sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Mais uma vez, sobre um novo partido

A questão de um novo partido não é de geografia partidária. Não se trata de qual o seu espaço no plano bidimensional dos partidos existentes, com quais se aproxima ou com quais se intersecta. Tem outras dimensões, noutro plano, e mede-se por poder dar mais esquerda à esquerda.

Muito tenho escrito sobre o que penso ser a necessidade de um novo partido de esquerda. Para não repetir citações, deixo só a última, que pode servir para irem às anteriores. Não estou sozinho nesta opinião, muito pelo contrário, mas receio que esta aparente concordância de muita gente encerre um equívoco.

Começo por um estrénuo defensor desta tese, Jorge Bateira, que ainda ontem voltou a ela, na sua coluna do ionline, “O trilema”. Não vou comentar a sua posição porque, tanto quanto a entendo e conforme muitas conversas pessoais, creio que estamos de acordo no que direi adiante. Aproveito só para chamar a atenção para a forma muito articulada como Jorge Bateira, nesse artigo, liga sem o dizer a questão do novo partido à do trilema, popularizado por Dani Rodrik, cujos vértices são a globalização (no nosso caso, a União Europeia e o euro), o estado-nação e a democracia, mas em que cada país só pode escolher dois dos vértices.

Jorge Bateira defende, como eu, “o binómio estado-nação - democracia, deixando cair a Zona Euro e protegendo-nos da globalização. É este o caminho de saída da crise que as esquerdas se têm recusado a assumir. Por isso é que continuamos sem luz ao fundo do túnel.” Creio que é aqui que entra a questão do novo partido, necessário ao sucesso desse binómio. Também a da crítica ao privilégio a outro dos binómios defendido quase religiosamente por euro-utopistas, “o binómio democracia - integração, neste caso deixando cair o estado-nação e transferindo para um nível superior os mecanismos da democracia representativa.”

Ambos os temas me fazem logo lembrar o último artigo de Rui Tavares (RT) no Público, “Por que estamos bloqueados?”. RT já tem  escrito sobre um novo partido, mas com alguma ambiguidade. Na sua grande actividade “manifestista”,  encabeçou um “Manifesto para uma esquerda livre” que advogava uma esquerda (novo partido?) que – palavras de RT – fosse livre, que não fosse nem de esquerda mole nem de esquerda inconsequente (em ambos os casos, uma esquerda não corajosa). Para quem tanto defende a unidade, não deixa de ser uma posição arrogante e até provocadora. É o que chamo a tese geográfica, o partido ao mesmo plano do PS e do PCP, num espaço ainda não demonstrado e promovendo a unidade entre eles.

Agora, volta outra vez à criação de um novo partido, polo de um outro dilema, para nos desbloquearmos e à esquerda (que esquerda, é coisa que RT nunca esclarece): “É hoje evidente que só há duas maneiras de os partidos mudarem: ou com um revolta interna dos seus militantes, que leve a uma profunda reforma democrática dos partidos, ou com criação de novos partidos que funcionem segundo regras diferentes, levando os partidos antigos a acompanhar a evolução para não ficarem para trás.” Parece ser um recuo de RT. Antes era um novo partido de esquerda, livre. Agora, novos partidos já são para mudarem os actuais, em geral, não se sabe quais, se moles, se inconsequentes, se até de direita.

Mas deixo agora RT e passo a outro assunto bem mais importante. Por comentários amigáveis que me chegam a escritos meus noutro sentido, parece-me que a visão “geográfica” de um novo partido tem impacto e merece ser discutida. Em resumo, significa o seguinte. 1. O PS  é um partido de esquerda, embora sempre tentado a condescender com a direita. 2. O PCP é um fóssil vivo que, apesar de se lhe reconhecer firmeza e coerência, nunca será poder. 3. O BE está em decadência. 4. O PCP tem como principal inimigo o PS. 5. Em conclusão, e daí em ter falado em geografia, há um espaço vazio entre PCP e PS, para promover a sua aliança. A meu ver, pouco disto faz sentido.

1. O PS só é partido de esquerda numa visão romântica e ultrapassada da história e da política. Aceito inteiramente que me digam que, na sequência do 25 de Abril, o PS devia ter sido estimulado a integrar uma grande frente antifascista e progressista, mas não obrigatoriamente identificada como esquerda, em vez de, também com a sua cumplicidade de vitimização (caso República, etc), ter sido alvo de muitas atitudes sectárias por parte do PCP, mas principalmente a nível dos fanáticos de última hora, mal enquadrados e mal controlados.

Depois, o socialismo na gaveta é esquerda? E o bloco central? E mais tarde todo o alinhamento com a social-democracia europeia pós-Blair quase tão neoliberal como a antecessora Sra. Thatcher? Podem dizer-me que um governo do PS não estaria a fazer agora as mesmas barbaridades que o actual governo, o que logo o marcaria como de esquerda. Será só um pouco menos de austeridade (e como a conseguir?) que define esquerda? É só questão de um pouco menos ou mais?

2. Que o PCP, apesar de crescer eleitoralmente num período ou noutro, não tem condições de apoio eleitoral e de confiança das pessoas para ser poder, é verdade óbvia. Por sua culpa, antiga e actual; por se manter a memória de comportamentos sectários e arrogantes de seus quadros e militantes; por continuar agarrado a estereótipos; por misturar críticas justas a que deve resposta reflectida e honesta e críticas preconceituosas e malévolas a que compreensivamente não pode responder; por nunca ter feito a autocrítica de atitudes duvidosas; por não ter reflexão teórica sobre os seus fundamentos ideológicos e mesmo sobre os grandes desenvolvimentos do pensamento marxista, continuando preso de uma cartilha marxista-leninista; o PCP ainda é, para muita gente, o partido contraditório, que serve para resistir e lutar mas que não se deseja que governe, porque se tem medo de ele não respeitar a democracia.

Reconheço sem dúvidas a contradição. As posições do PCP são consequentes, a sua capacidade de luta é reconhecida, mas não será governo pela via que respeitamos, a eleitoral. A questão de um novo partido não deve esquecer esta contradição. É errado querer ultrapassá-la pela obsessão do problema táctico, porventura oportunista, da ponte para o PS, para o que, segundo alguns, serviria um novo partido.

3. A decadência do BE pode corresponder só a uma fase transitória, conjuntural, como foi conjuntural o seu sucesso de 2009 que serve de termo de comparação e que se deveu a uma transferência de votos PS de esquerda anti-Sócrates mas que não quiseram ir para o PSD. De qualquer forma, este tipo de partido está com relativo sucesso na Europa em crise (Syriza, por exemplo) e corresponde a uma camada social crescentemente importante, a de intelectuais e trabalhadores qualificados oriundos da classe média. Com isto, diriam os teóricos tradicionais que sofre do radicalismo pequeno-burguês. Muitas vezes também com oportunismo e demagogia, como, por exemplo, na forma como tem usado o caso diplomático entre Portugal e Angola.

4. O PCP parece ter o PS como principal inimigo. Mas alguém duvida de que essa atitude é inteiramente correspondida? Antes de se defender, linearmente, que um novo partido iria ser a chave milagrosa para essa mirífica unidade de esquerda (?) não era bom estudar bem as causas, condicionantes, alianças estratégicas políticas, sociais e económicas, internas e externas, bases negociais possíveis? Seria um bom contributo teórico com impacto prático para um passo em frente.

5. Em conclusão, ao desejar a criação de um novo partido de esquerda, não defendo de forma alguma uma espécie de sua localização geográfica, na horizontal, entre o PCP e o PS, com um programa ajustado a esse posicionamento. Aliás, isto de posicionamento, coisa muito antidialéctica, daria muita discussão, que não cabe agora aqui.

A questão principal é que não faz sentido pensar-se, nesta época de crise e nos anos que se seguem, que será possível aproximar o PS, como “partido de esquerda”, da restante esquerda, consequente. Não estamos em época histórica de conquistas populares passo a passo, negociáveis entre as forças populares em ofensiva. Também não estamos em resistência antifascista (talvez não seja bem assim!). Estamos numa época de opções radicais. Voltando ao artigo de Jorge Bateira, há que escolher binómios do trilema, com toda a clareza. A posição do PS, apenas superficialmente distanciada no respeito pela política centro-europeia e da troika, é incompatível com a posição da esquerda radical. Não se pode misturar homogeneamente azeite e vinagre.

Dir-me-ão que chamar o PS à esquerda é melhor do que deixá-lo ficar preso à direita. Mas como é que um partido tem de ficar preso por uma maioria absoluta com a qual não tem de negociar nada nem consegue fazê-lo? É que o PS quer jogar simultaneamente em vários tabuleiros: na respeitabilidade perante a Europa; na confiança dos poderes sociais e económicos internos; na adesão de um eleitorado timorato que, afinal, está condicionado pelo dogma de que é preciso pagar.

Claro que não esqueço a questão eleitoral, porque a solução da crise, pelo menos a abertura a dinâmicas sociais que a equacionem de outra forma, passa pelo derrube deste governo. O PS pode recusar a sua política, fazer uma grande mudança e, no entanto, ter a perspectiva de ganhar eleições. Teria de ser o polo de atracção de eleitores moderados para uma frente de esquerda alternativa e patriótica, escolhendo que a salvação nacional se faz no movimento popular, dos trabalhadores, dos reformados, dos desempregados, dos jovens e não numa aliança de arco-íris conservador que tenta instrumentalizar muitas dessas pessoas.

O papel que vejo para um novo partido não é o de corredor entre PCP e PS, com ou sem BE. É o de portador de uma nova dinâmica de esquerda, mobilizadora, a inspirar confiança pelo seu espírito renovador. Respeitando as diferenças mas criticando lealmente, o que mostra às pessoas que não é mais um do mesmo. Ouvindo e negociando, mas sendo firme nas posições e esclarecendo as pessoas sobre o que está em jogo para a salvação do seu futuro e dos seus filhos, combatendo decididamente a manipulação ideológica e a desinformação, em vez de se envolver na pequena propaganda partidária convencional.

Não chamo a isto situar-se num determinado lugar na esquerda. Chamo dar mais esquerda à esquerda.

À MARGEM – RT termina o seu artigo com uma tirada para efeito, “é preciso ir buscar coragem à imaginação”. É coisa que cheira a 68, que o seu amigo Dany lhe deve ter contado, embora na altura fosse coisa com sentido diferente (“l’imagination au pouvoir!”). É que, lendo o tal manifesto, fiquei com a ideia de que RT entendia que “alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise” só podiam ser apresentadas por “uma esquerda corajosa”. Agora vejo que é o contrário, primeiro a imaginação, a coragem vem lá atrás. RT lá saberá. Embora sem perceber bem esta confusão toda e a literatice dessa tirada, mas entrando no jogo, prefiro a minha versão: “é preciso ir buscar imaginação à coragem”.

P. S. (2.11.2013) – São José Almeida, hoje, no Público, escreve, segundo a onda geral: “… a incapacidade de convergência que assola os três partidos da esquerda: PS, PCP e BE.” Ou eu sou muito sectário, ou muito ignorante, ou sem a capacidade de análise profunda das pessoas dessa tal onda, mas não consigo perceber o que é que hoje (porque o passado é passado) define o PS como esquerda – e o que é que define a social-democracia europeia como esquerda – do ponto de vista social; de ideologia; de aceitação dos fundamentos do ordoliberalismo, senão mesmo de um neoliberalismo envergonhado; de que compromissos internacionais; de posicionamento anticapitalista ou não; de propostas sobre economia política; de que tendências para diálogo privilegiado, cooperação e alianças entre partidos; etc., etc. Ou é de esquerda porque é de esquerda, é tudo e não se discute mais?

1 comentário:

  1. Isso mesmo.
    Agora que já começamos a entender a realidade ... só falta transformá-la.
    Um abraço.
    JB

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.