esquerda-direita tem o sucesso que tem, a esquerda, no caso a IU espanhola, tem de pensar bem.
Hoje não vou ainda escrever sobre isto, muito menos sobre a sua base ideológica, o populismo de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Vou-me centrar na polémica recente, depois da coligação Unidos Podemos, entre Podemos e IU. Até concordo com ela, em termos práticos. No entanto, ela é oposta ao que sempre defendeu Podemos, que recusou liminarmente qualquer aliança nas eleições de dezembro e, principalmente, à “transversalidade” (sim a “baixo-povo e cima-casta”, não a “esquerda e direita”) do ideólogo de Podemos, Íñigo Errejón.
Voltando a situar-se, para fins eleitorais, no binômio esquerda-direita, não admira que a exagerada flexibilidade volúvel de Iglesias (para não lhe chamar outra coisa) o tenha levar a posicionar-se de forma “imaginativa” na esquerda. É a nova social-democracia, a quarta, depois da traição da ala bernsteiniana na Grande Guerra, depois do esgotamento da segunda social-democracia do estado de bem estar, depois nada degenerescência originada pelo bairrismo, indo agora até à conciliação com o neoliberalismo.
Foi-se mais longe. Fazendo lembrar a tontice (que não desculpa a desonestidade) da questão posta pelo inefável candidato a Nobel da literatura José Rodrigues dos Santos sobre a raiz marxista do fascismo, discute-se agora na imprensa espanhola, com contribuição do próprio Iglesias, se os pais do marxismo, e até Lenine, foram sociais-democratas. É questão de sexo dos anjos, de jogar com as palavras fora do seu significado em cada época precisa.
Muito mais interessante parece-me a abordagem do escritor Paco Rodríguez de Lecea na Nueva Tribuna. Contra o esboço ideologicamente muito ambíguo que pablo Iglesias faz dessa mirifica “quarta social.democracia” no seu blogue “Otra vuelta de tuerka”, Rodríguez de Lecea enuncia os princípios caracterizadores de qualquer versão de social-democracia que não renegue as suas origens históricas, como movimento operário.
Baseia-se em grande parte numa análise do blairismo e da “esquerda instalada” pelo sociólogo e sindicalista italiano Bruno Trentin, no seu livro “La città del lavoro” (1997), de que não encontrou nenhuma tradução. Refere com ênfase uma posição de Trentin, segundo a qual um dos grandes erros permanentes da esquerda é atribuir as derrotas à conjuntura e às forças mais ou menos obscuras do capital, nunca olhando para os erros próprios.
Continuando, limito-me a transcrever parte do artigo de Rodríguez de Lecea, mantendo a versão castelhana:
Iglesias, o no conoce la aportación de Trentin, o la ha desdeñado. Paciencia. Pero no será posible revivir la gran tradición socialdemócrata y emprender un nuevo ciclo hegemónico, sin aplicarse a resolver antes los grandes temas trentinianos de las “culpas” situadas en nuestro campo. Con gusto comentaría esos temas por extenso, pero me cohíbe la certeza de estarme repitiendo, aparte de que la mucha extensión excede del alcance modesto de los apuntes de este blog. Me limitaré a situar tres ejes de discusión. 
1) El “trabajo humano” y su posición central en la vertebración de la sociedad. He puesto entre comillas “trabajo humano”: todo el trabajo, retribuido o no, dependiente o no. Hay una rutina en el pensamiento económico que predica que la tecnología viene a resolver de forma “natural” la cuestión; pero el trabajo humano no mengua ni desaparece en presencia de las máquinas; simplemente se transforma. Hay de otro lado una reivindicación de “trabajo decente” que no debe confundirse con lo anterior. “Decente” está referido a las condiciones laborales y a la retribución justa del esfuerzo del trabajador manual o intelectual; “humano” apunta al sentido último del trabajo, a su utilidad colectiva y a las posibilidades que abre de autorrealización de las personas en una sociedad más solidaria, más “común”. En la visión de la izquierda histórica, el problema del trabajo fue sustituido en general por el del “empleo”. Política de pleno empleo ha significado la pretensión de “cuadrar la planilla” de la fuerza laboral del país con un puesto para cada trabajador y un trabajador para cada puesto. Una bella ambición, pero planteada como la solución a un problema administrativo de distribución mecánica de un trabajo sin cualidades en una sociedad sin horizontes. 
2) Tanto desde el punto de vista del socialismo revolucionario como de la socialdemocracia, el objetivo principal de la política ha sido el Estado. Se dio en este punto un giro o una inversión significativa: primero el Estado era un obstáculo en el camino hacia la sociedad sin clases, luego un instrumento válido para alcanzar el fin de la emancipación, y por último se convirtió en un fin en sí mismo. Este proceso de mitificación del Estado como bloque sustentador supremo del poder, por parte de las izquierdas, ha corrido en paralelo a la permeación progresiva de sus estructuras y sus aparatos por parte de los poderes económicos “de facto”. A la institucionalización, por ejemplo, de las puertas giratorias y la colusión como método preferencial de la política económica. 
3) La prioridad correcta ha de ser, entonces, cambiar primero el meollo de la sociedad para imponer luego ese cambio en las instituciones; primero son las estructuras, y luego las superestructuras. La libertà viene prima,reclama Trentin. Importa más la transformación molecular de las personas que los gestos mediáticos en las campañas electorales. Solo así será posible remover estructuras perjudiciales muy arraigadas en la actividad política del país, pero sobre todo en las mentalidades de las personas.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A moda das primárias


As primárias para eleição dos líderes partidários estão na boca de cena da discussão política. Há dias, foi assim reeleito António Costa. Há também pouco tempo, foi assim eleito Alberto Garzón coordenador da Esquerda Unida espanhola.
São processos muito diferentes, embora com aspetos comuns a discutir (mediatismo, protagonização do líder, subalternização das equipas, problemas de financiamento, etc.). Nos EUA, com os seus partidos muito atípicos em relação à tradição europeia, são coisa consagrada. Na Europa é que é recente e assume muitas variantes que afetam muito a discussão.
Primeiro. A votação é restrita aos membros do partido, aberta a simpatizantes e em que termos, ou aberta a todas as pessoas? A restrição aos membros do partido respeita a coesão interna e, se com base em moções programáticas, não afeta em princípio a discussão ideológica. No entanto, como veremos a seguir, pode afetar o princípio da direção coletiva, valorizando a priori o líder.
A abertura a simpatizantes, como fez o LIVRE e o PS na eleição anterior do secretário-geral, é aparentemente simpática e sinal de espírito democrático, mas exige uma noção bem definida do conceito e responsabilidade do simpatizante. Aliás, nem é coisa nova. O PCP sempre cultivou esta figura, embora sem tradução estatutária e muitas vezes só com significado instrumental. Curiosamente, o BE não a prevê nos seus estatutos, mas não sei se, na prática, o BE dá relevo significativo a simpatizantes. Deixa margem de manobra à participação. Eu, pessoalmente, não me importaria de ser reconhecido simultaneamente como simpatizante do BE e do PCP, com direito a opinião bem ouvida e a discordâncias amigáveis.
Por outro lado, a abertura a simpatizantes é aparentemente ilógica. Afinal, porque há-de ter o mesmo direito de intervenção partidária, até no momento decisivo da escolha do líder, quem não assume deveres, não paga quota, não participa regularmente na construção da posição política identitária? Ou, na escolha de outros dirigentes ou candidatos a cargos policias, se baseia apenas em curtos sumários de candidatura, sem verdadeiro conhecimento dos candidatos? A democracia à moda e aparentemente bonita não significa obrigatoriamente a seriedade e fundamento da democracia. Modas vão e vêm.
Já a abertura a todos os eleitores, como em alguns estados americanos, é perversa, porque, em alguns casos, simpatizantes de um partido podem usar as primárias de outro para influenciar a escolha dos dirigentes. Há casos bem conhecidos.
Segundo. A primária serve para votar um nome ou uma moção? Em Portugal, o caso do PS é ambíguo. Pela mediatização justificada pela importância do partido, ninguém liga ao documento político e é a personalidade do candidato que manda. Aliás, o processo está invertido: primeiro é eleito o secretário-geral e só depois, em congresso e com o peso da autoridade do eleito, é que é aprovada a moção política.
Já no LIVRE, por exemplo, nem sequer era preciso uma moção, bastando meia dizia de linhas de proposta política. Não é de estranhar que os resultados tenham obedecido linearmente à projeção mediática dos candidatos.
No caso espanhol, o que foi sujeito a votação primária, por todos os militantes da IU, foram plataformas políticas, mas era óbvio que se votava era no principal proponente. Quem elegeu Garzón muitas vezes nem terá lido a sua proposta.
Terceiro. Como se garante a responsabilidade coletiva? Na tradição leninista, hoje ainda em vigor no PCP, os dirigentes são eleitos em cascata. Os dirigentes propõem ao congresso o comité central, este elege os órgãos de topo e o secretário geral. Garante-se a manutenção do estilo coletivo de direção, mas é muito difícil qualquer renovação. Na prática, funciona em circuito fechado, em ciclo vicioso. É certo que funciona aqui o “espírito de partido”, muitas vezes confundido, por leigos, com unanimismo norte-coreano.
Pode-se dizer que, nos tempos atuais, a importância da direção coletiva está diminuída e que principalmente a mediatização destacou a figura individual do líder. É também verdade que a autoridade interna do líder é crucial, muitas vezes ancorada no seu papel no impacto mediático do partido. É um poder moderador e congregador de vontades, em muito contribuindo para o compromisso de facções e convergência de posições. No próprio PCP, é evidente como foi importante esse papel de Cunhal.
Também se deve distinguir partidos “ideológicos” e partidos populistas, “catch all”. Estes, como o Podemos em Espanha, são principalmente partidos de ação eleitoral e conquista de posições institucionais, muito mediatizados, com uma base de apoio muito individualista e muito sensível às ofertas de escolha “democrática” (muitas vezes viciada pela mediatização ou pelo maior acesso à internet e redes sociais). A experiência mostra nestes casos uma fraqueza do debate interno e elaboração política, circunscrita a um núcleo de académicos e “tertulianos” iluminados, em redor do líder consagrado pela massa Não admira que Laclau e a sua teorização do populismo/liderança estejam sempre a ser invocados. 
Note-se também que, no caso espanhol, a Assembleia da Esquerda Unida elegeu o seu líder e respetiva direção por um sistema misto de primárias e eleição em assembleia. Tem os problemas que referi, mas é de atender a que se trata de um partido/frente, essencialmente eleitoralista, coligação de vários partidos que, para outros efeitos, mantêm a sua autonomia. Assim, é importante garantir nos órgãos de direção a representação proporcional dos partidos constituintes. Mas já o maior membro da IU, o PCE, continua a ter para si próprio um mecanismo de escolha de direção tradicional nos partidos comunistas.
Pessoalmente, e com o direito que se tem de opinar sobre o funcionamento interno dos partidos, considero negativo esse procedimento tradicional, como o do PCP.  Dir-me-ão que isso é marxista-leninista e portanto no DNA do partido. Mas eu não sou leninista adepto do centralismo democrático dos tempos da revolução russa. Preferia que o comité central, como a mesa do BE, fosse eleita por representação de moções. É claro que há sempre o risco da personalização da direção, mesmo que as moções não identifiquem claramente o líder. Mas claro que tudo se sabe…

terça-feira, 3 de maio de 2016

Confusões nas filosofias do prazer

Há dias, li uma crónica gastronómica de um prezado amigo meu que considerava os amantes da boa mesa como “epicuristas”. O tema – e o erro frequente – é muito importante para mim, que me intitulo sempre de epicurista, e julgo que me desculpará o pretenciosismo de uma breve e simples lição de filosofia.
É vulgar, como ocorreu com o meu amigo, confundir-se hedonismo e epicurismo. Por exemplo, um dos sítios justamente muito visitado de gastronomia chama-se Epicurious. De facto, é hedonismo, o culto de todos os prazeres sensuais. É certo que os epicuristas conheciam os hedonistas e não os desconsideraram, assim como os estóicos que vieram a seguir também não renegaram o epicurismo.
O epicurismo é um produto do helenismo, já na fase de cienticismo da filosofia grega, contra o idealismo de Platão e mesmo de Aristóteles, apesar de este já fazer a transição para uma “filosofia científica”. Epistemologicamente, o epicurismo assenta na ideia de que nada está para além dos nossos sentidos, de que não existe nenhuma realidade que não possa ser entendida com auxílio deles. É de certa forma um "naturalismo radical”, percursor do materialismo moderno.
A escola de Epicuro aliava o prazer – já veremos em que termos – com a racionalidade, o ateísmo, a virtude e o prazer ético e pessoal dos prazeres nobres, estando bem consigo e com o mundo; é a ataraxia.
Sobre o ateísmo, e não o “envergonhado” agnosticismo, diz tudo o paradoxo de Epicuro, sobre as três características divinas essenciais, a omnisciência, a omnipotência e a omnibenevolência. Tantos séculos depois, a maior inteligência da fé, Tomás de Aquino, não soube resolver este paradoxo:
Enquanto omnisciente e omnipotente, deus tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é omnibenevolente. 
Enquanto omnipotente e omnibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é omnisciente. 
Enquanto omnisciente e omnibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é omnipotente.
Note-se que Epicuro praticamente não deixou nada escrito e o que sabemos é pelos seus discípulos. Os pilares fundamentais do epicurismo são:
– Libertar os homens do temor dos deuses, demonstrando que pela sua natureza feliz, não se ocupam das obras humanas.
– Libertar os homens do temor da morte, demonstrando que ela não é nada para o homem: "quando nós existimos, não existe a morte; quando a morte existe, não existimos nós"
– Demonstrar a acessibilidade do limite do prazer, isto é, o alcançar fácil do próprio prazer;
– Demonstrar a distância do limite do mal, isto é, a brevidade e a provisoriedade da dor.
Para ser feliz, o homem necessita de três coisas: liberdade, amizade e tempo para filosofar. Os gregos subvalorizavam o amor (exceto com os efebos...), que pode bem ser associado aqui à amizade, isto é, a toda a esfera da afetividade.
Talvez o fundamental, ao contrário dos hedonistas, seja a limitação (diria hoje controlo) do sentido do prazer. Não é um prazer imediato, com fruição dos sentidos. É um prazer superior, com muito de cético, acima de tudo a noção do dever cumprido. Mas dever não codificado, não perante Deus ou as leis, antes o dever perante a consciência. É um estado de prazer/paz/tranquilidade de consciência a que Epicuro chamava de ataraxia. Conjuga-se necessariamente com a busca do conhecimento do funcionamento do mundo.
A procura dos prazeres moderados é para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, com a ausência de sofrimento corporal pelo conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. Já quando os desejos são exacerbados podem ser fonte de perturbações constantes, dificultando o encontro da felicidade que é manter a saúde do corpo e a serenidade do espírito (aponia). 
Também é importante a atitude perante a morte. A morte é o nada, conceito muito difícil de aceitar pela maioria das pessoas e, afinal, a "resposta" de todas as religiões que prometem alguma coisa contra esse nada. Quantos ateus, perante a morte, se fazem crentes? Estou a lembrar-me agora, com o devido respeito, do meu velho camarada Paulo Varela Gomes. Segundo Epicuro, nós nunca nos encontramos com a nossa morte – a nossa existência nunca se dá ao mesmo tempo da existência dela. Logo, ocupemos as nossas mentes com a vida e desfrutemos dela. Tantos séculos depois, é a ciência, a neurobiologia, que nos diz o mesmo. E é o maior elogio da vida. Vivemos essa maravilha enquanto vivemos, não a queiramos prolongar para além do seu fim natural. É o tempo da vida da rosa.
Com tudo isto, este vosso amigo é epicurista mas não é nenhum Falstaff!

domingo, 24 de abril de 2016

A solução portuguesa de governo anti-austeridade (I)

A atual solução governativa portuguesa já leva o tempo suficiente para uma análise com suficiente fundamento. São de salientar alguns elementos essenciais para essa análise. Primeiro foram as leis sobre a reversão dos cortes salariais e sobre a sobretaxa. Depois, o OE2016. São exemplos muito interessantes das potencialidades do novo ciclo político aberto pelos acordos entre o PS e os partidos à sua esquerda. No âmbito dos acordos, PCP e BE aceitaram o compromisso com as propostas do PS, apesar de distantes das suas próprias posições.
É um exemplo da originalidade desta nossa conformação política de governo. Em vários países europeus, há governos de coligação mas baseados numa plataforma comum pré-estabelecida. Em Portugal, não há um programa comum, nem sequer uma plataforma táctica programática. O programa de governo é o do PS, concretizável, a cada caso, pelo apoio derivado dos acordos. Isto deixa uma larga margem de manobra para salvaguarda da identidade do PCP e do BE, que até se podem valer da manifestação de discordância com entendimentos entre o PS e o PSD, como aconteceu no caso BANIF.
Antes do mais, é justo salientar que neste novo ciclo político houve principalmente duas partes (sem desprimor pelo BE, mas porque estava menos crispado) que souberam vencer velhos antagonismos: Jerónimo de Sousa e o PCP, e António Costa e o PS. Refiro ambos porque, ao contrário da cassete habitual, a responsabilidade pelo antagonismo entre os dois partidos, desde há décadas, é mútua (ficando-me por aqui, para não ter de quantificar relativamente essas responsabilidades).
Não quero dizer que este sistema de “geometria variável” não tenha fragilidades. O funcionamento do sistema acaba por ser a resultante de diversas contradições: dentro do PS, entre os parceiros do PS e entre o PS e esses parceiros.
Quanto à primeira, é bem sabido que há uma ala do PS, encabeçada por figuras de proa entre os notáveis do partido, que preferia um bloco central. No entanto, tudo indica que António Costa tem controlado a tensão interna e dificilmente será por esse lado que o entendimento à esquerda sofrerá riscos.
As contradições dentro da frente de apoio ao governo (além do PS), e mais notoriamente entre o PCP e o BE, também são bem conhecidas e tenho para mim, contra o que dizem muitos comunistas, que agravadas pelos melhores resultados eleitorais do BE em relação ao PCP (CDU) em duas eleições seguidas, legislativas e presidenciais. Não é agora ocasião para uma análise comparativa entre os dois partidos, o que farei em outra nota, mas, tendo um eleitorado de base muito diferente socialmente, é-lhes necessário um discurso, propostas e mesmo estilo que fixem e alarguem esse eleitorado e que mantenham a sua imagem identitária. De certa forma, isso fragiliza a plataforma de apoio ao governo, porque cada um dos partidos quer poder estar em condições de aparentar maior distância crítica no que não está abrangido pelos acordos. Pode ser quase ver-se quem é mais papista do que o outro e o papa.
Parece indiscutível que a maior contradição é entre as políticas – de crescimento e emprego, anti-austeritárias e de reposição dos prejuízos sofridos desde o memorando de 2011 – dos dois partidos de esquerda transformadora e do PS, embora todos concordem aparentemente com esses objetivos.
Essencialmente, há uma base consensual: de que, sem desdenhar o crescimento equilibrado das exportações, o principal fator será o crescimento da procura, do mercado interno. dito isto, muito fica de diferenças. 
O BE e o PCP, embora com nuances diferentes, acentuam a necessidade de resolver um dos principais componentes do défice orçamental e da incapacidade de investimento, a saber o serviço da dívida, defendendo a imediata renegociação da dívida, para a sua reestruturação. Mais o PCP do que o BE (ou este só mais recentemente e com menor ênfase) admitem que isso possa passar pela saída do euro. Da mesma forma, opõem-se ao Tratado orçamental, não sendo todavia claro até que ponto, nas respetivas propostas, poderia ir a desobediência ao tratado.
Como é público e notório, o PS só aceita falar em renegociação da dívida num quadro institucional europeu, multilateral; votou pelo Tratado orçamental e continua a defendê-lo, mesmo que falando, de forma pouco compreensão, na sua “aplicação inteligente”; e tem a saída do euro como tabu, sem margem sequer para o debate.
Esta é uma contradição essencial, a que fez soçobrar tristemente a experiência inicial do governo de Tsipras: querer uma política anti-austeritária expansionista e, ao mesmo tempo, manter um compromisso integral com o Tratado orçamental e com o espartilho da moeda única. 
Ainda por cima, com uma Comissão Europeia inteiramente dominada por uma aliança entre a direita neoliberal e uma social-democracia em miséria ideológica e com um banco central e a prática totalidade dos governos alinhados com o pensamento único neoliberal.
Os acordos para o apoio ao governo foram hábeis na ultrapassagem destas dificuldades, desde o início. A plataforma de apoio foi desenhada “à la carte”, com acordos bipartidários separados abrangendo pontos diferentes, em que cada partido ficou com alguma margem de manobra, para a opinião pública e o eleitorado, para poder exercer alguma oposição, mas, no conjunto dos acordos, cobrindo-se uma vasta convergiria programática a curto prazo. 
A não participação do BE e do PCP no governo também lhes é benéfica, bem como ao PS, protegendo-os de receios de excessiva cedência, por parte de setores dos seus militantes; e, por outro lado, minimiza ataques da União Europeia a uma nova experiência de governos de esquerda, sendo difícil para ela considerar assim um governo constituído apenas por membros de uma formação europeia “bem comportada”. 
Mesmo assim, essa habilidade não obsta a que as referidas dificuldades constituam o maior risco possível para a estabilidade e mesmo sustentabilidade do governo. Os acordos pressupõem a viabilidade das medidas de combate à austeridade, refortalecimento do Estado social, desemprego, crescimento, etc., com base na expetativa de maiores receitas do Estado derivadas do maior rendimento das famílias e, acessoriamente, das empresas. São quantificadas nos diversos cenários económicos que a equipa de Mário Centeno tem elaborado, mas que, com o passar do tempo, têm vindo a ser revistos em baixa ou a ser apontados como pedindo cautela. Muitos comentadores, apoiantes do governo, tendem a esquecer este problema, para não acrescentarem a dúvida sobre a força dos acordos.
Por outro lado, há a incógnita europeia. O que interessa mais aos poderes centrais, em relação ao governo? É visível a manutenção, em lume brando, das ameaças, mas também se pode pensar que, tendo já sido dada a lição à Grécia, não interessa forçar demais as coisas e abrir nova frente, tanto mais que a UE está neste momento com problemas graves, nomeadamente o do referendo britânico, o da instabilidade dos mercados financeiros e o dos refugiados. No entanto, tudo isto é incerto e só o tempo dirá. Por exemplo, pode simplesmente bastar dar “ordem” à única agência de “rating” que ainda nos segura, a canadiana DBRS.
Com tudo isto, a possibilidade de uma falência da plataforma de governo mudou de consequências. Inicialmente, podia pensar-se que seria o PS o afetado e que o BE e o PCP poderiam sair relativamente incólumes. Parece-me que não. Para os eleitores desse amplo espetro, desde o BE ao PS, a falha do entendimento seria provavelmente penalizante para todos. 
Isto pela ideia de incapacidade dos dois partidos de esquerda transformadora em puxarem o PS; pelo desgosto da negação do sonho de muitos de “convergência da esquerda”; por vir acima, para alguns, a ideia agora silenciada de que esses dois partidos cederam demais a um PS apenas um todo nada mais social-democrata (ou menos social-liberal); mas também, pelo contrário e para muitos outros, o castigo pelas promessas abertas, com aval dos acordos, de correção dos sacrifícios sofridos com a política de austeridade.
Isto leva a outra questão: têm aqueles dois partidos possibilidades de recuperação desta via política? Deixo de lado a diferença de situação entre os dois, cada vez mais visível pelo maior compromisso do BE na colaboração com o PS, colocando principalmente discordâncias marginais e secundárias e desviando para iniciativas insignificantes e “folclóricas”, como o caso ridículo do género gramatical tornado questão policia de fundo.
Julgo que, mau grado a penalização que acabo de referir, o recuo dos dois partidos para posições pré-acordo não é o fim do caminho. O problema está em que, para haver a convicção geral de que foi apenas uma derrota tática, 
é necessário mostrar que há uma linha estratégica definida e uma nova proposta de alternativa tática
Em boa parte, se houver desde logo a ideia de que esta solução de governo teve muito de defensista, de mal menor, para alívio do garrote que se vinha a apertar ao povo português e à economia nacional.
Um dos caminhos essenciais é a abertura de perspetiva de maior participação sócio-política. Como já deixei bem claro, a aliança tática que hoje suporta o governo foi um esquema muito hábil, mas que deixa muita coisa em aberto, principalmente em termos de consolidação futura e de contribuição para uma definição estratégica para além deste ciclo político. Está aberto o caminho para uma frente popular? Uma frente interpartidária, à maneira clássica de Dimitrov, ou um movimento mais amplo e flexível, incluindo novos movimentos sociais?
Em contraste com a habilidade da atual solução governativa, Portugal está a ser exceção na reconversão política de esquerda do sul da Europa. Estamos moles e apáticos, sem ideias novas. 
Na Grécia, o Syriza reanimou o espírito da social-democracia, espírito embora traído pela derrota de Julho, e não se vendo ainda uma nova alternativa de esquerda, com a Unidade Popular ainda em embrião e demasiado centrada na questão do euro. Na Itália, é a estagnação à esquerda. Também em França, em que a Frente de Esquerda não rompe a iniciativa de Plano B, de Mélenchon e outros, não tenha tido apoio popular significativo. Mais interessante é o caso espanhol, em que se confronta uma movimentação marxista moderna, a Esquerda Unida, com um fenómeno populista pós-marxista, o Podemos. Fica para outro artigo desde já prometido a discussão da esquerda espanhola.
Uma da consequências da concentração de atenções na tática baseada na solução de governo, é que tudo se coloca a nível partidário, mas não havendo à esquerda (à esquerda do PS) uma modernização de pensamento, pode ser muito difícil abrir perspetivas de uma alternativa.
Parece ser a maior dificuldade a uma renovação política. Parece indiscutível a debilidade da ideologia e da cultura filosófica-política dos dois partidos de esquerda radical, porque do PS, partido aparelhístico, “catch all” e clientelista, nem vale a pena falar. 
A situação do BE e do PCP é distinta: o BE não tem referenciais teóricos, não obstante os seus ideais genéricos, o que até pode ser uma janela de refrescamento, mas também um convite ao ecletismo e indefinição cultural. O PCP define-se sem ambiguidade em termos ideológicos sistemáticos, mas o seu marxismo-leninismo, uma codificação de cartilha, anula o rico potencial de constante renovação teórico-prática do verdadeiro marxismo, o clássico e os seus muitos desenvolvimentos modernos.
Que fazer? Caracterizada a situação neste artigo, fica para o seguinte a reflexão sobre caminhos possíveis para a alternativa política, para uma esquerda transformadora e com respostas à sociedade atual, a nível nacional e internacional.