quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Partido LIVRE (IV) - As obsessões

Na entrada anterior, tentei justificar um discurso crítico, bem na tradição de polémica da esquerda e das forças progressistas – na política, na filosofia, na cultura, nas artes – embora hoje desvalorizada pela nossa natural brandura cordata (Rui Tavares, RT, diria que de moleza, como vem no Manifesto para uma Esquerda Livre; nisto concordo) de todos os que, muito compreensivamente, não querem que nada facilite o jogo da direita.

Explicada a minha posição, retomo as críticas, estritamente como contributo para a discussão do novo partido de esquerda que imagino, que não tem nada a ver com este LIVRE. É óbvio que não posso – e, mais importante, não tenho o direito – opor-me aos que o querem constituir. Mas isto torna-me mais fácil defender o que seria um partido em que eu me reveria. Infelizmente, nos tempos comunicacionais de hoje, é mais fácil afirmarmo-mos pela negativa, pela crítica, do que pela propositividade positiva. Não é minha culpa, mas devo ir na onda.

Antes, quero deixar bem claro que há anos que leio RT sempre com interesse, embora muitas vezes discordando, principalmente do que me parece ser alguma superficialidade, refugiada em coisas vagas, consensos e “lugares comuns de esquerda”. Mas, por exemplo, a sua coluna de hoje no Público é vertical e com ela alinho por inteiro. Não duvido de que ele se considere um homem de esquerda. Todavia, lastimo a sua evidente falta de formação económica, tão importante hoje em dia para quem quer ser político (eu sou leigo, mas não quero ser dirigente partidário). Julgo que há no pensamento político de RT muita infantilidade inconsequente. E, admitindo que possa estar a ser injusto, parece-me haver nele uma grande dose de vaidade pessoal e de vontade de protagonismo, sempre um veneno na criação de um projecto político necessariamente colectivo.

Também me preocupa que mais uma fracassada hipótese de baralhar e voltar a dar cartas à “esquerda” resulte nas mesmas mãos (mão, no sentido de jogo de cartas), com maior descrédito junto dos eleitores. Não se pode, democraticamente, combater a criação de um partido como o LIVRE, a meu ver perigoso e inquinado de graves erros originais, mas isto deve ser considerado como um desafio à criação de um verdadeiro partido alternativo de  esquerda, não de “verdadeiro partido socialista” (muito bem, façam-no, mas digam claramente que é na área de uma social-democracia desejavelmente liberta da prisão do neoliberalismo). A minha luta é na esquerda. Afastando-me dos erros dos seus actuais partidos, propondo coisas inteiramente novas, por exemplo aqui, ou aqui, ou aqui, ou aqui, ou ainda aqui, mas acrescentando mais esquerda à esquerda, não temperando o centrão com uns pozinhos de esquerda.

Ainda antes da discussão, no concreto, das propostas e princípios do LIVRE, que fica para entrada seguinte, chamo a atenção para aspectos gerais que demonstram, a meu ver, aquilo que eu e outros já criticaram em RT: uma grande tendência para o formalismo e para o institucionalismo. Interessam-lhe mais coisas de procedimento, a que dá qualidade essencial. Refere-se sempre mais aos quadros institucionais formais, principalmente os europeus, sem compreender como eles podem ser – e são, na prática – ultrapassados pelas relações de forças. É estranho, num historiador.

Este institucionalismo manifesta-se no projecto LIVRE por duas obsessões de RT, que, por não me interessarem muito e serem matéria de principal interesse dos motivados nesse partido, não vou desenvolver: as primárias e as candidaturas de listas de cidadãos (erradamente chamadas de candidaturas independentes – só falta chamarem-lhes “candidaturas livres”). Parece um leit-motif de RT, o centro do seu pensamento político, como já vem, na sua privilegiada actuação manifestante, no Manifesto por uma Esquerda Livre e no Manifesto pela Democratização do Regime (o tal que até tem a assinatura de Veiga Simão).

Não concordando inteiramente com o seu artigo, creio que Francisco Louçã, para só falar de intervenções recentes, colocou bem a questão das primárias. Afinal, concluo de muitas reacções que, por um lado, há pessoas que, naquela atitude de quase justificação do seu pendor para um PS utópico, têm de criticar o PCP e o BE seja pelo que for, inclusive por esse direito dos seus membros de escolherem como quiserem os seus dirigentes. Eu dir-lhes-ia que na minha casa mando eu. 

Por outro lado, alguns membros do PS (que, curiosamente, já tem eleições directas) foram defraudados na expectativas que tinham nas primárias. Com todo o respeito e amizade, acho que foram ingénuos ao defenderem esse processo. Sem precisar de me alongar, as directas ou primárias são ganhas por quem domina o aparelho, a comunicação interna e externa, as perspectivas de colocação de boys. Que o diga o meu amigo Eurico de Figueiredo, que nem conseguiu acesso aos ficheiros de militantes. E porque é que RT não se interroga sobre o facto de terem sido o PSD e o CDS os primeiros partidos a abraçarem entusiasticamente essa coisa das primárias?

Quanto a primárias abertas a toda a gente, são uma aberração. Se eu quiser ter uma palavra a dizer no PS, por exemplo, quanto à escolha do seu líder, o que tenho a fazer é inscrever-me. Ter o bolo e comê-lo é que não pode ser. Parece que o LIVRE não propõe as primárias abertas. Mas, em vez disto, como se vê no seu sítio da net, tem uma proposta estranha: membros de pleno direito, eleitores e elegíveis para cargos internos; e apoiantes, também eleitores e elegívels para listas de eleições oficiais. Em ambos os casos, com direito a voto quanto aos documentos fundamentais do partido. Desculpem, mas não percebo.

Segundo leit-motiv. As listas não partidárias têm sido objecto de muito discussão, até académica. Nunca vi RT contribuir para essa discussão, a não ser em artigos meramente de opinião, panfletária e subjectiva. Mesmo em Portugal, a propósito de debates sobre a lei eleitoral, a discussão foi rica (veja-se o Diário da AR). Muito resumidamente, há largo consenso em que só são essencialmente compatíveis com a organização em círculos uninominais ou de pequena dimensão, que colocam questões importantes de transparência (que programas? nacionais ou tribais?), de dúvidas quanto ao financiamento, etc. É muito bonito agitar bandeiras na moda, mas é preciso sustentar as ideias que estão por detrás (será que há ou é só fogacho?).

Como disse, estas são questões bastante formais, de funcionamento, importantes para quem se desgostou com o funcionamento de partidos por onde andou, mas para mim secundárias. Muito mais importantes são outras duas “obsessões estruturais” de RT: o europeísmo utópico e a noção de “esquerda livre”.

Quanto à crença na fada europeia, já disse muito e não vou maçar mais os leitores. Vou pôr os meus ovos de cuco no ninho do PS. Faço notar apenas que, consultando a nossa imprensa, cada vez mais se vê o crescimento do eurocepticismo, mesmo na área do PS. Vejam sempre que puderem as intervenções de João Galamba no parlamento. Leiam Pedro Nuno Santos e, no Expresso, Pedro Adão e Silva. Até, agora, a nova série de artigos no DN de Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho. Tudo gente na área do PS, todos descrentes da luta por uma reconversão do projecto euro. E isto para já não falar da surpreendentemente óptima entrevista recente de João Cravinho, “Sem reestruturação da dívida ficamos esfolados”.

Mais importante é outra obsessão de RT, a libertação da esquerda. Fala sempre de uma “esquerda livre”. Talvez eu seja muito primário, mas não consigo entender o que isto é. Será que livre é não dar qualquer importância a compromissos eleitorais por que se foi eleito? Será que livre é não querer obedecer a qualquer disciplina partidária? 

Tenho alguma dificuldade em entrar nesta discussão porque há muitos anos que não conheço o funcionamento interno do PCP – terão ultrapassado o “centralismo democrático” leninista, que só aceito em situação de luta clandestina? – muito menos o do BE, que não conheço de todo. Quanto ao PS, vejo o que transparece da informação, a luta feroz entre candidatos a líder, a influência do carreirismo e do aparelho nessa luta, o jotismo.

Em todo o caso, acho arrogante e próprio de uma personalidade tão transparentemente analisável psicologicamente como a de RT que se insista tanto numa acusação de “complexo de Estocolmo” a tantos e tantos militantes e activistas de esquerda. Eles e elas, gente responsável, empenhada, não merecem ser assim insultados por uns peralvilhos com muito menos tempo e esforço de trabalho político do que muitos desses activistas "não livres". Mas também me ocorre agora que não deve ficar de fora quem, por eleitoralismo, foi buscar um não credenciado RT para vedeta nas eleições europeias. Pagou.

Ser mais livre é o essencial para diferenciar um nova esquerda das atuais formações de esquerda? Em quê, de substantivo, de programático em termos nacionais e sociais? Não sei, porque não sei bem o que é ser livre uma (e numa) organização particular e isso pouco interessa ao homem comum, "eles que se entendam lá no partido, é coisa deles”. Uma organização é tão livre quanto os seus membros queiram que ela seja.  Os de fora não têm nada com isso, a não ser nas suas projecções psicológicas e nas suas frustrações. No meu caso, a organização tem 100% de liberdade, porque é a organização de mim sozinho. Palpita-me que isso tem muito de coisas grupais que afligem companheiros meus, mas que não são problema meu. 

E o que são “partidos reaccionários”, de que fala RT? A acusação parece-me tão gravemente insultuosa que me dispenso de dizer mais alguma coisa, até ver mais esclarecida esta questão por RT e seguidores. E depois sou eu que sou polémico e agressivo? Fico com a impressão de que RT e outros consideram a política como uma coisa de elites, de direcções partidárias, falando só uns com outros. Entre eles, atacam-se ( mas depois sai um café, em S. Bento ou em Estrasburgo), nem que seja com coisas ridículas de quem foi ou não fundador do BE, a motivar roturas partidárias, discussão de "tias". Mas esquecem que, muitas vezes, com isto, estão a insultar milhares de pessoas generosas e honestas que não merecem estar envolvidas nestes joguinhos de galinhotes com sensibilidades delicadas.

Lamento ter de dizer, uma vez mais, que RT e alguns dos seus companheiros próximos, mais à sua imagem e semelhança, sendo indiscutivelmente bem intencionados na sua posição que julgam de esquerda, são exemplo da mais evidente arrogância de intelectuais pequeno-burgueses, com um enorme ego afagado pela comunicação social, com muita infantilidade e incultura política, com falta de informação e de reflexão em economia política. Leia-se só o espantoso primeiro parágrafo do tal Manifesto para uma Esquerda Livre: “Portugal afunda-se, a Europa divide-se e a Esquerda assiste, atónita”. Onde paira etereamente esta gente? Na esquerda deles? A minha não assiste, atónita.

NOTA – Um amigo chamou-me ontem a atenção para a injustiça de se pensar que o LIVRE é um instrumento fulanizado para a eleição de RT como eurodeputado. A prova seria que ele foi proposto como candidato independente pelo PS e não aceitou.

Não é bem verdade. Entre uma vaga alusão de Francisco Assis num artigo de jornal e um convite oficial do PS vai grande distância. Depois, RT não é estúpido e sabia que já tinha ultrapassado, em escritos, a linha vermelha que permitiria isso sem o penalizar gravemente em imagem.

No entanto, vou ter em conta este reparo e não falarei mais de qualquer influência de projectos pessoais de RT nesta criação do LIVRE.

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