sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A praga dos manifestos (II)

Manifestei-me ontem como antimanifestos. Foi a propósito do último, reunindo tudo o que é gente respeitável à volta do patriarca. De uma leitura admito que apressada, porque já não tenho pachorra, conclui que era coisa que não aquecia nem arrefecia, banalidade de intervenção política de fase buco-anal de política, como escreveu o meu amigo Marcelo.

Hoje vejo que é manchete e com os jornalistas a titularem sempre coisas como “personalidades políticas exigem demissão do governo”. Fiquei angustiado: terei lido mal, induzido em erro os meus leitores? Afinal, há muita gente que considero a subscrever, tenho recebido hoje dezenas de solicitações nesse sentido. Fui ler melhor e o que lá se diz é:
Perante estes factos, os signatários interpretam – e justamente – o crescente clamor que contra o Governo se ergue, como uma exigência, para que o Senhor Primeiro-Ministro altere, urgentemente, as opções políticas que vem seguindo, sob pena de, pelo interesse nacional, ser seu dever retirar as consequências políticas que se impõem, apresentando a demissão ao Senhor Presidente da República, poupando assim o País e os Portugueses ainda a mais graves e imprevisíveis consequências. 
Os signatários "interpretam", iluminadamente, o enorme movimento popular? Os signatários admitem que o "Senhor Primeiro Ministro" possa alterar, sequer repensar refletivamente, sequer perceber com mínimo de inteligência, com ou sem Gaspar, as suas políticas? Os signatários admitem que o pobre homem tem coerência ética para, não podendo rever a sua política, tirar a consequência de demissão? Os signatários não percebem que, com tão triste carta, se estão a pôr ao nível intelectual do Sr. Passos Coelho? Os signatários lembram-se das ridículas cartas deste género que os seus pais ideológicos mandavam a Salazar (e que a censura nem deixava vir a público), certamente para grande gozo do tenebroso sacrista?

Eu escreveria essa carta aberta como exercício de humor negro, mas os tempos não são de humor. Escreve-se uma carta aberta a pedir a Passos Coelho que altere a sua política, e depois diz-se ao homem que, senão, é seu dever demitir-se. Redigo, tal tontice só pode ser lida como humor e eu não ando nada para humor.

Tudo entre gente politicamente bem educada, que, propondo a Passos Coelho que se demita, parte do princípio que ele, com a sua ética, vai pensar pelo menos durante um minuto sobre essa proposta. Senão, como se diz no fim da carta aberta, ainda vamos deixar isto entre as mãos pilatamente impolutas e milagrosas do venerando chefe de estado.

Este país já virou um imenso manicómio? Ou pelo menos, neste caso, um lar de terceira idade?

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Cartoon (I)


A praga dos manifestos

Recebi hoje mais uma carta aberta, manifesto, sei lá o quê, desta feita endereçada ao primeiro ministro (!) e prevendo-se enviar cópia ao PR. É claramente promovida por notáveis que, talvez com alguma imprecisão, poderia designar como da esfera soarista. Conta com as assinaturas dos que vão a todas, desde logo o inefável coimbrão que vai desde o célebre manifesto soarista/sampaista de apoio à troika (tenho boa memória e bom álbum de recortes) até aos apoios demagógicos aos contestatários do Rossio, passando por estas coisas inócuas. Infelizmente, também assinam esta pobre carta aberta pessoas com grande comprometimento com coisas muito importantes e afirmativas, também minhas, como o Congresso Democrático das Alternativas e que aqui, a meu ver, comprometem a sua coerência.

Respondi, com conhecimento da grande lista de correio eletrónico a quem foi enviada: 
“O que é que se pretende com isto? Que efeito político, a não ser exibir mais uma vez uma lista de pessoas respeitáveis que já não dizem nada ao cidadão comum, ou que até estão identificados com "os políticos, todos, que deram cabo disto"? O que é que se lê nesta carta de alguma proposta alternativa, mobilizadora?  Desculpem, caros amigos, mas não dou mais para estes peditórios.”
Em meia hora, já são reconfortantes as mensagens de apoio que recebi. Mas a mais notável, do meu velho amigo MCR, inclui esta frase magnífica: “Este desgraçado país não consegue sair da fase buco-anal do abaixo-assinadismo!”

À MARGEM – Fiquei a pensar em coisa bizarra. Imaginem que Marx e Engels, escrevendo o manifesto, o tinham feito como carta aberta aos governantes europeus da altura, e logo na época de 48!... Espírito revolucionário está mesmo esquecido? Há coisas talvez pequenas com grande significado político, simbólico. Quem é que hoje se lembra de escrever uma carta ao cunículo governante? O destinatário, mesmo que apenas formal, de qualquer mensagem política, hoje, é o povo português. Tudo o resto é coisa de quem sempre fez política de gabinete ou de clube burguês. E porque envelheço reconfortando-me com a ainda frescura das memórias vividas, lembro-me com isto de 1969, CDE e CEUD.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lumpen não, obrigado

Anda pela net, e já vários amigos meus mo enviaram, um texto de protesto contra a intolerável carga policial na última manifestação, com prisões que se estenderam de S. Bento até ao Cais do Sodré. Até não deixa de ser curioso o contraste entre esta atuação e o autocontrolo impecável da polícia em 15 de setembro. Obviamente que concordo com este protesto, mas quis esperar pelo esclarecimento da minha posição, nesta entrada, para subscrever.

Não quero confundir-me com muitos que se têm solidarizado com os marginais que se destacaram nos desacatos nem sequer confundir-me com amigos que têm tido posições a meu ver ambíguas. Note-se que não me estou a referir a estes amigos promotores do protesto de que falei. Há companheiros de lutas que me vão criticar, como me criticaram quando manifestei a minha total falta de solidariedade com os arruaceiros dos tumultos de Londres. Não há nada de revolucionário nessa gente, só prejudicam a revolução e o movimento popular. Dizer que eles são uma forma particular de revolta popular é racionalmente abusivo e é politicamente perigoso.

É certo que são produto de toda uma sociedade, tal como os gangs dos bairros degradados, os hooligans, os seguranças de discoteca peritos e amantes da violência e, já agora, porque não? os viciados em drogas, todos “produtos sociais”. Aliás, muitos dos desordeiros encapuçados de S. Bento também são tudo isso. Começam de pequeninos. São os que assaltam os colegas de escola para lhes roubarem os ténis de marca, os que fazem "bullying", os que gozam a filmar uma miúda a ser espancada por duas galdérias da mesma idade, os que estragam um prédio novo com grafitis, os que rasgam a canivete os estofos do metro, os que riscam a todo o comprimento a pintura do meu carro. Mais ou menos jovens, são sociopatas. Coitadinhos, porque são uma esperança revolucionária?

Que sejam "pobres e inocentes produtos" da sociedade – ou do sistema, coisa ainda mais vaga e mais desculpabilizante – não chega nada para eu simpatizar. Seria determinismo primário e tonto eu considerar que as influências sociais, que não enjeito, anulam por inteiro as responsabilidades morais e cívicas individuais. Atenuante é atenuante, nunca anula o crime.

Essa gente é lumpen. Só já não digo "lumpenproletariat", à Marx, porque saem é da burguesia, mesmo muitos, se calhar, produtos de “boas famílias”. E nunca o lumpen foi revolucionário ou aprovado pelos grandes pensadores políticos de esquerda. Pelo contrário, o que sempre deram, na mudança política, foram agentes de mão e de cacete dos fascismos. Isto hoje é especialmente nefasto porque estamos, nesta crise, numa fase de grande ambiguidade política dos cidadãos, de oscilação. O que estão a sofrer puxa-os para uma política alternativa, mas coisas destas enquistam-nos nos seus valores ordeiros e tradicionais.

Repito que vou subscrever o protesto, mas deixo claro que o faria com muito maior gosto se nele lesse isto.

E estas coisas não dão tanto jeito ao governo e aos comandos mais conservadores da polícia? Porque é que os agentes à paisana da PSP, aqueles que podiam identificar e prender logo os vândalos, foram mandados retirar logo que Arménio Carlos abandonou a praça, sabendo-se bem que só então, sem a segurança da CGTP, é que se agravariam as provocações?

Mais umas notas pontuais.

Parece-me que a experiência recente aconselha a que não se convoquem manifestações para S. Bento. É verdade que o espaço tem grande simbologia política, mas grandes inconvenientes práticos. É pequeno e dá logo para a escadaria, considerada já terreno proibido, o que torna em fator de risco qualquer derrube de barreira. Os polícias estão obrigatoriamente muito próximos, a 10 metros ou menos. Manifestantes pacíficos e desordeiros estão quase que obrigatoriamente misturados. Sá há três canais de fuga: a D. Carlos, a Calçada da Estrela com grande inclinação para quem foge, a subir, e a R. S. Bento, estreita e com fácil atuação em tenaz de um corpo de polícia vindo do Rato.

A residência do primeiro ministro é outra que tal, com a agravante de que nem sequer os protestos têm visibilidade televisiva, por a polícia cortar a rua. Já Belém é diferente. Há um terreno neutro largo (toda a largura da rua), muito espaço na Praça Afonso de Albuquerque, muita fuga, que limita a ação da polícia de choque, e toda aquele conjunto de canteiros de jardim que impede uma frente compacta de polícia. Todavia, dar ênfase a Belém é exagerar o papel político do PR, o que, sem servir para desculpar a sua ambiguidade (o menos que posso dizer), também tem riscos de estímulo a qualquer cesarismo.

Isto são também memórias velhas. Ao contrário dos 1º de maio na baixa, cheia de caminhos de fuga e de lojas abertas que nos acolhiam a comprar retrozelos, a manifestação em que mais “porrada” apanhamos foi tecnicamente uma estupidez (também minha, dirigente estudantil): contra a guerra do Vietnam – de facto contra a nossa guerra colonial – frente à embaixada dos EUA, na Duque de Loulé. Avenida estreita, com carga policial vinda simultaneamente de cima e de baixo. À frente, a polícia de choque e os cães,  a fazerem-nos cair, atrás a “brigada de recolha”, os pides e os seus VW pretos. A partir desse dia, comecei a ter presente que tudo isto tem muito de técnica. Passei a saber muito bem onde me colocar.

Também me parece que é ilusório e perigoso ir-se a S. Bento para tentar controlar as coisas. Viu-se que é impossível. Aquela gente não é controlável, assim como os adeptos dos clubes que assistem pacificamente ao jogo do seu clube não controlam as claques. Pura e simplesmente, essa gente tem de ser isolada e deixada ao seu destino (nessa altura, se calhar desaparecem ou a polícia não lhes bate). Quanto ao seu “protesto político”, reparem que essa gente, bem identificável até por estilo pessoal, indumentária, tatuagens violentas e adereços grupais, não vai nas manifestações, só aparece em S. Bento.

Lumpen não, obrigado.

NOTA – Num bom texto no Arrastão, com que que concordo, Daniel Oliveira fala daqueles desordeiros como uma “minoria de idiotas”. Minoria sem dúvida, mas de que sejam simples idiotas é que duvido. Uma organização clandestina e difusa de mão-de-obra para toda a violência, política, clubística, de negócios escuros, de vida noturna, até de simples prazer pessoal e grupal, estilo "Laranja mecânica"? E com rede internacional? Dirão que é teoria da conspiração. "No creo en brujas, pero que las hay, hay!".

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Senhora Dona...

Carta de um passado futuro, de Isabel do Carmo:

O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele desígnio de falar "verdade", que consiste na banalização do mal, para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as contas são difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à porta e eles afinal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina de lavar alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos que... Não interessa.

Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os "remediados" só compravam fruta para as crianças e os pomares estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as crianças mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se ia ao talho comprar um bife que se pedia "mais tenrinho" para os mais pequenos, onde convinha que o peixe não cheirasse "a fénico". Não, não era a "alimentação mediterrânica", nos meios industriais e no interior isolado, era a sobrevivência.

Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que vão fazer agora os desempregados de "longa" duração, ou seja, ao fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham na rua nos "balões" ("Olha, hoje houve um ' balão' na Cuf, coitados!"). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos Patiño e de outros, para ver "como é que elas iam vestidas".

Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante o parto e após o parto. Mas havia a "obra das Mães" e fazia-se anualmente "o berço" nos liceus femininos onde se colocavam camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o mais premiado e os outros eram entregues a famílias pobres bem- comportadas (o que incluía, é óbvio, casamento pela Igreja).

Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico, vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo os aparelhos de fisioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os pedidos dos administrativos ("Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para o meu filho"). As pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de trabalho (ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em grandes massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas de cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E generalizadamente o vinho era barato e uma "boa zurrapa".

E todos por todo o lado pediam "um jeitinho", "um empenhozinho", "um padrinho", "depois dou-lhe qualquer coisinha", "olhe que no Natal não me esqueço de si" e procuravam "conhecer lá alguém".

Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras (e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham a quarta classe. Também na província não havia livrarias (abençoadas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema.

Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas. E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha; senhora (Maria); dona; senhora dona e... supremo desígnio - Madame.

Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por "mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.
Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa bem com a outra. A pobreza generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África, seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China, seja na Birmânia, seja em Portugal. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A troika a partir-se?

Está a haver um jogo de braço em relação à Grécia. De facto, são dois jogos misturados, como direi adiante. A Grécia precisa desesperadamente da libertação imediata de uma grande tranche do segundo resgate, cerca de 30 mil milhões de euros, sem os quais não pode cumprir compromissos da dívida a vencer nos próximos dias, nem pagar salários da função pública e pensões.

A posição alemã é de arrastar, de não decidir, escudada no argumento formal de que a troika ainda não aprovou o último relatório. Claro que isto só significa uma coisa. A Alemanha e os seus países capatazes vão deixar cair a Grécia, vão-lhe secar os recursos financeiros, vão obrigá-la, finalmente, a declarar falência e sair da zona euro, assim saneada. Saneada? A seguir virá Portugal, depois a Espanha, talvez a Itália, se calhar a França. Tenho como certo que, se continuar a haver moeda única, serão duas, o euro do norte e o euro do sul.

Mas porque é que a troika está a fazer o jogo, adiando o seu relatório? Pela razão simples de que não se entenderam. E isto é um fator novo  muito importante também para nós: deixou de haver o consenso da troika! É um impasse. Como diz o Guardian, “o eurogrupo não pode chegar a um acordo sem o relatório da troika. Mas não pode ter um relatório da troika sem antes eles próprios terem um acordo”.

De facto, não há troika, há dois parceiros. De um lado o FMI, do outro ambas as entidades europeias, CE e BCE, regidas pela mesma ideologia, pelo mesmo domínio político da Alemanha e seus amigos. O FMI tem vindo a desmarcar-se. Dominique Strauss-Kahn pode ser homem execrável, a fazer explodir de indignação virtuosa algumas bloguistas de feminismo à antiga. Mas é verdade que fez alguma inflexão da ideologia neo-liberal do FMI, assim como a sua sucessora Lagarde (gosto muito de mulheres cinquentonas que assumem os seus cabelos brancos).

Quem diria, há meses, que podia haver tal clivagem? Talvez os islandeses, que tiveram uma experiência com o FMI muito mais favorável do que nós com esta troika, parece que dominada pela União Europeia, a tal de “a Europa connosco”.

Ainda há tempos, caros amigos meus defendiam as teses de emprenhar pelos ouvidos: a culpa foi de gastarmos demais, agora temos de pagar a dívida como gente séria, assumimos o compromisso com a troika e temos de cumprir, as finanças de um país são como as da nossa casa, conhecemos as virtudes do povo alemão (esquecendo o nazismo) e já o Eça dizia que nós é que somos uns desgraçados, é tão giro e acariciador do ego escrever hoje novas Farpas, etc. Hoje, já os ouço muito mais incertos.

Com esta atitude das pessoas e com a mudança na opinião das instituições, a conclusão óbvia é que, nesta crise de processo histórico tão acelerado, só há campo para a incerteza, quase que dia a dia. Certezas só têm os fundamentalistas desta espécie de religião ultra-dogmática do neo-liberalismo, com Gaspar a celebrar a missa e Passos Coelho, pobre diabo, pouco dotado mentalmente, a acolitar.

Mas são criminosos políticos, objetivamente. Por uma simples razão: não veem estes fatores de mudança, não os aproveitam para negociar em favor do país, não veem mais nada do que a patética ambição pessoal de figurarem na história como protagonistas do seu projeto socialmente troglodita de inversão do progresso social.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Partidos - públicos ou privados?

Escrevi que nada do que é Esquerda me é alheio. Mas, não sendo militante de nenhum partido, até que ponto posso escrever sobre eles, criticá-los, fazer propostas? Claro que tenho total direito de expressão sobre tudo e todos, mas lembro-me da máxima de um grande amigo meu e “bloguista” muito lido: tudo é política e, criticando o que está do meu lado, estou a dar armas aos meus adversários, do outro lado.

Não concordo inteiramente. A esquerda é plural, fez-se muito com base em conceções globais de que derivaram experiências práticas diferentes, muitas vezes lesivas de um mínimo de possibilidade de convergência, muito mais de unidade. Isto levou a caricaturas dos mais nobres ideais de esquerda e à ideia bem infiltrada na opinião pública de que toda a esquerda é um grupo de lunáticos e/ou facínoras em que não se pode confiar. Assim, uma crítica serena, objetiva, não sectária, da esquerda por parte de gente de esquerda parece-me muito importante.

Há limites para essa crítica? Creio que sim, no que depende da ideia que temos do grau de posição dos partidos na dualidade público-privado. São associações de cidadãos livres, que a eles aderem por convicção ou por comunhão de interesses, que têm o direito de não serem condicionados nessa sua esfera de ação privada. Neste sentido, como não tenho de criticar a associação dos jogadores de matraquilhos ou o clube das gravatas de rato Mickey, também só deveria criticar os partidos se lá estivesse ou, claro, penalizá-los com o meu voto.

É óbvio que estou a caricaturar. Os partidos fazem parte do nosso sistema político, figuram na constituição e não é possível debater política sem os criticar. Os seus programas, as suas propostas a cada dia, as suas posições públicas devem ser escrutinadas por todos os cidadãos. Afinal, é a todos os eleitores que eles se dirigem, não só aos seus militantes. Elementar, Sr. La Palisse.

Esta é a sua natureza indiscutivelmente pública. Mas os seus estatutos e organização, os seus procedimentos eleitorais, as suas normas de funcionamento, os seus debates internos, as moções ou propostas em confronto, são matéria do público ou do privado? À primeira vista, muita gente pensará que é matéria privada dos partidos e dos seus membros. Se não sou membro, não vou interferir na casa de outros. E até acho ridículo que, como se tem visto, se levem a decisão do Tribunal Constitucional coisas internas e tricas partidárias.

No entanto, parece-me que tudo isso, no caso especial dos partidos, não é matéria privada, decorre, como coisa semi-pública, da sua natureza como alicerces do sistema democrático representativo. Para mais, muito deste semi-público tem grande importância política, porque a vida interna de um partido exemplifica muito o que seria uma sociedade dominada por esse partido. O comportamento, seriedade, rigor intelectual dos dirigentes; a conceção das regras de convivência, respeito, liberdade, afirmação de diferenças, etc., na vida interna de um partido podem ser transpostos para o modelo de sociedade que o partido defende.

Isto é tanto mais importante quanto hoje o eleitorado é cada vez menos sensível às propostas programáticas – que nem lê muito menos a quadros ideológicos globais e suas etiquetas. Quem é se rala com Louçã ser trotsquista ou Fazenda ser maoista em versão final albanesa? No entanto, para quem está mais metido dentro da história política e a viveu, cada um deles traduz ainda, transparentemente, os tiques, o estilo, os comportamentos que bebeu em jovem dessa influência de seita iluminada.

O que conta hoje é a imagem mediática, antes das eleições, e a avaliação da governação, depois das eleições. Da mesma forma, para muita gente, infelizmente, até “esquerda” é já uma etiqueta. Já houve tempo em que se julgava, acertadamente, que dizer que já não havia esquerda e direita definia logo quem o dissesse como pessoa de direita. 

Hoje não é assim. Para muita gente, as dicotomias são de outro tipo, revelando em muito uma crise do sistema democrático tal como o temos. É sério ou é aldrabão. É coerente ou é oportunista. É verdadeiro ou é mentiroso. É generoso ou é oportunista. Interessa-se pelos desprotegidos ou é lacaio dos ricos. É honesto ou é corrupto. Etc. Infelizmente, há de tudo em todos os partidos. A questão essencial é que há partidos em que um dos termos é dominante, outros em que esse termo negativo é exceção. Para mim, isto ainda coincide bastante com a velha dicotomia esquerda-direita. Não me parece velho romantismo meu. É que a esquerda ainda é fundamentalmente o campo da utopia e a direita o campo dos interesses. Ou se calhar, talvez para ser mais honesto, da esquerda são os meus amigos e da direita são os outros...

Vinha tudo isto como prólogo a uma nota sobre o que me parece estar a ser alguma evolução positiva (a meu ver) do Bloco de Esquerda: a convenção e as duas moções em confronto, uma muito instrutiva entrevista de João Semedo. Como isto já vai longo, continua na próxima entrada.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A licenciatura do Sr. Relvas

Como parte interessada, não tenho escrito sobre o caso da licenciatura do Sr. Relvas, apesar de, a despropósito, já ter sido insultado por leitores anónimos. Não tenho escrito porque a universidade sabe defender-se, usando os meios próprios e, admito, por razões egoístas de não gostar de ser acusado de estar a "fazer o frete".

Mas já chega, tenho a minha reputação a defender. Se eu pensasse que a ULHT era sequer uma pequena amostra de tudo o que dela se tem dito, é claro que já lá não estaria.

Desculpo erros, tento situá-los no contexto, para compreender e evitar repetição. Obviamente, não desculpo fraudes. Aquilo que agora anda dito por toda a parte, que o Sr. Relvas teve equivalência a disciplinas inexistentes, seria uma fraude. Não é, é uma mentira propagada pela comunicação social, lamentavelmente com origem numa afirmação descuidada dos inspetores. Isto foi lançado pelo Expresso, retomado por Marcelo Rebelo de Sousa, por muitos mais e hoje, na sua crónica do Público, por Rui Tavares, eurodeputado. Chega. Se eu não disser alguma coisa, mesmo que já tenha havido desmentidos claros, pode parecer que estou a alinhar numa fraude que, repito, não existiu.

Começo, obviamente, pela minha declaração de interesses. Sou professor, diretor de faculdade e pró-reitor da ULHT. Não acho que tudo corra perfeitamente na universidade, como em nenhuma, e por isto lá estou, com muitos outros, a tentar dar o meu contributo para aperfeiçoamentos. Pertenço a uma equipa reitoral que significou uma grande rotura em relação a uma situação anterior, do tempo do caso Relvas. Evolução normal de uma instituição não esclerosada. O atual reitor, e líder da equipa a que pertenço, teve a humildade digna, num artigo no Expresso, há meses, de reconhecer que houve erros, mas que estávamos firmemente determinados a que nunca se repetissem.

Não houve ilegalidades. O decreto dos graus, DL 74/2006, é vago quanto à atribuição de créditos em função da experiência profissional, aquilo que se chama a “creditação de aprendizagem prévia por experiência” (APEL). Indiscutivelmente, há que rever a legislação e incorporar nela as orientações que decorrem de uma prática internacional já bem estabelecida. Ainda há dias isto foi dito pelo Prof. Alberto Amaral, presidente da A3ES e eu concordo plenamente.

Houve irregularidades formais, sem dúvida, mas creio que sem dolo. Era um período de grande confusão de competências e de funcionamento na ULHT, período que eu já só conheci de raspão, porque entretanto muito se corrigiu. Não tudo, mas Roma e Pavia não se fazem num dia. O então reitor era uma personagem incontornável, um histórico da casa, com reconhecido mérito e com um grande peso na ULHT desde a sua fundação. Nestas circunstâncias, e com voluntarismo por entusiasmo, talvez com pouca sensatez, é vulgar haver alguma menor atenção aos procedimentos e algum excesso de protagonismo. Não posso dizer que, num passo da minha carreira, não tenha cometido erros desses.

Também não havia regulamento, agora já há. Mas mandava o bom senso que não se tivesse decidido nada antes da aprovação de um regulamento e de um código de boas práticas. Era assunto delicado, envolvendo um político importante (embora, recorde-se, com muito menos projeção política nesse tempo do que agora). Foi falta de sensibilidade política, não sei de quem nem me interessa. Não estou a fazer de juiz. Só sei é que, se estivesse no lugar de quem possa ser responsável, já há muito teria aceitado publicamente essa responsabilidade e assumido as devidas consequências.

Onde houve erros indisfarçáveis foi na valorização substantiva, académica, deste caso, da sua adequação ao processo de Bolonha. São juízos de valor pessoais com que a vida académica se confronta sempre, no quadro da grande liberdade dos professores. A creditação deve ser vista como forma de facilitar razoavelmente o prosseguimento ou o retomar de estudos, não a aquisição de título universitário para “cartão de visita”. Por isto, em termos práticos, nunca deve exceder uma fração menor do número de créditos total do curso. Também não se deve dar equiparação em abstrato a currículos e cargos, mormente cargos políticos; apenas a competências específicas, disciplina a disciplina, não em pacote. Também a competências transversais. Tudo isto é hoje consensual na ULHT. Não o era, reconhece-se, há anos atrás, quando se estava a aprender o processo de Bolonha, talvez com informação e reflexão insuficientes. 

A ULHT não foi caso único. Aliás, desde há anos que venho a escrever que, em geral, por todo o sistema universitário, público ou privado, o processo de Bolonha, em Portugal, é uma caricatura.

Com a justa conta, peso e medida, a ULHT deve aceitar – e já o fez – a sua responsabilidade. Não, obviamente, quando, como agora, o que aparece como acusação é mais um exemplo da incompetência, mesmo défice de raciocínio, de alguma comunicação social entregue hoje, cada vez mais, à mão de obra barata e incompetente de jovens estagiários incultos.

Às vezes, não nesta, até os jornalistas podem ter matéria importante para “caxa”, estragam-na por incompetência. Faz-me lembrar o caso da licenciatura de Sócrates. Escrevi várias vezes ao diretor do Público, a alertá-lo para que se estavam a desviar do obviamente essencial – e que continuo a pensar, com a minha experiência, que foi fraude académica – para irem para coisas como, entre muitas outras de total desconhecimento da universidade, o lançamento de notas ao domingo (quantas vezes o fiz, online; é uma formalidade burocrática, não tem nada a ver com a data do exame). Mas o Sr. Fernandes, em dotes intelectuais, está bom para o arquiteto Saraiva. Triste jornalismo!

Agora, vem a questão das disciplinas que não existiam! Vamos lá a esclarecer.

Mal ou bem – para mim mal – o Sr. Relvas viu-se-lhe atribuídas disciplinas no total de 160 dos 180 créditos do curso. Entre elas, umas tantas optativas, isto é, disciplinas que os alunos escolhem de entre uma geralmente grande lista. Claro que isto é incongruente com o processo de creditação, em que se pode dar equivalência de competências profissionais a disciplinas bem definidas, evidentemente que não a um conjunto indefinido de optativas. Todavia, isto foi o tal processo concetualmente errado, mas não ilegal nem sequer muito irregular, processualmente.

Mal ou bem, foram-lhe creditadas essas disciplinas. Claro que a consequência óbvia é que não tinha de as fazer. Por isto, independentemente de elas terem aberto ou não naquele ano (as optativas só abrem, em cada ano letivo, com um número mínimo de alunos), ele tinha direito (formal) a essa equivalência, em relação a disciplinas que já constavam do plano de estudos, independentemente de abrirem ou não num dado ano letivo. Não eram, como se tem dito, e ainda hoje Rui Tavares, disciplinas inexistentes! 

Insista-se: inegavelmente, o Sr. Relvas não podia fazer essas disciplinas porque elas não abriram naquele ano, apesar de já figurarem, como optativas, no plano do curso. Mas porque é que ele teria de as fazer, se lhe tinha sido dada equivalência curricular a essas disciplinas? É difícil de perceber? Como é que Marcelo Rebelo de Sousa, distinto e experiente professor universitário, não percebeu? Ou ele aos domingos à noite esquece o traje académico? E Rui Tavares, creio que também universitário antes de eurodeputado?

A ULHT cresceu desmesuradamente, paga agora por isso. Teve uma doença infantil. A sua estrutura de direção académica, designadamente a reitoria, era artesanal e impreparada para a grande expansão da ULHT. Depois, a ULHT precisou de novos quadros, de muita reflexão, de elaboração de muitas normas. Isto não se faz de um dia para o outro. Que eu penso que, com muitos outros, estou a contribuir para a sua evolução e que acho que estou a ser inteletualmente e profissionalmente honesto, é coisa de que, por minha honra, não admito que se duvide.

NOTA 1 – O ministro Crato sugere à ULHT que retire a concessão de grau a quem não o merece, nos termos da creditação do exercício. Estando em causa um seu colega de governo, é claramente uma manobra política ou uma provocação à ULHT ou ambas. Não faz mal. O processo vai passar pela reitoria. Logo veremos. Mas não só o caso Relvas. Todos terão de ser analisados com equidade. Mais, tendo em conta ilegalidades ou irregularidades, não decisões do foro estritamente académico, com a sua tradicional discricionaridade. Não se pode anular ao fim de anos uma aprovação medíocre num exame de um professor por princípio muito condescendente, desde que não haja favorecimento ou nepotismo. Seria o fim da autonomia académica. A minha opinião científica e académica só se pode sobrepor à de um meu colega num processo de elaboração de códigos de boas práticas. Qual é a universidade portuguesa que os tem? Se calhar, pelo que me compete, vai ser a ULHT a primeira a tê-los.

NOTA 2 – O meu pai era o Sr. Luís Costa, homem sem mácula, respeitadíssimo. Tinha o desgosto, é natural, de não ter tido meios para tirar o curso que a sua fulgurante inteligência merecia. Sei o que foi o Sr. Luís Costa, mas ninguém sabe o que teria sido o Dr. Luís Costa. Talvez não melhor do que o Sr. Luís Costa, até porque o curso que ele tanto desejava acho que não estava muito no seu feitio. E não o ter sido em nada o diminuiu na vida, muito menos na muito bem conseguida carreira profissional que fez como autodidata.