segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Saudades dos tempos da miséria (dos outros...)?

“Vi uma manifestação de pais, alunos e professores de uma escola pública, onde, dizem eles, chove em alguns locais e faz frio porque não há aquecimento na escola. Eu entrei para o ensino numa escola pública de uma aldeia da Serra do Marão. Todos chegávamos a pé, por montes e vales, sob um frio indescritível, e alguns chegavam descalços. Não havia, obviamente, qualquer aquecedor na única sala de aulas, em granito, onde se amontoavam todos os alunos, da 1ª à 4ª classe, com uma única professora - que não faltou um dia do ano. Não havia cadernos nem canetas, havia giz e lousa. O 'recreio' era um pequeno descampado de terra, onde jogávamos futebol com uma bola de trapos. Mais tarde, frequentei um liceu público, em Lisboa, onde também não havia aquecimento algum, o único recinto desportivo era um desmantelado campo de basquete em cimento, onde tentávamos jogar futebol de sete, e no barracão que fazia de ginásio, tínhamos de começar por limpar com esfregonas a água da chuva que caía do tecto. Que eu saiba, não morreu ninguém e, quem quis, estudou.”
Escrito por Miguel Sousa Tavares, no Expresso, 5 de Fevereiro de 2011. Sem comentários.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O lado norte do Mediterrânio está politicamente velho

Tenho dois queridos amigos que - também comigo e com outro membro de um quarteto de memórias, gostos e maneira de estar, mais alguém que agora transformou o quarteto em quinteto - que, dizia, têm posicionamento político muito próximo. Por posicionamento, claro que quero dizer coisa muito mais importante do que simpatia partidária, maneira de reagir ao pequeno acontecimento político. Falo de ideais, de princípios, de coisas que constroem durante muito anos o que somos nos 60s.
No entanto, divergem em coisa que não deixa de ser importante, o ponto de focagem do essencial da análise e crítica política. Creio que isto reflete, em relação a duas pessoas de alta qualidade, a grande mudança a que se está a assistir no pensamento político de esquerda, infelizmente sem tradução orgânica e de proposta de alternativa a curto prazo, no quadro institucional vigente.
Um dos meus amigos clama que toda a gente devia fazer como ele, gastar quase todo o seu tempo atual de reformado a estudar economia e a reler Ricardo. Porque hoje “it’s the economy, stupid”. Porque a política nacional anda à volta de tristes figuras, Dupont e Dupond, que nada decidem, que nem sequer conseguem fazer uma frente comum do sul contra a “camponesa da Saxónia” - eu costumo ser mais bruto, “a sargenta prussiana” - e o seu factotum gendarme Sarkosy. Porque se todos tivermos de exportar, à alemã, é preciso que todos possamos comprar. Porque a “ajuda” aos desgraçados devedores periféricos é ajuda aos banqueiros alemães e franceses que lhes possuem os títulos de dívida. Porque tudo isto é um sistema, o sistema aberrante, anti-económico do euro, fruto mais exuberante do monetarismo, austeritarismo, a reforçar o fundo essencial de neoliberalismo.
Contra esta visão de “culpa sistemática”, reage o outro meu amigo, muito influenciado, e muito bem, por toda uma longa experiência de luta política tradicional. Para ele, ainda sobreleva a política nacional, as lutas à dimensão da nossa esfera de informação e discussão. Atacar Merkel cheira-lhe a desculpabilizar Sócrates. Argumenta vivamente com o “endividámo-nos demais”, como arma de arremesso político, como se o endividamento tivesse nome (digo eu: Sócrates? Barroso? Guterres? O betão de Cavaco? O “compra, compra” da oferta agressiva da banca?). Louvavelmente, reagindo culturalmente contra as generalizações esquemáticas, cheira-lhe a que um antigermanismo é nova versão do antiamericanismo dos tempos simplistas do maniqueismo político da guerra fria.
Não estou certo de estar certo, mas desafiei-os a conversarmos daqui a um mês, com base no que penso que vai ser a “unificação” de ambas as atitudes. Primeiro o Ecofin, depois o conselho europeu, vão discutir a proposta franco-alemã de “flexibilização” do fundo europeu de “ajuda”, provavelmente agravada pela derrota eleitoral em Hamburgo e pelo receio de novas derrotas no ciclo eleitoral alemão.
Mesmo com possível aumento da capacidade financeira do fundo, vai-se reforçar a lógica egoísta imposta pela Alemanha, não vai haver “eurobonds”, não vai haver um orçamento europeu de transferências, não vai haver “europeização” das dívidas nacionais, os juros da "ajuda" serão próximos dos do mercado, Rompuy ou Barroso nunca serão Obama. O meu primeiro amigo vai dizer “eu não tinha razão?”.
Mas vai haver obrigatoriedade de constitucionalização por todos os países das regras alemães derramadas para Maastricht, de limites arbitrários ao défice e à dívida, vai haver a generalização da política alemã da competitividade por via do embaratecimento do trabalho, da elevação da idade da reforma, etc. Então, o meu segundo amigo vai dizer “eu não tinha razão? É a política que manda, contra isto sim, vai-se lutar, porque é política, e nacional porque o nosso governo é um lacaio”.
Os meus amigos vão-se entender, mas também em coisa muito elementar: nenhum, nem eu, vai poder usar eficazmente, perante oferta efetiva, aquilo que é hoje o nosso único poder de cidadão, o voto. Dupont ou Dupond?

P. S. - Acabo de ouvir uma notícia espantosa: "Sócrates foi chamado a Berlim para Angela Merkel lhe explicar o plano de reforma do fundo europeu". Chamado a Berlim, o primeiro ministro português, uma expressão de típica linguagem diplomática, "chamar um embaixador às Necessidades"? Não quero acreditar. Deve ser asneira de jovem jornalista cretino.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Uma freira do Facebook, o PCP e o Bloco

Tem sido notícia o caso da freira espanhola expulsa/demitida/saneada do convento, por ter usado do seu direito de liberdade de expressão, neste caso no Facebook, para criticar a sua vida conventual e as maldades a que está obrigada. Tem despertado grande solidariedade, há sempre quem reaja emotivamente (não digo que não seja saudável, em princípio) e, com a net, é só clicar no “send”, lá se amplifica um brado como no meu tempo de criança se amplificavam as cadeias de santinhos de S. Judas Tadeu - parece que caiu em esquecimento, mas era muito popular, juntamente com S. Maria Goretti.
Não dou para este peditório, porque a freira não o merece. Quanto à liberdade de expressão, como em relação a todas as liberdades essenciais, aos direitos do homem, toda a minha solidariedade para com aqueles que dela estão privados, como eu e a minha e anteriores gerações estiveram, por opressão ditatorial. Como estavam até agora (espero que vão deixar de estar) os corajosos tunisinos, egípcios, agora líbios e o mais que se verá. Não é este o caso da freira.
A freira entrou por sua livre vontade numa ordem religiosa que obriga a clausura, ao corte de relações com o exterior. Parece-me coisa horrorosa, mas devo aceitar que é coisa privada, entre Igreja, ordem e freiras. Há uma regra e não é a mim nem aos apoiantes da freira que protestam na net que compete emitir opinião, “not my business”.  Ela tem todo o direito a estar arrependida de ter professado, o direito de ter inegáveis críticas àquele mundo medieval, mas só tem legitimidade para isto no dia em que sair, fizer pela vida, deixar de comer a sopa do convento.
Com a grande riqueza dos nossos provérbios na sabedoria popular, sempre estranhei que não se use em Portugal um dos mais vulgares provérbios ingleses e americanos (como as culturas são diferentes): “you can’t have the cake and eat it”, não se pode ter o bolo e comê-lo.
Este “fait divers” só justifica escrito porque me parece ter analogia óbvia com a política, e em particular com as sucessivas dissidências do PCP (que não vou defender, nada hoje me liga a ele). Vou servir-me de um exemplo muito conhecido, mas há muitos casos. Zita Seabra foi expulsa, foi uma vítima, escreveu um livro e vendeu-o, recolheu imensas solidariedades. Foi expulsa porque violou as regras de honra com que se comprometeu. Não está em causa eu pensar que as regras são más, conta é que ela estava comprometida com elas (e muito se teria que dizer sobre como ela as seguiu!). Conta é que pessoa honrada só deixa de cumprir um contrato depois de o ter denunciado, com os riscos que possa correr. Tivesse saído pelo seu pé e merecia-me mais consideração. 
O mesmo para os que fizeram jogos políticos mediáticos, a coberto da “perestroika”, de tal forma ofensivos da honra política que parece que foram propositados para conquistar posições igualmente “aparatchiks” noutro partido.
Entretanto ou bastante antes, e ao longo de anos, houve muita gente que rompeu silenciosamente com o que estava a ser um “contrato” espartilhante. Fizeram-no com todo o direito, por convicção, saldando contas passadas com a sua consciência, fizeram-no com o silêncio humilde do vulgar soldado anónimo de infantaria, ninguém sabe deles. Estou convencido de que a maioria agradece que ninguém saiba deles.
Quer isto dizer que as regras partidárias, a que os militantes aderem e que enquanto lá estiverem é coisa de gente honrada cumprirem, são mero assunto interno? Claro que não, mas com bom senso. Não creio que devam ser matéria de legislação, muito menos, como por vezes se vê, mormente em casos de tricas internas e aparelhísticas dos dois amigalhaços do centrão, matéria para queixa ao Tribunal Constitucional. Os partidos obviamente que são de interesse público mas daí a terem honras de discussão de constitucionalidade vai grande distância. A penalização deve ser política, pelo voto.
Isto quer dizer que eu, como votante, tenho presente que, tendo estado a falar no PCP, não quero dar a esse partido responsabilidades de poder, porque receio que, uma vez lá, reproduza na sociedade a sua conceção particular da democracia, da liberdade de opinião, da “abertura mental” fora de quadros ideológicos rígidos. Nunca me esqueço de, no dia 26 de Novembro de 1975, desgostoso, vencido, ao mesmo tempo me ter vindo frequentemente à cabeça "será que nesta onda 'revolucionária' do verão quente eu não iria preso um dia qualquer, como reacionário?". Sabem quem foi Danton?
No entanto, faça-se justiça, o PCP é transparente, toda a gente sabe o que a casa gasta, toda a gente com um mínimo de informação e reflexão ideológica sabe o que é aquele bolorento “marxismo-leninismo” (declaração de interesses: tenho e mantenho profunda influência de Marx, nem me importo que me apodem do que ele nunca falou, o marxismo, mas nada tenho a ver com o leninismo, invocado por todos os dissidentes perestroikos).  
Muito diferente é o Bloco. Na sua génese, esquecendo o caso mais aceitável da Plataforma, que ao menos foi de gente que não se vendeu logo às prebendas do PS, depois aos conselhos de administração, estão dois partidos de referência ideológica execrável, se não fosse apenas pateta: trotskista e maoísta. Os dois principais dirigentes atuais do BE foram (ou parece que ainda o são, parece que PSR e UDP formalmente ainda existem) fervorosos adeptos dessas correntes sectárias. O que são hoje? São o que foram ou mudaram, o que é ótimo, mas deve ser claramente "anunciado"? Alguém os ouve hoje dizer “mea culpa”? É o mínimo que lhes devemos exigir.

(Editado, 21.2.1011)

P. S. - Lembra-me um leitor amavelmente crítico que não estou a ter em conta, em relação à freira, que muitas vezes as seitas tornam difícil, doloroso, penalizador, qualquer processo de rotura. Isto aplica-se a partidos sectários, à maçonaria, ao Opus dei, sei lá mais ao quê. É verdade. Eu tenho boas razões para o saber. Também é verdade que alguns acham que "se deve lutar lá dentro, porque só aí se pode fazer alguma coisa", mas isto já me parece tonteria.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Falta-nos agricultura


Dou de barato que este filme é, indiretamente, publicidade à BASF, embora não haja propaganda de qualquer seu produto. De qualquer forma, num país que quase deixou fenecer a sua agricultura, integrado numa união em que todos pagamos uma PAC que sustenta agricultores desocupados, quando nos é essencial dispormos de exportações de bens transacionáveis, julgo que vale a pena ver este vídeo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A brincar e a sério

Quando aqui tenho escrito "à la calle!" é "private joke" com o meu excelente amigo VM (nada de confusões!), homem da geração que Helena Matos acha que está instalada no poder, como se vê por ele, por mim e, entre muitos mais de/dos 60s, pelos dois outros grandes companheiros de tertúlia cervejeira, MCR e JMCP. Aqui vai uma troca de mensagens. Humor de quem a brincar leva muito a sério o sério.

De JVC para VM (a seguir à queda de Mubarak). "Ó V, e foi en la calle! Mas que pena não servir para cá…"
De VM para JVC. “Vai ser em todo o lado. Não há outra saída. Hoje um, amanhã outro ... Um dia há-de ser a Espanha e nós vamos por arrastamento.”
De JVC para VM. “Será que até no Irão, como se começou a ver hoje? O mundo está maluco, porque é que essa gente subdesenvolvida não fica civilizadamente no sofá, como nós, a ver a telenovela do romance Sarkozy-Merkel?”
De VM para JVC. “Já me  começo a sentir ultrapassado. Desta vez sairam mais cedo do que eu mandei. Era para ser só no fim de semana. Estou tramado com estes gajos.”

Corrupção

Às vezes, sinto-me com dificuldade em desmontar uma ideia generalizada, acriticamente encaixada nas cabeças, quando esse desmontar pode ajudar a desculpabilizar culpados. Nada me irrita tanto como, para ser honesto intelectualmente, dar armas aos meus adversários. Infelizmente, hoje há tanta má língua, tanta “informação segura” difundida pela net, tanta calúnia, que cada vez mais corro o tal risco, de ter de dizer que “olhe que não” a pessoas que estimo e que vão na onda do boato só porque, legitimamente, estão muito zangadas, o que lhes tolda o discernimento.
Veja-se: “os políticos são corruptos”. Dessa generalização relativa vai-se facilmente à generalização absoluta, “todos os políticos são corruptos”. Gente de esquerda, mesmo mais difusamente gente democrática, dizer isto é tiro no pé, é oferta aos saudosos do salazarismo que por aí andam.
Daí a dizer que “só os políticos são corruptos” é um pequeno passo. Não é verdade, que mais não seja porque, ao menos, os políticos estão mais expostos ao escrutínio público. A minha experiência de lidar com a gente do rés-do-chão dos dirigentes da função pública, o meu nível, indica-me que, também ao nível rasteiro, da pequena corrupção, ela é muito mais frequente, embora muito menos notória, a esse nível do que ao dos políticos. Cartões de crédito, carro e motorista para levar a madama ao cabeleireiro e os meninos ao colégio, almoço diário de trabalho com a secretária, mobiliário super no gabinete, Portos de honra por dá lá aquela palha, são coisas correntes em qualquer organismo público.
Caso flagrante, porque estupidamente tosco (estupidamente, quer dizer, a incorrer parvamente em ação criminal) é de um não político, até um artista, Miguel Graça Moura, segundo notícia já requentada do Público. Um diretor de orquestra sob alçada pública gastou 720.000 euros para si próprio em quatro anos, 200.000 euros em viagens (só um pequeno número de viagens com a orquestra), 240.000 euros em despesas várias, incluindo artigos de lingerie no valor de 1393 euros, 1014 euros de charutos cubanos, 5000 euros de vestuário na The Boss, aluguer de uma limusina na Tailândia por 1215 euros, 1198 euros numa joalharia brasileira, 1315 euros em artigos de calçado e malas em Paris, contas de restaurantes, anuais, à volta dos 17.000 euros. Fora a renda de casa e inúmeros livros e CDs. Mais, inconcebível, levantamentos de 36.000 euros em caixas de multibanco, em cash, com o cartão do organismo público.

É um político?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Álvaro Santos Pereira, para ler criticamente

Confesso que desconhecia Álvaro Santos Pereira (ASP) até à grande publicitação do seu livro “Os mitos da economia portuguesa”. Livro que tem para mim coisa estranha. Li-o em férias, em 2009. É época em que levo comigo coisas ligeiras, para descontrair. Acabei por ler o livro em ambos os registos, coisa ligeira porque lido com agrado, de leitura fácil, mas ao mesmo tempo saboreando-o com uma ideia de rigor, de discurso objetivo e racional, com uma muito saudável dose de provocação. Não é mistura estranha, é coisa muito habitual para quem, como eu, lê muito de origem anglo-saxónica, cultura que obviamente imbui ASP.
No entanto, tem os seus perigos, principalmente quando se escreve sobre economia. ASP, que agora sigo regularmente no seu Desmitos, causa-me “mixed feelings”. Como ainda há tempos comentei - suscitando alguma discussão - tenho dificuldade em considerar a economia (mais ainda outras “ciências sociais”, muito mais outras “ciências humanas”) como ciência, tal como entende ciência um biólogo como eu. As teorias económicas são refutáveis, para pensarmos em Popper? Uma ciência permite escolas antagónicas, sem uma tendência visível de hegemonia tendencial - no sentido do progresso histórico - de uma ou outra? Permite instrumentalização ideológica, como me parece, indiscutivelmente, que a economia permite, como a velha astrologia era suporte da decisão política de caldeus e todos os seus sucessores?
Aplicado isto a ASP, o seu discurso económico, que não sei criticar, leigo que sou, deixa-me a dúvida, pertinente como instinto de defesa em relação à tendência de adesão imediata e acrítica a um discurso bem elaborado: ASP tem indiscutível direito à sua posição ideológica e política. Mas até que ponto eu, seu leitor interessado, devo fazer o meu filtro? 
Deixo claro que, para mim, esta questão em relação a ASP é interessante, elogiosa, pela ambiguidade que encerra. Lendo e ouvindo os “economistas de serviço”, não fico com dúvidas, o seu discurso “científico” é descaradamente ideológico, conservador, neoliberal. Não situo aí ASP. Mas também me parece difícil situá-lo no outro lado, também com coerência evidente mesmo para um leigo, destacando os “Ladrões de bicicletas” por referência nacional, mas muito mais Krugman, Stiglitz, os economistas do Project Syndicate, os Economistas estarrecidos, etc.
ASP fica na penumbra, para mim. Não estou bem certo, mas parece-me que estamos distantes  ideologicamente e em aspirações políticas. No entanto, leio com grande confiança as suas análises e aceito as conclusões que delas tira, embora talvez com perspetivas opostas. O melhor exemplo é a sua entrada “Razões para a censura”. Não é preciso ler o texto; os gráficos são eloquentemente arrasadores. Digo para mim: “claro que concordo com ele, isto não pode continuar, esta política é uma desgraça”. Mas será que, politicamente!, temos a mesma ideia de como virar esta política?
Tenho escrito aqui que me preocupa que alguma esquerda, até na blogosfera, esteja a esquecer o essencial da política de hoje, a economia política, designadamente a política económica determinada pelo eixo franco-alemão (cada vez menos franco e cada vez mais alemão). Mas também alerto agora para que a convergência da crítica e do discurso económico (em que até obviamente não entro) pode escamotear que “it’s not only the economy, it’s also the politics, stupid!” 

O Egito, hoje

Notas soltas:

1. Hoje sou egípcio, como muitos egípcios devem ter sido portugueses no dia 25 de Abril de 1974.

2. Tenho o palpite que nada mais vai ser o mesmo no mundo dito árabe e que, importante, o fantasma do perigo fundamentalista islâmico vai perder influência como argumento de política internacional. Até agora, só valia a Turquia (com algumas limitações) como exemplo de laicismo islâmico - não contando com o caso distante da Indonésia agora democrática. Turquia e Egito juntos são um enorme "atrator" de influência no Magrebe e no Próximo Oriente.

3. No dia 25 de Abril, os meus amigos suíços passaram o dia a perguntar-me o que eu próprio, lá longe, não sabia bem: "o que são esses militares?". Também eu hoje me pergunto: "o que são e serão agora os militares egípcios? O vice-presidente? O alto conselho, presidido pelo até agora ministro da Defesa, não pelo vice-presidente? Quer isto dizer exército ou serviços secretos? E os oficiais jovens da geração da net e dos manifestantes? Os militares na rua que não reprimiram os manifestantes e até os acarinharam? Mas também os militares de topo cujo salário e negócio industrial-militar é garantido pelos EUA?"

4. A Suíça congelou os bens da família Mubarak. Hipocrisia abjeta. Só agora suspeitaram de que os bens podiam não ser legítimos? Ou têm é medo do que nunca se poderia ter passado em 30 anos, as autoridades egípcias os responsabilizarem?

5. Dizia esta tarde um jornalista da TSF: "parece uma festa, bandeiras, música. É como se o Egito tivesse ganhado todas as medalhas olímpicas e o campeonato do mundo de futebol". Inacreditável, a inversão de valores! Atemorizante, a mediocridade do nosso "quarto poder".

P. S. - 6. Quem são os dirigentes desta revolução? É claro que ela teve dirigentes. O controlo da entrada na praça (aparentemente em colaboração com os militares), a distribuição dos espaços, a montagem das tendas, bem organizada no centro da praça, como vemos na TV, o abastecimento de milhares de pessoas, os "cordões de simpatia" à volta dos tanques, o apoio aos jornalistas estrangeiros que se viu facilmente nas reportagens, a convocação posterior para o palácio ou para a televisão, tudo mostra um grande trabalho de organização, mesmo para quem nunca teve traquejo de ação política de rua, nos velhos tempos não saudosos.

Trabalho de quem? Dos jovens da net, seja lá isto o que for, e para rendição incondicional de quem, como eu, justamente critica aspetos negativos da net. Em nenhuma reportagem vi piquetes, gente a organizar. Tudo deve ter sido feito por sms ou twitter, via-se toda a gente de telemóvel ao ouvido. Esta revolução foi a primeira revolução da pós-modernidade. Mas como é que esses jovens idealistas, espontâneos, generosos, vão acordar no dia seguinte à vitória? Quem os vai representar? Que força política os vai reconhecer e ouvir como os reais revolucionários?

Faz-me lembrar os capitães atrapalhados quando os generais (fora os comandantes da Armada) da Junta  apareceram na TV a enquadrar o discurso do monoculado. Felizmente, deram-lhe a volta. Vão os jovens ignotos revolucionários da Praça Tahrir (da Libertação) dar a volta aos generais e aos políticos do "reviralho" à egípcia?

sábado, 5 de fevereiro de 2011

In memoriam

Soube pelo nosso amigo comum, José Medeiros Ferreira, da morte de António Borges Coutinho. Homem esquecido, porque os Açores estão distantes e os anos 60s ainda mais, ou só para serem perversamente invocados, como geração hoje instalada no poder (!), por Helena Matos e, ontem ou anteontem, por José Manuel Fernandes, nesse jornal de referência que é o Público.

Já não via o António há bastantes anos, desde a cerimónia de condecorações, que também me coube, em que, com toda a justiça, ele recebeu a Ordem da Liberdade. Voltei a vê-lo então com a analogia que ele sempre me despertou, a de La Fayette, o aristocrata que, contra as regras da casta, sobreleva a mentalidade e a ética do revolucionário, do progressista. Muitas reuniões políticas houve por volta de 1969 e das CDEs. Em casas ricas e pobres. Mas certamente muito poucas em solares de marqueses, como o da R. Marquês da Praia em Ponta Delgada.

Do António amigo, meu "patrono" no Gil, com Melo Antunes - e os já mais introduzidos, como o Medeiros Ferreira, aka Zé das barbas - não digo nada, é coisa privada. Do Borges Coutinho público, falou bem Medeiros Ferreira. Saravá, Borges Coutinho!

Nota - por falar em aristocracia e democracia, especificamente 1969, lembro que a primeira reunião em que participei em 1969, na criação das CDE, foi em S. Domingos de Benfica, no palácio Fronteira, rodeado e controlado pela Pide, com notável atitude de coragem do anfitrião, Fernando Mascarenhas. Homem a quem eu, plebeu e republicano, faço a homenagem excecional de tratar por Marquês de Fronteira, não por herança mas pelo que ele vale.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Protagonistas

Parece-me prematuro comentar as medidas propostas hoje para fortalecimento (?) do euro, antes de se conhecer a decisão do conselho europeu. No entanto, uma coisa já é certa. O plano é franco-alemão, foi apresentado com parangonas pelo duo Merkel-Sarkosy. Os outros 25 são amavelmente chamados à discussão, obviamente em posição subalterna e antecipadamente concordante. O consenso de Bruxelas só é consenso porque é simples sujeição da maioria dos governos europeus. Por outro lado, Barroso e a comissão europeia estão a desaparecer. E alguém conhece essa invenção de Lisboa, o Sr. Rompuy?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Política a baixo nível

Vital Moreira, no causa nossa, comenta a proposta de Lacão de redução do número de deputados. Critica porquê? Pelo que ela significa, pela redução da proporcionalidade, pelo reforço do centrão com prejuízo das margens, até por ser proposta à revelia do grupo parlamentar do PS, que acabou por desautorizar o ministro? Nada disto. Critica porque é mau negócio do PS, em relação ao PSD. "Vale uma troca bem mais valiosa do que a sugerida pelo dirigente socialista". Quer dizer: se a troca fosse mais valiosa, VM não objetaria.

Vital Moreira, nos últimos anos, tem sido o principal inimigo de si próprio, da sua reputação intelectual. Mas não esperava vê-lo descer ao nível da política de merceeiro (sem ofensa para os mui dignos merceeiros).

P. S. Mas será que o grupo parlamentar do PS, por detrás da redondeza de Assis e da sua declaração, está muito preocupado com a tal questão crucial da garantia da proporcionalidade e da representação das minorias? Ou não será pressão dos "back benchers" ignotos que também perderiam os seus lugares?

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

"À la calle!" (II)

Escrevi que estou a ser egípcio, cada vez mais cada dia que passa, como fui tunisino. Deixei uma leve alusão a vir a ser europeu, o que se pode entender como estar a prever uma revolução europeia do mesmo tipo. Claro que era figura de retórica, mas é bom deixar as coisas claras. Que nem se pense que eu possa transpor simplisticamente para a nossa situação o que estamos a testemunhar, e espero que a testemunhar com generalizada alegria. É verdade que os europeus da periferia vão sofrer uma espiral descendente de austeridade, dívida e défice, austeridade, etc. Já estão zangados e cada vez mais estarão zangados. Mas vão sair para a rua como os tunisinos e egípcios, possivelmente também os argelinos, jordanos e iemenitas? Não me parece.
É facto que o processo histórico, lá nos seus meandros dialéticos (um físico falaria na teoria do caos, no efeito borboleta, nos fractais, etc., mas vem tudo a dar ao mesmo) nos prega enormes partidas, de surpresa. As situações revolucionárias, muitas vezes, só se percebem com grande aproximação temporal. Quando me lembro de que, em 1970, eu em Angola, na guerra, me perguntava quando tudo aquilo acabaria, nem imaginava, nem ninguém, que estava a 4 anos do 25 de Abril. O que são quatro anos na escala de tempo da história?
No entanto, neste afundamento político, económico, geoestratégico (para quem gosta do conceito) da Europa milenar, 4 anos, sendo um segundo, podem ser fermento de grandes surpresas, numa perspetiva revolucionária. Isto quer dizer uma possível continuidade com este atual processo revolucionário do norte de África? Creio que não. Será outra coisa, ninguém sabe o quê.
O que se está a passar começa logo por ter uma base política radicalmente diferente. Nós vivemos em democracia formal estabilizada, eles em ditaduras. Quando a democracia como temos ainda é o grande referencial político, a bandeira de luta contra opressões por todo o mundo, a começar no próximo grande império, a China, parece-me inconcebível uma revolução para derrubar uma democracia. Seria experiência contrasensual.
Na Tunísia ou no Egito, mesmo na Argélia ou na Jordânia, é quase certo que, seja o que for que vier como poder político, não será pior do que o atual, porque pior só seria o fundamentalismo muçulmano, com pouco poder político nesses países. Pelo contrário, entre nós, a grande probabilidade de resultado de uma convulsão política seria a de um regime a relembrar o fascismo.
Também é verdade que temos corrupção, mas longe do nível de cleptocracia daqueles regimes. E, principalmente, não há justificação, entre nós, para tal aceitação da incerteza de alternativa política como na Tunísia (quem é o novo poder?) ou mesmo no Egito, apesar do provável papel de El Baradei. Muito menos se pensa que os europeus, por muito que lhes cresça a revolta contra o consenso político-económico de Berlim-Bruxelas que os vai conduzir à depauperação com cumplicidade de todos os governos, mesmo que de “esquerda” (Portugal, Espanha e Grécia, os que restam), muito menos se pensa, dizia, que estejam dispostos a morrer na rua às dezenas.
Quer tudo isto dizer que a onda sul-mediterrânica não nos faz pensar, senão como notícia televisiva? Creio que não, que devemos pensar bem no que nos pode surpreender o futuro, conjugando as motivações que são comuns de um lado e de outro do mar nosso com a grande diferença de situações. E, principalmente, tentando ver e ultrapassar o que nos limita, a nós europeus, em relação a uma vaga de revolta mediterrânica e a uma mudança revolucionária (no sentido científico do termo) desta Europa desconchavada que construíram à nossa revelia.

Como diz um querido amigo, no seu Politeia"essa luta acabará por favorecer, a Norte, todos os que lutam por um mundo diferente!". Certo, vem ao encontro do que eu disse. Mas o mais importante é começar a pensar nessa tal luta que esta de hoje vai favorecer.