quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os partidos e a troika – BE

As entradas que precederam, sobre o PS e o PCP, centraram-se nas posições dos partidos sobre a política troikista de austeridade, a posição em relação à dívida e sua eventual reestruturação e a atitude, mesmo que só de princípio, em relação ao abandono do euro. As posições e propostas do PS, moles, acomodatícias, dentro do arco de governação com respeito pelo consenso de Bruxelas e pelo derrotismo da social-democracia pós-Blair e Schröder (e Guterres e Sócrates), e, no extremo oposto, as posições do PCP contra a hegemonia neoliberalista que nos querem impor a pretexto de um projecto europeu fraudulento, ficaram expressas. E o bloco de Esquerda (BE)?

Ainda tenho alguma dificuldade em compreender o BE. Tem uma história curta e indefinida, com aspectos pessoais marcantes para mim. Era eu dirigente do MDP e fui encarregado de promover contactos – porventura irrealistas e prematuros – com o PSR e a UDP. Falharam redondamente, com recusa liminar de Louçã e com um encontro surrealista com Fazenda, a tentar-me convencer (já nos anos 90) da luminosidade do camarada Enver Hoxha. O grupo do Manifesto ainda não era nada. Voltando ao MDP, não tentou nenhum contacto, contra o namoro, depois roto, dos dissidentes do PCP que se passaram para o PS. Só mais tarde é que a Plataforma XXI fez a OPA partidária sobre o MDP, a demonstrar a dificuldade de se começar um partido sem bases infraestruturais.

Apesar desta história, creio que continuarmos a falar das tendências fundadoras é um pouco folclórico. Trotsquismo? Albanismo? Não sei o que valem hoje mas suspeito de que pouco dizem à grande massa dos aderentes posteriores ao BE, principalmente jovens, intelectuais e estudantes, membros da pequena e média burguesia profundamente afectados por novas condições de vida (precariedade, dependência da casa familiar, etc.).

Por isto, também me parece culturalmente jusificável o apoio que o BE granjeia em relação ao que, com sobranceria, a comunicação social lhe assaca como defesa das “causas fracturantes”. Prefiro chamar-lhes transversais, cruzando interesses de classe. Só não percebo bem é como um PCP, por exemplo, perdeu essa bandeira para o BE, quando foi pioneiro, lembre-se, da luta pela descriminalização do aborto, nem BE havia. Mas também quando a líder da luta foi Zita Seabra, o que pode dizer muito sobre o desnorte no PCP.

Também me parece importante perceber de onde emana o apoio ao BE, aonde em momento de crise ou de voto útil podem voltar os seus apoiantes. Embora sem dados seguros, penso que principalmente do PS. A atitude do BE na crise do verão, entrando e saindo rapidamente de reuniões com o PS, entretanto comprometido com conversas com os seus companheiros do arco troikiano da governação foi, no mínimo, infantil. Infantilidade que nunca me surpreendeu vinda da nuvem toldante do narcisismo de Louçã, mas que não esperava do traquejo, da minha geração, de um homem como Semedo.

Passemos então ao que conta nesta série de entradas, a posição do BE em relação à crise e às suas soluções.

Considero a sua posição ambígua, com guinadas de percurso, a revelar algum oportunismo. Também me parece necessário considerar duas fases, pré e pós saída de Louçã, figura demasiadamente marcante num partido que rejeita o culto da personalidade. 

Factor permanente, em todo este tempo, a condicionar ideologicamente a política do BE é o seu eurofilismo utópico, transferindo para o terreno europeu o principal de uma luta que só tem hoje instrumentos eficazes (organizações políticas e sociais, identidade colectiva mobilizadora, sindicatos, garantias jurídicas como as do Tribunal Constitucional, etc.) a nível nacional. É óbvio que não há corpos intermédios a nível europeu! Enquanto o BE insistir nesta orientação, está a defraudar as pessoas e a fechar-lhes portas de eficaz luta política, por muito que se masturbe entre amigos de elite pensante.

A posição inicial do BE em relação ao resgate foi de nim. Muita retórica de protesto mas, como então comentei, apenas propostas que rapidamente foram absorvidas pelo PS: renegociação (não reestruturação – a insustentável leveza das palavras!) da dívida, apenas em termos de prazos e juros da dívida institucional (troika), nada de “cortes de cabelo”, nada de perdões, nada de suspensão do serviço. E, acima de tudo, nada de saída do euro, “drama” contra o qual escreveu repetidamente o seguro Louçã. Lutando por “um euro melhor”, o BE engana as pessoas, porque todo o euro é forçosamente mau e contra esse mal luta-se melhor a nível nacional, fora da hegemonia centro-europeia. 

Inicialmente, o BE não se afastou muito do PS, apesar de um discurso mais radical, principalmente em relação às consequências da política austeritária e à necessidade de lutar contra ela. Mas com que meios? Com o que resta de financiamento, aceitando um serviço de uma dívida que já vai em quase 130% do PIB? Aceitando as metas da troika, com uma atitude vaga de “renegociação” do memorando? Criticando os cortes e as “medidas estruturais”, sem apresentar alternativas?

Mais tarde, em proposta de resolução apresentada à Assembleia da República, já com a direcção Semedo-Catarina, propôs a denúncia do memorando, a reestruturação da dívida e o seu corte em 50%. No entanto, tudo isto é bastante errático e tenho dúvidas sobre se a maioria das pessoas sabe mesmo o que o BE defende. Também não sei se esta evolução é resultado de uma discussão amadurecida se de influências de membros influentes do BE, principalmente economistas. Por exemplo, ouço dizer que alguns dos “ladrões de bicicletas” são membros do BE e certamente têm posições mais fundamentadas, que talvez venham a influenciar mais o partido.

Dito isto, e não adiantando o BE nada, no plano da economia política, às propostas do PCP, consegue ao menos ganhos de imagem e “credibilidade” de partido mais “aceitável” como partido de poder? Creio que não, que aparece como coisa de jovens imaturos, sem presença nos terrenos de luta real, sindical e autárquico, com habilidade retórica sem substância de propostas políticas a configurarem um programa consistente e um projecto político que mereça confiança. Estou a exagerar? Gostaria que não.

E bem gostaria porque considero que PCP e BE são o conjunto partidário que, no curto prazo, com o contributo de outras forças de que falarei a seguir (é pena que um novo partido já não venha a tempo), podem ser a única alternativa para uma alternativa de esquerda coerente e consequente. Para um socialismo sem submissão ao capitalismo, muito menos à forma neoliberal, globalizante e geradora de hegemonias do capitalismo. Para uma democracia real de cidadãos verticais. Para o reino da ética, da solidariedade. Para que a globalização não seja a cada vez maior diferença entre os povos. Para que os recursos dos países libertados não vão parar às mãos de quem traiu a luta por essa libertação. E até para relembramos coisa tão velha como "liberdade, igualdade, fraternidade". Quem diria que ainda seria hoje actual!

Há quem diga que a palavra esquerda está queimada. Mas isto que disse está queimado? E não foi, é e será a esquerda? E o que falta a esta esquerda para chegar ao poder? De entre muito mais, um programa mobilizador, a congregação (não instrumentalizadora) dos "novos movimentos", a conjugação com modernidade de posições populares e de perspectivas actuais de nova "sociologia política" (o envelhecimento, a vida urbana, o trabalho moderno, as aspirações individuais, as minorias, etc.), a luta em aliança com as esquerdas dos países periféricos pela afirmação da soberania nacional, e, acima de tudo, a conquista da hegemonia cultural (incluindo a da comunicação social).

5 comentários:

  1. Caro Vasconcelos Costa:

    Dado o seu percurso no PCP, muito estranhei este passagem :«Só não percebo bem é como um PCP, por exemplo, perdeu essa bandeira para o BE, quando foi pioneiro, lembre-se, da luta pela descriminalização do aborto, nem BE havia. Mas também quando a líder da luta foi Zita Seabra, o que pode dizer muito sobre o desnorte no PCP.»

    Primeiro porque o PCP teve um papel destcadíssimo em TODA as décadas de luta pela despenalização do aborto e o caro Vasconcelos Costa não pode er daqueles que confundem simpatias mediáticas com acção real.

    Segundo porque não percebi se o «desnorte» do PCP foi ter dado à Zita Seabra, DO PONTO DE VISTA PÚBLICO, um papel destacado naquela luta.

    Terceiro porque pensei que, estando à época no PCP, o meu caro amigo pudesse saber que aquela luta foi preparada e dirigda por um colectivo muito amplo,em que até eu devo ter escrito mais textos que a Zita Seabra e que ela não só não foi ela que escreveu o discurso que leu na AR como até a cor da camisa que levou lhe foi sugerida por terceiros.
    Saudações sempre cordiais do
    Vítor Dias

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  2. Caro Vítor Dias,

    Dou-lhe razão, em boa parte. Nessa altura, já não estava no PCP mas, ainda hoje, tenho obrigação de saber que, em assunto de tal importância, obviamente que não houve um líder, muito menos Zita Seabra.

    No entanto, como assisti a várias sessões de esclarecimento e de debate em que a Zita e o José Magalhães foram as figuras em evidência e assim foram vistas mediaticamente e pelas assistências, falei de desnorte (termo talvez exagerado) por se ter dado tanto destaque a quem teve o futuro que teve.

    Tenho alguma dúvida em concordar consigo sobre a "perda das bandeiras". Acredito em que o PCP se preocupe com estes temas sociais "novos" (também a homossexualidade, o casamento gay, etc) mas o que conta é a imagem e dela, mal ou bem, e com o apoio da comunicação social, apossou-se o BE, mesmo que há custa de um frenesim em que mistura a luta importantíssima contra o piropo.

    Abraço,

    JVC

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  3. Indo ao essencial da sua questão, João, que não me parece esvaziada de sentido pelas eventuais incorrecções de detalhes da história (é assim que ficarão nela, estou certo, por muito injusto que isso seja para quem sempre deu tudo quanto tinha pela luta das causas do PCP):
    Porque não fazer renascer por meio do MDP a fénix da unidade?

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  4. Escreverei em breve sobre o MDP. Mas será só história, sem viabilidade actual de intervenção prática.

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  5. O MDP, que conhece melhor do que eu, tem uma história cujo contexto tem aparentemente afinidades com o presente. Seguramente que a sua asserção de que, quanto ao que escreverá sobre ele, será só história e a sua sugestão de que o que escreverá (ou o MDP?) não terá viabilidade actual de intervenção política, terão sérios fundamentos, que estou curioso por conhecer.
    Mas, se me permite, escrever sobre o MDP terá significado actual enquanto intervenção política, mesmo que se lhe neguem virtualidades.
    Depois, não sei como, mas sinto que a necessidade de um partido socialista em que se reveja o cidadão que vem habitando na área eleitoral do PS, abstencionista ou votante (válido, nulo ou branco, como bem nota o António Costa), pode criar espaço para que "um" partido nasça ou... renasça. Porque não MDP, se afinal esse é o espírito do movimento?
    O necessário "tertium genus", talvez.

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