1. Cada vez somos mais
Em geral, tosto de ler Manuel Carvalho (MC), subdirector do Público, mesmo quando não concordo (ler coisas inteligentes de uma pessoa com quem não se concorda até pode ser muito interessante). Não me parece arriscado deduzir dos artigos de opinião de MC que é firmemente oposto a este governo e, talvez, pelo menos reticente em relação ao PS. Mas tudo é escrito com serenidade e recionalidade. Dou como exemplos artigos seus recentes, tais como “O fantasma alemão”, “O dito, o não dito e o reiterado”, “Foi você que pediu o FMI?” e uma excelente revisão crítica, sucinta mas muito articulada, da história da social-democracia europeia, “SPD comemora 150 anos sem saber o que fazer da social-democracia”.
No passado domingo, escreveu um artigo, “O recurso à violência política é constitucional?” (sem “link”), com um tom muito crítico ao que muitos consideram ser apelos de Mário Soares e Vasco Lourenço à violência. Não sou dos que afastam liminarmente a violência como sempre condenável em democracia, quando os poderes de uma democracia formal pode ser violenta contra o povo. E é preciso saber o que se quer dizer com violência, palavra bastante ambígua; não falo de mortos e feridos. Mas não é isto que vou discutir agora, antes um aspecto bem expresso no artigo, de se estar a tentar construir um amplo movimento de protesto – que obviamente é positivo – mas sem compromisso possível entre propostas de solução.
A menos que ouse dar a resposta à pergunta de um milhão de dólares que o PS não é capaz de dar: deve ou não deve o país recusar a austeridade da troika e pagar os custos respectivos, que podem passar pela renegociação da dívida e pelo regresso ao escudo? Estando dependente da ajuda financeira externa e das suas imposições, o cenário de mudança proposto por Mário Soares e pelos que acorreram à Aula Magna não acontece com uma simples mudança de rostos. Portugal pode e deve ser melhor governado, mas nenhuma governação radicalmente alternativa será viável sem que a troika se vá embora.
Alguém acredita que o FMI, o BCE e a Comissão Europeia iriam perdoar a um novo Governo e a um novo presidente, eventualmente surgidos na sequência de uma acção violenta, cortes nos salários e nas pensões? Em tempos, seria possível lançar uma mensagem ao internacionalismo socialista e esperar que daí viessem apoios, como aconteceu tantas vezes no passado. Infelizmente, hoje o discurso da austeridade banaliza-se perante “a crise generalizada da socialdemocracia, depois de capturada pelo pensamento único do liberalismo conservador (…).
Cada vez somos mais a dizer, passe o plebeísmo, que “ou sim ou sopas”, ou que não se pode ter o bolo e comê-lo, como quer o PS (NOTA – o que não quer dizer que eu negue a importância das acções de protesto, as únicas que, por enquanto, isolam e afrontam o governo de traição ao povo e à dignidade nacional).
2. Duas propostas surpreendentes (para um leigo)
a) O bem conhecido e reputado articulista do Financial Times Wolfgang Münchau, num artigo de há poucos dias, “Why Europe needs to try unconventional policy” (“Porque precisa a Europa de experimentar uma política não convencional”), faz uma proposta que ainda não tinha visto formulada, a da adopção pelo BCE de uma política de alívio quantitativo (“quantitative easing”, QE).
Espero não me enganar ao dizer que é mais avançada do que a eventual emissão de euro-obrigações e mesmo do que as “outright monetary transactions” (OMT). As OMT e a política de QE significam a compra de títulos ou obrigações pelo banco central, mas a distinção fina entre ambas ultrapassa-me, tecnicamente. Espero ajuda dos meus amigos economistas. O que diz Münchau é que o QE é mais eficaz quando a taxa de juro está perigosamente perto de zero, com uma inflação baixa, a ameaçar deflação. Além disso, o plano de OMT é mais de criação de um sistema de segurança para os investidores do que de verdadeira injecção de dinheiro por compra de títulos.
Pelo que leio, o QE tem funcionado nos EUA e no Reino Unido. No entanto, se a Alemanha nem quer ouvir falar de mutualização da dívida, se ainda vai ouvir o seu tribunal constitucional sobre as OMT, como esperar que dê o “passo de gigante” de aceitar o QE? E terá Draghi coragem de alguma vez propor tal coisa?
b) À segunda proposta que hoje me aparece já posso reagir mais politicamente, com menos dependência técnica. Ela vem de Ashoka Mody, ex-economista do FMI e chefe da missão na Irlanda, que conhecemos principalmente por, há meses, ter declarado que a austeridade era uma política autoderrotada, por não resultar em crescimento, antes em aumento da dívida.
Num estudo intitulado “A Schuman compact for the euro area”, de que só li ainda o resumo, Mody parte de duas constatações: 1. não é possível alcançar uma união política europeia; 2. as políticas orçamentais e bancárias podem funcionar a nível nacional. Assim sendo, propõe que a política orçamental seja devolvida aos países; que se minimize o risco de dívidas excessiva por proibição de resgates, mas com a contrapartida de possibilidade de restruturações; que se reduza a dimensão da área bancária europeia, com limitação do aumento do número de bancos zombie.
Há por aí europeistas que terão um chilique se lerem este ensaio de Mody. Ainda por cima, invocando em vão o sagrado nome de Schuman…
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