segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A reforma eleitoral é a panaceia?

Dia sim dia não, volta a discussão sobre as alterações democratizantes do sistema eleitoral, ou no que respeita à generalização, eventualmente contra a vontade dos partidos, de directas, primárias ou aparentadas; ou no que respeita ao voto preferencial, a pretexto da proximidade entre eleitores e eleitos e do combate ao domínio aparelhístico do partido sobre os candidatos e eleitos. Fico hoje pelo segundo problema.
A minha posição é pragmática. Dou de barato que os defensores dessas teses apresentam argumentos consistentes, mas o problema está em saber se a sua consistência vence debilidades evidentes ou muito prováveis. De fundo, e sem pragmatismo, defendo sempre a proporcionalidade, aliás só vigente nos países anglo-saxónicos. Qualquer entorse à proporcionalidade é um atentado grave à liberdade de escolha dos cidadãos, confinando os eleitores a um sistema bipartidário. Pior ainda, muitas vezes, ele tende para unipartidário e “consensual” quando um dos polos se rende a ideologias dominantes, como foi no fim do confronto entre liberais e conservadores ingleses, ou entre democratas e republicanos americanos na luta pela integração (os democratas sulistas eram mais racistas do que os republicanos nortenhos).
A tão apregoada proximidade é coisa de sistemas uninominais maioritários, “quem chega primeiro apanha tudo”. E tem muito de demagógico, isso de o gabinete de o representante em Washington estar sempre aberto aos eleitores ou de o deputado rural inglês ir ouvir os eleitores ao fim de semana.
Nada impede isto no nosso sistema, nos círculos já pequenos. Quantas vezes viajei de avião com um querido amigo desaparecido, José Medeiros Ferreira, que ia semanalmente aos Açores. Mas também ele me dizia que, ao fim do dia, lhe apareciam três ou quatro pessoas a colocarem-lhe problemas.
Pior ainda é o caso de círculos maiores. Por exemplo, nas listas de Lisboa e Porto, figuram principalmente personalidades notáveis dos partidos, em número considerável. A sua competência é provavelmente equivalente. Tenho o palpite de que uma escolha preferencial do eleitoral seria subordinada principalmente a factores de imagem e mediáticos. Ou seria por verdadeiras razões políticas, de afirmação própria, de rebeldia contra o aparelhismo?
E, na tecnicidade actual da intervenção parlamentar, com assuntos diversos a necessitarem de tratamento por especialistas, é aceitável que um mirífico e não provado princípio da proximidade eleitor-eleito prejudique a coerência final de um grupo parlamentar entretanto sujeito a remanejamentos pelos eleitores? E, mais importante, qual é a evidência mínima de que este problema seja algum dos factores importantes da degradação da democracia parlamentar, comparado, por exemplo, com os atropelos à ética, a corrupção, a promiscuidade e a porta giratória?
Finalmente, uma nota prática. Admitamos que esse sistema se aplica a círculos de dimensão mais reduzida, por exemplo de 12 deputados, e que concorrem 10 listas. O eleitor vai ter de assinalar o partido em que vota e, nesse, uns tantos eleitores preferidos (mesmo que seja só um). para salvaguarda do segredo de voto, tem de levar para a cabina todos os boletins10 boletins partidários ou um nominal com 120 nomes. Admitamos que ele não se perca nesse confusão, mesmo que seja uma velhota semianalfabeta. Regressa à mesa com um monte de papéis. Como garantir a destruição dos sobrantes?. Quantas mesas de voto para dar vazão a toto este tempo individual de votação? Já viram um boletim de voto italiano? Parece um lençol.
Como disse, prós e contras. Há vantagens essenciais que sobrelevam esses problemas? Muito bem. Senão, é tolice,
Claro que tudo se resolve com a ciberdemocracia, dizem, como nas novidades políticas partirárias. Mas esta gente tão podemos, tão democratas, tão novas comunicações em rede de cidadãos, esquece-se que os seus recursos e capacidades de pequeno-burgueses intelectuais são desconhecidas para milhares e milhares de cidadãos tão dignos como eles.
(Imagem: Condorcet, pioneiro da teoria do voto)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

As minhas desilusões com a universidade

Só recentemente é que voltei a escrever sobre a educação superior. Afinal, foi área que me deu grande reputação, por reflexão sobre experiência bem vivida, mas que abafei por não querer entrar em incompatibilidade com o meu trabalho na Lusófona, uma tentativa inglória de fazer, na prática, o que defendia nos escritos.
Agora, que me criaram habilidosamente uma situação em que não foram eles a despedir-me e se basearam na minha inevitável resposta de rescisão do contrato (“uma proposta que eu não podia deixar de recusar”), fico livre para voltar a este domínio, que tanto me interessa.
Vou começar por tratar de dois assuntos em que me desiludi, honestamente convencido, ao princípio, que seriam um grande progresso: o novo regime jurídico das instituições de ensino superior (RJIES) e o processo de Bolonha. Hoje fico pelo RJIES.
A tradição portuguesa de sistema de poderes universitários era excessivamente corporativa e colegial, autárquica, afogada em procedimentos complicados de interação de diversos órgãos académico, muitas vezes envolvendo procedimentos administrativos que não estavam na sua vocação. Pecavam fortemente por um espírito corporativo resiliente a influências dos “stakeholders” (os corpos sociais interessados na universidade).
O RJIES criou um novo órgão, o conselho geral, constituído por membros internos e também por personalidades externas, tanto a nível da universidade como dos seus estabelecimentos. Conheço bem essa solução porque já tinha sido adoptada no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, de que fui director.
Que papel desempenham os externos? Quase nulo, porque frequentemente seguem orientações mais ou menos subtis do reitor ou ouvem as opiniões do director de faculdade ou instituto.
Que força têm os membros dos conselhos gerais eleitos em representação de professores e investigadores? Quase nula, quando estão dependentes do poder arbitrário dos directores sobre as suas carreiras, nomeadamente a abertura de concursos de promoção.
A cada nível, os poderes dos reitores e dos diretores de faculdade ou institutos são abusivos, na prática incontroláveis, incompatíveis com o necessário diálogo entre órgãos administrativos e académicos que está na base da cultura universitária. E quando, por mecanismos conhecidos de cumplicidades, relações políticas e de irmandades, isto põe em lugares decisivos gente desonesta, autoritária, quase psicopatas, a situação é explosiva.

Universidades privadas

Sempre que se fala nas universidades privadas, surgem dois argumentos: o da liberdade de aprender e ensinar, e o da alta qualidade da educação superior privada nos EUA. O primeiro argumento é falacioso, se defendido em abstracto. Também há liberdade de criar bancos, mas isso não legitima as falcatruas do BPN e do BES.
Igualmente desonesto é o segundo argumento, que se refere a um caso único. Na Europa, há uma minoria de universidades privadas (das quais um bom número são concordatárias ou confessionais), nenhuma das quais aparecendo em destaque nos “rankings”. Na América latina, destacam-se pelo seu número, num sistema em que a expansão e diversificação do sistema superior público foram tardias e não correspondendo a uma grande procura.
Num sistema desses, muito desregulado, as instituições privadas são de níveis e natureza muito diversos, mas sendo consensual que muito atrás, em qualidade, das universidades públicas e dirigidas segundo uma lógica predominantemente empresarial, em desfavor da qualidade académica. O melhor exemplo é o do Brasil, em que principalmente as federais, mas também as estatais e até algumas municipais, têm dado saltos de qualidade consideráveis.O cerne da qualidade universitária moderna, em todos os modelos estabelecidos (newmaniano, humboldtiano, mesmo o napoleónico) é o da simbiose entre ensino e investigação. É a grande carência do ensino privado
É certo que há, nos EUA, um modelo bem sucedido, mas muito limitado, o das universidades de ensino (“teaching universities”), que prescindem da investigação para concentrarem todos os recursos na qualidade de ensino. Simplesmente, reconhecendo que um ensino de qualidade só pode ser ministrado por cientistas actualizados, com mentalidade crítica, estas universidades estabelecem acordos com institutos de investigação para recrutamento dos seus docentes.
Da mesma forma, as privadas aplicaram mecanicamente e só nos aspectos formais o que, embora com muitas limitações, foi o processo recente mais marcante de reforma universitária, o de Bolonha. E de nada valem as parangonas sobre a excelência (deixou de haver medianos e medíocres neste país) e a inovação e qualidade dos projectos educativos, em geral (mas também nas públicas) uma cópia das atribuições estipuladas na lei. Conhecem-se alguma verdadeira declaração de missão (“mission statement”)? 
Sujeitas a interesses exclusivamente empresariais, incapazes de obterem financiamento para projectos de qualidade geradores de receitas, sem cultura de angariação de fundos (“fund raising”), apertadas pelos efeitos da crise, com considerável diminuição da procura e das receitas de propinas, as privadas incorrem em três falhas essenciais:
1. Não dispõem de unidades de investigação com qualidade. Custa-me a perceber alguma complacência do sistema nacional de avaliação, agora agravada pela alteração legislativa do ministro Crato, o exigente, que aceita os indicadores de investigação dos docentes fora da universidade, não só os intramuros. Tudo isto é particularmente grave a nível de mestrado e muito mais de doutoramento. Se os orientadores trabalham fora, que investigação de tese, e onde, fazem os doutorandos? Os pais não percebem o logro, não têm informação fidedigna nem a noção da importância disto e lá continuam a inscrever os filhos (até a universidade pública conseguir absorver todos, o que não vem longe).
2. Não há carreiras docentes, nem a lei o impõe. Não há provas de progressão, os docentes são admitidos e promovidos a bel-prazer das administrações (não dos órgãos académicos), muitas vezes por razões políticas, de fraternidades ou de influência financeira. Muitos são convidados, sem qualificações académicas. A Autónoma lá tinha lugar reservado para um recente político em queda. Entre tarefas que me foram cometidas, figurou a elaboração de um projecto de estatuto de carreira. Passou pelos órgãos académicos, com grande apoio, mas ficou-se pela administração.
3. A percentagem de docentes em tempo inteiro é mínima. Não se confunda com os que são declarados como tal só para cumprir rácios. A grande maioria entra e sai para dar aulas, não se interessa pelos alunos, não os conhece, não os acompanha, não faz sessões tutoriais. Entretanto, numa situação geral de precariedade, os docentes (com a excepção de uma ou duas universidades) ganham à hora, por tabelas vergonhosas e estão sujeitos a rescisões de contrato a qualquer hora. Os vencimentos dos proprietários nunca são divulgados, mesmo quando os dos docentes e funcionários sofrem cortes.
Voltemos à questão da propriedade, que julgo estar na base de muito disto. A propriedade das instituições de educação superior, que não têm personalidade jurídica própria, pode competir a empresas, fundações e cooperativas. Em todos os casos, tanto quanto julgo saber, há domínio e apropriação de lucros por um número limitado de pessoas, muitas vezes sem cultura académica, sem qualificações ou tendo-as obtido na sua própria universidade, imagina-se com que rigor e isenção de avaliação.
É aqui que se distingue radicalmente o sistema americano. É certo que há muitas universidades privadas, no sentido de instituições com fins lucrativos. Mas aquelas que prestigiam o sistema “privado” estão longe de ser privadas, com lógica de lucro.
As velhas universidades americanas – Harvard, Princeton, Yale, Cornell, etc. – não são propriamente privadas, antes comunitárias. Foram criadas ainda no séc. XVII pelas primeiras comunidades de colonos, com grande autonomia. Em Harvard, um “President” era contratado pelo conselho da comunidade para dirigir a corporação (o governo da universidade), que se mantinha por renovação da sua composição, por meio de cooptação. O conselho de Massachusetts nomeava também um órgão de supervisão, os “overseers”.
Com adaptações, ainda hoje é assim. Passou a haver foi uma outra divisão de poderes, com as atribuições académicas entregues fundamentalmente aos directores ("head") de escola (mestrado e doutoramento) e do colégio (licenciaturas) e o presidente e a corporação dedicados principalmente às relações institucionais e à angariação de fundos. Mas, crucialmente, todas as receitas são reinvestidas e não há distribuição de lucros.
Isto nada tem a ver com a nossa situação. As universidades privadas (e algumas públicas, bem como muitos politécnicos) são fábricas de canudos. A lógica empresarial sobrepõe-se a tudo e os reitores, que deviam ser os defensores da cultura e do rigor académico) são muitas vezes figuras menores, condicionados por falta de alternativas de carreira e ao serviço “de quem manda”.
Julgo que não devia ser permitida a propriedade de universidades por empresas e, no caso de fundações e cooperativas, só com rigoroso escrutínio. Recomendo a leitura do que é um caso diferente e interessante de uma universidade cooperativa aberta, a Universidade de Mondragon, no País Basco, em que a cooperativa é composta por todos os membros da universidade, com igualdade de direitos.
Declaração de interesses – Nestes últimos anos pertenci a uma universidade privada e cheguei a ser pró-reitor. Em todos os cargos que tive sempre pugnei para que estes princípios fossem implementados, e sempre sem sucesso. Tomaram finalmente uma decisão que sabiam ser inaceitável para a minha dignidade. Não tenho mais obrigações de reserva para com a universidade, estou livre para escrever o que penso e julgo ser de interesse público.