Lucius Quinctius Cincinnatus (Cincinato) ocupou os mais altos cargos de patrício romano, senador, cônsul, general. Apesar de todo este poder, retirou-se no fim do mandato para a sua vila agrícola, onde uma delegação do senado o foi buscar, estava ele a lavrar a terra, diz a lenda, para assumir poderes de ditador, em 458 AC, face ao perigo de invasão de Roma pelos écuos e vólcuos, tribos itálicas não latinas. Venceu-os mas, contra a forte movimentação que queria prolongar o seu poder, recolheu novamente à sua quinta. Vinte anos depois, já com oitenta anos, é-lhe dado novamente o poder de ditador para derrotar a conspiração de Mélio e novamente abdica do poder e se retira para a vida privada quando Roma deixa de necessitar dele.
É o exemplo máximo da ética republicana. Entre nós, e deixada a vida pública para uma geração de arrivistas e oportunistas, a noção de ética reduz-se a “tudo o que não é ilegal é permitido”. Não é assim. A fórmula é juridicamente indiscutível como defesa dos direitos, na vida privada, mas não é válida na vida pública, embora tenha de ser sancionada politicamente e não judicialmente. Ainda mais do que a substância, o conteúdo essencial, não só formal, da ética política, até é importante a imagem, para um bom clima de confiança entre políticos e cidadãos: “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecê-lo”.
Note-se que, quando falo de vida pública é no sentido que lhe é atribuído por historiadores eminentes. Não se restringe a cargos políticos e abrange toda uma grande área de intervenção social directa ou indirectamente suportada pela comunidade: gestores de empresas públicas estatais ou municipais, de fundações apoiadas pelo Estado, de instituições de interesse público, mesmo que privadas, de confissões religiosas com benefícios sociais, de universidades privadas, de fornecedores de comunicação social, de ONGs, etc.
Vem isto a propósito de uma notícia de ontem do ionline sobre a nomeação da mulher do ministro Nuno Crato para um órgão da Fundação da Ciência e Tecnologia (FCT). Tem todos os ingredientes que referi, como refúgio no álibi de que o que não é ilegal está certo. A nomeação foi feita pelo secretário de Estado, não pelo ministro. O lugar é de consultoria, não remunerado. A FCT não é um órgão da administração directa, embora seja inegavelmente tutelada pelo ministro. Portanto, legalmente tudo bem, mas tudo contra a ética política. Aliás, o criticável começa logo pela senhora, que nunca se devia ter candidatado a esse cargo.
O que fica então para o privado? Dirão que Isabel dos Santos se move na esfera privada, que conseguiu a sua fortuna exclusivamente pelos seus méritos? Ou que uma EDP, a cobrar ricas rendas que todos pagamos e a ter liberdade de pagar o vencimento exorbitante do seu presidente, é coisa privada? Ou que o BPN, e agora o Banif, que estamos todos a pagar, são coisa privada?
Um caso que sempre me interessou, que estudei bem e sobre o qual escrevi, por exemplo aqui ("A Universidade no seu Labirinto", ver capítulo “Os centros de investigação e uma história insensata”, pág. 90 e seguintes), é o das fundações e associações de direito privado criadas pelas universidades. As primeiras estão a ser condicionadas pelas recentes medidas governamentais em relação às fundações, mas as associações (instituições privadas sem fins lucrativos, na língua de pau dos gestores de ciência e tecnologia) continuam a abundar e são um exemplo de confusão perigosa entre a esfera pública e a privada.
Com a designação popularizada de centros de investigação, são reconhecidas e financiadas pela FCT como se fossem unidades universitárias. Só prestam contas aos seus associados (grupos de investigadores como tal autoconstituídos, sem consagração institucional ou garantia de equidade em relação aos demais colegas). Funcionam corporativamente, em circuito fechado, porque, tipicamente, a direcção é que decide a integração de membros e são os membros que elegem a direcção. Quando os centros têm personalidade jurídica, a universidade que os acolhe, que lhes dá infraestruturas e que paga os salários dos professores membros do centro, sem os quais os centros não seriam viáveis, não tem nada a dizer. Muito posso dizer da minha experiência difícil com entidades dessas, quando dirigi um estabelecimento universitário.
As associações pretendem justificar-se com alegada facilitação administrativa e com mais expedita contratação de pessoal. Se é verdade que a contratação pelas universidades tem sido dificultada pela política troikiana do governo, já o argumento da facilitação administrativa é falso, a menos que se entenda por facilitação a falta de controlo e a opacidade da gestão, muitas vezes a versão autoritária e discricionária da gestão, em acumulação, do responsável pelo organismo público que, directa ou indirectamente, criou a associação.
Trata-se quase sempre de casos de conflito de interesses, com sobreposição de objectivos. Na prática, muitas vezes, apenas o desejo tribal de gerir meios e financiamentos externos (incluindo os da FCT) sem subordinação hierárquica. Muitas vezes, com estes poderes feudais, e tal como dizia D. João II, o rei só manda nas estradas. Como director, foi aquilo a que, com ajuda superior, me quiseram sujeitar.
Como expus desenvolvidamente neste artigo, aceito que, em muitos casos, haja toda a vantagem na constituição de entidades específicas, quando a universidade e a sua comunidade não possuem a experiência, motivação e mentalidade necessária para determinada actividade. Por exemplo, muitas das relações com as empresas, a criação de parques tecnológicos ou as incubadores de empresas pelas universidades, só são eficazes se articularem gestores, inovadores e académicos em entidades próprias, de natureza empresarial.
Curiosamente, são empresas deste tipo que o Tribunal de Contas quer proibir e não as associações que visam, fundamentalmente, fugir à disciplina e transparência da administração pública.
Curiosamente, são empresas deste tipo que o Tribunal de Contas quer proibir e não as associações que visam, fundamentalmente, fugir à disciplina e transparência da administração pública.
Temos em Portugal casos dessas empresas justificáveis mas creio que, na generalidade, as nossas associações para-universitárias se caracterizam é pela sobreposição concorrrencial de objecttivos, pela ambiguidade e pela indisciplina institucional que referi. Voltando ao início, nada disto é ilegal, mas, a meu ver, é pelo menos duvidoso que seja ético.
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