terça-feira, 5 de novembro de 2013

Mais uma reflexão sobre a esquerda

Nos tempos que vivemos, quem pode criticar que haja uma vaga notória de emotividade, de alguma falta de reflexão objectiva sobre a política e, no caso que me interessa, sobre a política de esquerda? E até, porque o principal é a acção, não esquecendo que no clássico triângulo da nossa mente, razão-afecto-acção, não é só a razão que conduz à acção. Mas cada um contribui como melhor pode e julgo que, até por treino profissional de muitos anos, o meu é o de desafiar a uma reflexão racionaliza. 

Merda, sou lúcido!

Neste sentido, seguem-se algumas notas, ainda sobre a renovação da esquerda. 

Permita-se-me antes o desabafo de que detesto a pseudo-humildade, que li há dias, de quem declara que não pode entrar em polémica comigo por eu ser depreciativo em relação aos que não são intelectuais como eu (mas eu sou qualificado academicamente em política ou economia, como sou de facto em biologia molecular e microbiologia?). É o argumento mais tartufiano para fugir à discussão aberta de ideias, em áreas em que, como cidadãos, somos iguais em oportunidades.

Mais uma vez, é uma entrada longa e, por isto, aqui vai um índice:


Creio que muito do que se tem escrito sobre a necessidade de criação de um novo partido peca pela grande indefinição do que se pretende com ele e do que ele deve ser. Muitas vezes, fica-se pelo circunstancial e não se vai ao essencial. Por exemplo, a definição pela negativa, em vez de pela positiva.

É recorrente a afirmação de que o PCP é isto e aquilo, de que o PS é outro isto e outro aquilo e que é preciso um novo partido que não seja nem istos nem aquilos. Raramente tenho visto um esboço de proposta programática e, quando alguém o faz e, inevitavelmente, tem de ir ao âmago da política de hoje – a economia política, a hegemonia neoliberal, o euro, a crise, a austeridade – muitos fogem como diabo da cruz porque é muito mais fácil falar em termos políticos tradicionais do que assumir que é preciso pensar, à Clinton, que “it’s the economy, stupid”, em que não se sentem minimamente à vontade. Muitos pensam como os partidos velhos, dizendo que querem um partido novo.

Daí a perspectiva geográfica, que discuti, de ocupação de espaço, a meu ver uma fantasia, entre PCP e PS. Não vou repetir-me, mas lembrar que isto não faz sentido. Quer-se é um partido um pouco ou muito mais à esquerda do que o PS? Em quê? Em programa e em que aspectos concretos do programa? Em ideologia? Ou apenas em estar disposto a preferir alianças com o PCP e o BE, em vez da sua irresistível atracção pela direita? Então é o tal “verdadeiro partido socialista” de que se fala há 40 anos. Não serão muitos dos que então o proclamavam que agora voltam ao mesmo? É um pequeno clube de políticos saudosistas ou são os novos contestatários de hoje?

A ideia de um novo partido que seja uma “coisa” definida só por desafiar o PS a assumir-se como esquerda não é nova. Não se lembram do PRD? Não contribuiu em nada para qualquer inflexão do PS, antes o enquistou. Não serviu de pretexto para qualquer sinal de renovação do PCP e, afinal, abriu foi o caminho ao cavaquismo. Também todas as tentativas de construir o “verdadeiro” PS foram ilusórias, desde a tendência Manuel Serra às sucessivas vagas de entrada no PS de grupos salvadores que acabaram por se transformar à imagem e semelhança, como os ex-MES. 

Muito menos hoje, com um eleitorado socialista conformado e rendido à inevitabilidade da política troikiana. Com um aparelho cada vez mais carreirista e sem valores ideológicos firmes. Com inserção do PS num movimento europeu de assimilação ideológica da social-democracia pelo neoliberalismo. Com ausência, ou pelo menos com grande debilidade e inviabilidade pública de uma oposição interna de esquerda. 

Também não conheço na Europa nenhuma experiência recente de um partido que tenha conseguido trazer o partido social-democrata para a esquerda. Até agora mesmo, na Alemanha, o SPD recusou qualquer hipótese mesmo de conversa com os Die Linke e os Verdes para ir pressurosamente aliar-se à Sra Merkel, como já o Pasok se tinha aliado com a Nova Democracia e a extrema direita e não com a Syriza ou o KKE. Por que milagre será diferente em Portugal? Por espírito santo de Hollande, a maior fraude recente na social-democracia europeia?

Volto a dizer que desejo sinceramente uma convergência entre a esquerda e o PS, mas sou suficientemente realista para, como se fosse num jogo de roleta, não pôr nessa casa todas as minhas fichas.

Um lema mais recente é o da falta do sentimento de representação. É o que Rui Tavares usa mais enfaticamente na sua entrevista de sábado ao Expresso, em que anuncia o seu empenhamento na criação de um partido à medida pessoal para as eleições europeias de 2014, em que é parte interessada. Segundo ele, as pessoas não sabem em quem votar e abstêm-se. É provavelmente verdade, mas não generalizável. 

Acredito que isto se passa, à esquerda, com muitos dos que votam em branco, mas que ainda têm expressão diminuta. Mas dizer que um novo partido – de esquerda! – pode atrair percentagem considerável dos quase metade de abstencionistas é ignorar completamente a ciência política e a sociologia eleitoral. Os abstencionistas situam-se principalmente no pântano central, cansados do seu balanço entre, no nosso caso, PS e PSD. No caso presente, de situação de crise e de hegemonização ideológica e desinformação, são provavelmente pessoas que pertencem ao grande arco troiano que continua a dar cerca de 80% nas sondagens, que têm medo de uma política económica alternativa e que não sabem bem qual o partido de centrão que lhes dá essa segurança com o mínimo de sacrifício. Ou os desalentados que acham que já tanto faz porque todos – nesse pântano – são iguais.


Honestamente, ainda não li um único texto sobre a mítica unidade de esquerda (traduzida mecanicamente para unidade PCP-BE-PS) que avançasse minimamente com a perspectiva de ganhos políticos efectivos – não apenas simbólicos ou afectivos – dessa unidade. A intenção é louvável, claro, é a fábula do molho de vimes, mas há sempre que pesar prós e contras. E, desde o princípio, reflectir sobre o que o mito tem de bases objectivas e racionais ou se é só sonho ou sombra de história passada e hoje ultrapassada.

Creio que um bom marco temporal de partida para esta reflexão é o da década de 30 do século passado, em que a III Internacional promoveu as frentes populares. Em alguns casos, numa atitude defensiva para combater o fascismo, noutros ofensivamente, para o prevenir, como no caso da frente popular francesa. Toda a gente conhece esta história e não vale a pena desenvolver, mas saliento duas coisas importantes: 1. por mais ameaçadora que pareça ter sido a política capitalista da época, por via dos fascismos, não correspondeu a uma mudança estrutural do capitalismo, como hoje (veremos adiante); 2. a social-democracia europeia ainda não tinha passado pela sua grande viragem de conciliação com a direita que foi marcada pelo congresso alemão de Bad Godesberg, em 1959.

O caso português (e também o espanhol) é específico, por ter tido uma ditadura de tipo fascista perdurando muito para além do desvio de direita da social-democracia, mas diferindo do espanhol por não ter então um partido socialista forte, como o PSOE. Creio que só por muito má vontade é que se pode dizer que, até ao 25 de Abril, não houve uma busca sistemática da unidade, mesmo quando o campo republicano tradicional impôs a candidatura de Delgado (no que, afinal, tinha razão) ou bloqueou a afirmação da solidariedade anticolonial, ou quando o sector socialista se deixou cativar pela ilusão marcelista, concorrendo eleitoralmente nas CEUD.

É verdade que, a seguir ao 25 de Abril, a meu ver, a perspectiva unitária, necessária para a defesa da revolução, teve contradições, nomeadamente a afirmação partidária, muitas vezes com expressões inaceitáveis de sectarismo e de triunfalismo, principalmente por parte do PCP. Também foi inviável, em parte por acções externas, até estrangeiras, mas em boa parte pelo sectarismo entretanto acumulado, resolver a crise do verão de 75. O refluxo revolucionário após o 25 de Novembro, em que o PCP teve uma atitude inteligente, podia ter sido outra oportunidade, se o PS tivesse compreendido que a sua revanche podia fazer-lhe correr o risco de prisão pela direita, como aconteceu, principalmente porque os rancores viscerais de Mário Soares, no caso contra Eanes, arrastaram o PS para uma via que, culminando no bloco central, abriram definitivamente o caminho à AD e depois ao cavaquismo. 

Com tudo isto, sedimentou-se uma quezília mútua, na altura compreensível, mas que hoje é só um álibi. A maioria dos militantes partidários e dos cidadãos que falam disto não a viveram e falam por ouvir dizer.  Não a viveram o suficiente para que, hoje, essa história justifique a falta de entendimento.

Entretanto muito mudou. 

No mundo, implodiu o sistema soviético e a concepção marxista-leninista do partido e da organização e vida sociais. O PCP, aparentemente, não tirou as devidas lições. Por “devidas” claro que não estou a falar de rendição tardia ao paradigma social-democrata, ainda por cima quando esta está em acelerado desvio da sua natureza fundadora. 

No mundo, impôs-se a globalização, a financeirização, o neoliberalismo (melhor dito, o ultraliberalismo) e, na Europa, uma construção aberrante de um espaço económico e monetário unificado no euro. O PS, se se quisesse manter como partido de esquerda, não tirou as devidas lições. Por “devidas” claro que não estou a falar de rendição tardia ao paradigma comunista, ainda por cima quando este entrou em falência.

Em Portugal, mudou a relação de forças, em favor da direita, mudou a origem, carreira e cultura dos actores políticos – os jotas! –, mudou o domínio dos instrumentos de hegemonia cultural e ideológica (comunicação social, influência económica nos media, venalidade dos informadores e comentadores). Mais importante, porque menos perceptível, mudou a estrutura social, mudou o padrão do trabalho, mudou a estrutura demográfica, uniformizou-se à direita a matriz ideológica formadora das universidades, mudaram as relações geracionais, mudaram as relações de solidariedade, mudaram as aspirações sociais e as projecções psicossociais, etc.

Os partidos convencionais ainda não abordaram estas mudanças. Um único o fez, ingloriamente e antes do tempo, mas já desapareceu, o MDP dos princípios dos anos 90, de que tenho de falar um dia destes. Em relação aos actuais, a sua convergência ou unidade não pode ser mais do que adição das suas características insuficientes. Esta unidade não resultará em nenhum salto qualitativo. Voltarei a isto, adiante. 

Creio que um salto qualitativo é o que esperam aqueles sectores sociais de que tanto se fala, e que oscilam imenso, como se vê pela participação dos jovens, dos intelectuais precários, dos filhos da pequena e média burguesia, dos reformados, pouco representados pelos sindicatos, participação muito oscilante em manifestações de rua, por exemplo.

Atrevo-me a pensar que esta coisa da unidade PCP-PS é caturrice de velhos de esquerda que pouco diz a essa tal gente da nova movimentação social. Essa gente nova não acredita muito é nos próprios partidos, PCP e PS e nada lhes acrescente a esse descrédito que eles lhes apareçam de braço dado. 

Infelizmente, até o termo sagrado de esquerda lhes é muitas vezes indiferente, embora o que desejam seja essa esquerda, mas sem o saberem, como M. Jourdain não sabia que escrevia em prosa. Como me diz sabiamente a minha morena, “escreve tudo isso, mas retira as palavras que afastam primariamente os leitores que merecem ler-te”.

No entanto, insisto, longe de mim afastar qualquer aproximação entre ca esquerda e o PS, como esclareci devidamente, acho eu, na última entrada. Simplesmente, é uma aproximação táctica, não estratégica.

Tenham-se também em conta as consequências das cedências estratégicas e programáticas, na história recente, principalmente no caso italiano. Abrindo parênteses para manifestação pessoal, é coisa que me dói, porque, mesmo na minha vida de comunista e principalmente durante o processo checoslovaco, o chamado eurocomunismo (com que depois tive muito contacto na Suíça, junto de amigos espanhóis) sempre me interessou muito. A implosão do comunismo italiano, em organização e em afirmação ideológica, na magnífica herança de Gramsci, é penosa.

O PCP está longe, a meu ver, de ter produzido tão rica obra teórica (creio que Cunhal foi muito mais um grande organizador político do que um teórico) mas é portador de um exemplo de capacidade de luta que não se pode perder. Desde Melo Antunes, na noite do 25 de Novembro, até muita gente hoje, é dito frequentemente. Não é e não será facilmente governo, mas é essencial para “hold the fort”.

A situação é assimétrica, porque o PS é completamente inexistente na produção teórica do socialismo, mesmo que, naturalmente, da social-democracia. Portanto, falando só do PCP, interessa a toda a esquerda que o PCP não seja pressionado (se é que se deixa pressionar) a descaracterizar-se e a contribuir para uma italianização da esquerda portuguesa. 

Claro que, com isto, não estou a dizer a dizer que o PCP não tem graves vícios. Desculpem a este “teórico” voltar a dizer que são os vícios do marxismo-leninismo, contra as virtudes do simples marxismo (melhor, da obra de Marx). Digo que o PCP deve corrigir esses vícios para ser o partido que aspira à confiança de largas camadas do eleitorado, que não tem, apesar da sua coerência de lutador. Até digo mais: o escape ao risco de italianização, no caso do PCP, depende, a meu ver, de uma ofensiva de renovação ideológica. Senão, o tempo fará de moinho.


Com excepção de situações extraordinárias de resistência (como a plataforma PCP-PS de 1973) não conheço alianças de esquerda que não se tenham baseado num programa comum. Nesse caso português, por exemplo, até houve esse programa mínimo, o consenso do Congresso de Aveiro. Mesmo sem isso, era fácil a unidade. Acções institucionais, de rua, internacionais, etc., contra o fascismo, solidariedade com os presos políticos e luta pela sua libertação, denúncia da repressão, publicação de coisas proibidas pela censura, etc.

Também depois do 25 de Abril, e principalmente depois do 11 de Março, devia ter sido fácil: desfascistização do aparelho de estado, quebra do poder monopolista e latifundiário, descolonização realista e tanto quanto possível fraterna, independência nacional, democracia participativa, desenvolvimento comunitário, educação e consciencialização cívica, estado social (educação, saúde, segurança social), etc. Nessa altura é que se devia ter perguntado; “porque é que os partidos de esquerda não se entendem para um programa comum?”. Não era então o PS um partido marxista, como gritava Mário Soares nos comícios? Não era o PCP o partido que tinha defendido programaticamente que a “revolução democrática e nacional” exigia uma ampla base social de apoio?

Hoje, a questão está ultrapassada ou colocadas em termos radicalmente diferentes. 


Como escrevi, todas as experiências mais ou menos sucedidas de aliança de esquerda – e agora nem vou discutir o que é hoje e cá a esquerda – se situaram em quadros de ofensiva ou de defensiva mas sempre de guinadas, de “curvas apertadas” da evolução do capitalismo. Julgo que a situação actual é diferente. É a de uma crise (no sentido histórico e dialéctico), de uma mudança qualitativa e estrutural do capitalismo. 

Um século depois do anúncio do imperialismo como nova fase do capitalismo, um século depois do início da financeirização da economia, meio século depois da adaptação eficaz do capitalismo à perda das colónias, meio século depois da assimilação pelo capitalismo da nova estrutura do trabalho resultante das novas tecnologias e do fim do taylorismo, poucas dezenas de anos galopantes de internet, profundas mudanças nos padrões de comportamento e aspirações psicossociais das pessoas, subtis alterações dos sistemas de relações familiares e comunitários, etc., etc., quem pode dizer que se pode pensar o quadro político, os grandes domínios (esquerda e direita), os partidos, as suas relações, como nos habituámos a pensar em jovens?

Nota intercalar – Esta referência etária é porque desconfio de que muita desta discussão é entre marretas ainda presos a esquemas formais e a que não correspondem em nada os jovens que devemos chamar à luta de todos, que até é mais deles do que dos que se perdem em coisas antigas de uma esquerda moribunda. 

Virandomo-nos para a situação prática que vivemos, colocam-se duas perguntas essenciais: 1. o quadro da aliança é o tradicional ou mudou? 2. se mudou, que aliança é possível?

Qualquer das perguntas exigiria ainda um desdobramento: em que plano? estratégico ou táctico? o que também significa a médio-longo prazo ou a curto prazo. Vou deixar agora isto de lado, que complicaria a discussão. 

Listei acima alguns aspectos teóricos da mudança, mas interessa mais ir ao concreto, na situação que vivemos. Há uma política troikana que nos afoga, suportada por um peso enorme de forças políticas e económicas mundiais e europeias. Ninguém do “arco governamental” (os tais 80%) ainda disse não, como até a Grécia parece que vai fazer. Ainda ninguém desse sector conseguiu avançar com propostas alternativas, porque as do PS, como escreverei um dia destes, defrontam-se com a sábia pergunta do meu grilo falante (“mas onde é que eles vão buscar o dinheiro? Não concordo com a tua solução para ires buscar dinheiro, mas ao menos é uma proposta objectiva”). Considero, como já escrevi, que a posição do PS em relação ao troikismo, de que nunca se dissociou, é uma vigarice.

Pelo contrário, a esquerda, com alguma ambiguidade do BE, e apoiada por entidades inorgânicas como o Congresso Democrático das Alternativas, defende a denúncia dos memorandos, a reestruturação da dívida e, embora não aprovando explicitamente, não recusa liminarmente a saída do euro e a suspensão do serviço da dívida.

É isto que, a meu ver, mudou radicalmente a discussão de uma unidade de esquerda. Já não se trata de avançar em medidas estritamente políticas, como os direitos sociais nas frentes populares, nem de resistir à repressão das liberdades. Neste momento, é o âmago da luta contra o essencial da ofensiva capitalista, é a distinção absoluta de quem está com o capital e contra o capital. Não há meio termo.

Não há meio troikianismo (quem é que nos permitiria isto?), a que irei em próxima entrada, lembrando de que também não há estar “meio grávida”.

Simplesmente, esta demagogia da virtude do meio, austeridade mas suave, sem se explicar como, corresponde a coisa bem problemática na nossa situação política. Quem fala com o homem da rua sabe como ele protesta, mas amocha. Ouve o massacre das televisões e fica perturbado. Se até consciente da culpa deste governo, tenta alternativas e apanha com o inacreditável Seguro (mas a culpa não é de um PS que o escolheu e o vai candidatar?). Se calhar, ouve o que de pouco lhe passam de posições de esquerda, mas tem imenso medo de soluções radicais e nem pode ouvir falar da eventual saída do euro.

Veja-se o caso do Orçamento de Estado para 2014. Alguém ficou com alguma ideia de propostas do PS alternativas e sustentadas? A ministra disse que não havia margem para propostas que não fossem de resultado zero (isto é, diminuir a despesa mas com equivalente aumento da receita). Isto é fazer o jogo. O PS apresentou propostas radicalmente diferentes, anti-troika? Tudo está condicionado ao cumprimento das metas, por exemplo os 4% do défice orçamental em 2014. Não ouvi o PS dizer que não aceitamos, que nós é que definimos o défice como queremos. Até os gregos já começam a dizer que não se submetem mais, mas nós não somos gregos...

Claro que isto significa corrermos o risco de os credores se zangarem. E depois? Estamos sempre com o dito a jeito?

O PS – e até o BE – sabem desse medo das pessoas e embrulham o eleitor em conversa fiada. Contra este compromisso estrito com o pensamento económico-político dominante, dada a referida ambiguidade do BE, até nem é a posição institucional de esquerda que se contrapõe. É principalmente a opinião informal, por exemplo a de blogues. Honra lhes seja feita. 

Resumindo: como fazer a conciliação entre as esquerdas, em abstracto? Blá-blá. Mas como fazer a conciliação de posições entre uma esquerda troikiana e uma esquerda anti-troikiana? Que me respondam os fieis da fada da unidade PCP-PS. Eu tentarei dizer alguma coisa em próximas entrada.


Tenho sempre a suspeita de que toda esta discussão é muito característica de pessoas que, dentro ou fora dos dois partidos, raciocinam muito em termos do que eles são e do que porventura neles viveram. Ser ex-qualquer coisa exige tempo para se ser clarividente.

A ideia do “verdadeiro partido”, seja comunista seja socialista, é recorrente. Um partido é o que é, com a sua multiplicidade de factores definidores. Não é ninguém de fora que pode ter a arrogância de ensinar a milhares de seus militantes o que devia ser o partido. Ou então adira e lute pela sua transformação.

Muito menos sentido faz, como escrevi na entrada anterior, fazer uma espécie de clube político em encontro de duas ondas, a de descontentamento com o PCP e a de descontentamento com o PS. Parece-me que é o que se passa. Que se entendam, mas só vão a coisa amorfa, definida pela negativa. 

Como disse acima, estou convencido de que nada disto atrai os potenciais novos eleitores e activistas de esquerda, a começar pelos que respondem aos apelos de rua como os de 15 de Setembro de 2012. Eles querem lá saber do espaço desocupado entre o PC e o PS, da necessidade de um partido à medida para reeleger Rui Tavares, da medida de forças numéricas entre manifestações.

Eles poderão ser atraídos por um partido novo, mas não o medirão em contrapeso com os actuais. Por isto, como tanto tenho insistido nos meus últimos textos, esqueçamos a perspectiva geo-partidária de políticos à antiga. Esqueçamos o partido “entre” e pensemos no partido “sobre”. 

Tenhamos em conta que, infelizmente, e como mostrou a história recente de criação de partidos à pressa  em países em crise, um novo partido não vai a tempo de ser parte decisiva na solução desta crise. Para isto, temos de mobilizar outras forças e, concordo com os meus contraditores, recorrer ao máximo à unidade tradicional.

Não precipitemos, por razões oportunistas até fulanizadas, a reflexão sobre esse novo partido. Concentra-se, tradicionalmente, na luta pelo emprego, pelas condições de trabalho e pela titularidade dos serviços públicos? Ou, questão primeira, nesta época histórica: aceita ou não, e em que termos, fazer a gestão socialista do capitalismo? Como vê questões modernamente desafiadoras do pensamento de esquerda, como a economia social, o ambiente sustentável, a solidariedade comunitária, o emprego social, etc.?

Em entradas anteriores, já adiantei algumas propostas, mas admito que abusivamente, porque não é coisa de “iluminado”. Elas devem vir de todo um movimento de geração e discussão de ideias, com múltiplos contributos. Quando defendo um novo partido, é isto que pretendo. Se não, com cada um a dizer bocas, estamos à macaco a coçar a comichão. E coçar a comichão é coisa compreensível, muitas vezes exigência imperiosa do corpo, mas que nada tem de racional.

Para terminar, e porque disse acima que muita gente, aflita nesta crise, quer uma solução imediata, desejando para isto coisas irrealistas, lembro que a paciência é uma virtude revolucionária!

NOTA – Um velho amigo acha que eu, insistindo no reforço da esquerda, estou a menosprezar a importância de captar o centrão. Não julgo que seja verdade. Simplesmente, não é o meu terreno principal de luta, em que ele está muito melhor situado e tem feito esforços notáveis. Se calhar, até eram necessários dois novos partidos, um de esquerda e um de centro. Isto é que talvez tivesse consequências bem radicais, a mexer com todos os partidos.

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