domingo, 24 de novembro de 2013

Partido LIVRE (V) – Princípios e ambiguidades

Finalmente, alguma coisa sobre o programa. Espero, depois disto, deixar descansados os leitores já compreensivamente cansados destes meus longos escritos e os entusiastas do LIVRE que, reparo pelo Facebook e listas de correio, não parecem seguir os propalados princípios do LIVRE, fechando-se ao debate tanto quanto acusam os outros. 

À parte o que ficou dito na entrada anterior, tem de se falar do programa, melhor dito, do que se adivinha como programa, porque é só uma vaga declaração de princípios, com mais uns slogans na página da internet. Dir-me-ão que uma declaração de princípios é forçosamente geral. Creio que não e que não. É claro que não peço as 11.666 palavras do Manifesto do Partido Comunista (desculpem a provocação amigável), mas, para boa precisão das formulações sem ambiguidades, por exemplo as 7876 palavras da declaração do Congresso Democrático das Alternativas. A declaração de princípios do LIVRE parece obedecer à convicção dos blogues de que ninguém é suficientemente motivado para ler mais do que uma página.

Confirma-se o que tenho escrito. No essencial, esta declaração de lançamento do LIVRE é uma posição social-democrata tradicional embrulhada em vacuidades demagógicas de esquerda retórica (oxalá se verifique depois um prática consequente a corrigir esse vício intelectuais). 

Vai atrair uma ala esquerda do PS que ainda se mantém no partido e uma ala mais conservadora de militantes e eleitores do BE que já tinham feito antes o mesmo percurso, do PS para  a esquerda. É transparente que, sendo esses os que RT disse em entrevista que são "aqueles com quem está bem", delineou à medida deles a Declaração de princípios do LIVRE. Mais uma vez a história requentada do "verdadeiro partido socialista", quando já não há "partido socialista" em parte nenhuma desta Europa. Ter um agora vai ser uma grande originalidade nossa.

Arrisco mesmo dizer que, embora desconhecendo-se ainda as propostas programáticas concretas do LIVRE e muito menos a sua prática, tem algumas posições recuadas quase ao nível de um velho republicanismo progressista. A sua invocação da Liberdade, Igualdade e Fraternidade – de que falarei já a seguir – pode ser brilharete de intelectual mas também pode significar, de facto e como tem escrito um seu colega eurodeputado, a negação de qualquer revolução posterior à francesa. Lá saberão porquê.

Não tenho nada contra um programa social-democrata. É bem-vindo, quando o PS deixou esse terreno e se converteu, com toda a internacional socialista europeia, ao neoliberalismo, numa coisa que podia chamar de social-liberalismo (não, não andei pelo MRPP…) ou que outros, bem situados na órbita do PS, elogiam como ordoliberalismo. Não queiram é esconder-se sob outra capa, de esquerda nova e coerente. Como disse, vai ser um partido que acolherá muita gente que esperava entrar num PS que não o que temos. Bem bom, se isto os fizer afirmar esse novo PS como interlocutor da esquerda.

O partido terá quatro pilares: liberdades e direitos cívicos; igualdade; aprofundamento da democracia em Portugal e construção de uma democracia europeia; ecologia. Dito assim, pouco acrescenta ao que dizem todos. Vejamos que melhor caracterização faz a declaração. 

A lista mais extensa dos princípios derivados desses pilares inclui uma referência surpreendente, neste princípio do século XXI, a liberdade, igualdade e fraternidade. Não digo que estejam ultrapassados, mas obviamente têm de ser muito bem situados no tempo, em conteúdo real e expressão prática. Não acontece com a declaração quando considera, por exemplo, a liberdade como “autonomia pessoal, realização do potencial humano e desenvolvimento colectivo”. Uma bonita fórmula genérica que de forma alguma define, como exclusivo seu, um partido de esquerda.

Ou então igualdade como incluindo a “equidade na distribuição de recursos e a equalização progressiva de possibilidades e condições de vida”. Quando vivemos hoje num mundo globalizado com crescente exclusão e desigualdades, quando a Europa adopta princípios ideológicos e políticas ultra(neo)liberais, quando a economia está dominada pela financeirização, quando os salários são esmagados pelas desvalorizações internas (em particular na zona do euro), quando, com tudo isto, cada vez mais se agrava quando se agrava a distribuição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital, aquela fórmula vaga da declaração é pouco mais do que nada.

Ou a solidariedade como materialização de um sentimento de fraternidade a determinar a correcção das injustiças sociais, uma visão de certo modo mistura de fabianismo e Exército de Salvação, que esquece as lutas dos oprimidos, a quem nunca a sociedade, no seu todo, isto é, incluindo os dominantes (que o LIVRE aparentemente não exclui desse bonito sentimento), lhes ofereceu fraternidade, por graça divina ou de um partido de iluminados.

Ou a afirmação gongórica, hoje um pouco estranha como primeiro princípio, da universalidade dos direitos humanos, coisa talvez em dúvida para RT depois de 1948 ou mesmo 1789 (NOTA – não quero dizer que os direitos humanos sejam sempre respeitados; mas então há é que lutar por eles e dizer como, não fazer só afirmações solenemente piedosas).

Do europeísmo, diz-se essencialmente o que referi na entrada anterior, quando critiquei a eurofilia utópica tantas vezes manifestada por RT nos seus escritos. Como diz, “sem democracia europeia não há solução para a crise que estamos a viver”. RT, que é certamente um homem intelectualmente honesto, sabe bem que pode haver solução, como cada vez mais gente vai dizendo cá e por toda a Europa. Está no seu direito de dizer que não concorda com essa ou essas soluções, mas não pode dizer que não existem. A sua eurofilia cega-o, coisa estranha em quem tanto apregoa a condenação do fanatismo. 

Como se quer dar nesta declaração de princípios tanta importância e prioridade como terreno de luta à Europa, num momento em que as perspectivas de insucesso de uma luta de esquerda comum estão tapadas pela total hegemonia do ultra(neo)liberalismo e dos diktats políticos e económicos do núcleo central, além do mais com rendição da social-democracia (Seguro até já nem fala de Hollande, mesmo que para propaganda)? E quando os povos europeus, virados para os seus graves problemas, não mostram qualquer perspectiva de seguirem esse apelo, como o mostram as percentagens d abstenção e o desinteresse pela informação do que se passa na União? Não vou gastar mais tempo. 

Mais importante é a posição em relação ao socialismo: “recusa da mercantilização das pessoas [JVC – deve querer dizer da força do trabalho, porque escravatura já não há. E “pessoas” inclui os capitalistas, também mercantilizados?…], do trabalho e da natureza, e no sentido de que seja conferida ao estado a garantia de aplicação dos princípios de universalidade, liberdade e igualdade de oportunidades.” (NOTA – Não parece ter algum cheiro a Polanyi, mal interpretado e aparentemente adoptado como inspirador de socialismo?).

Ora aqui está uma definição de socialismo que consegue aos costumes dizer nada sobre trabalho e capital, sobre a propriedade e o seu controlo. Quanto à fantasia da não mercantilização da natureza, quer dizer, por exemplo, que não se pode produzir, como bem com valor e preço, energia hidroeléctrica? Mais importante, evidentemente, é que se atribui ao estado socialista apenas a função de garantir a aplicação dos princípios de universalidade, liberdade e igualdade de oportunidades. Já nem se trata de uma visão social-democrata. É puro republicanismo liberal a caber em qualquer social-cristianismo ou lá o que se quiser.

Escreve-se também que “embora a ação governativa ou estatal seja crucial na criação de uma economia mista, em geral com três setores (privado, público e associativo/cooperativo), o nosso socialismo não é um estatismo.” Presumindo que não ser um estatismo quer dizer limitação do sector público, quais os critérios e objectivos de constituição desse sector limitado? Que papel relativo é dado ao sector cooperativo? Que protecção terão as PME face ao poder mono/oligopolista e financeiro? E o crédito? E a que controlo não apenas accionista estarão sujeitas as grandes empresas? Sem respostas a tudo isto, não sei avaliar que socialismo está a ser proposto.

Não tenho dúvidas de que muita gente interessada no LIVRE é genuinamente de esquerda (embora ainda estejamos por nos entendermos sobre o que é esquerda). Ouvi RT afirmar em entrevista à TSF (muita imprensa, como se costuma dizer, tem RT) que ser de esquerda é defender a justiça social e a igualdade de oportunidades, e que assim partilha o seu posicionamento de esquerda com todos os outros partidos progressistas (sic). Isto traz ao debate mais um elemento de confusão. Qual é a distinção que faz RT, entre partidos? Há algum partido português que seja progressista mas não de esquerda? Será o PS, para RT? Seria uma enorme surpresa ouvi-lo dizer isto.

Para terminar, um exercício elucidativo de análise de texto. Procurei termos significativos na declaração de princípios, juntando-lhe, para atenuar a generalidade e por ser mais propositado, o Manifesto para uma esquerda livre. Vão a seguir, entre parênteses, as ocorrências, entre as 1228 palavras do texto, de termos (ordem aleatória) com relevância para a estrutura económica, a crise, o neoliberalismo europeu, o socialismo não retórico: 
Economia (3), euro (0), crise (5), resgate (0), troika (0), memorando (0), reestruturação (0), denúncia (0), emprego (2), desemprego (0), investimento (0), pacto orçamental (0), banca (0) ou bancos (0), dívida (0), recessão (0), procura interna (0), exportações (0), capital (0), globalização (0), moeda (0),  periferia (0), desvalorização (0), salários (0), estado social (1), privatizações (0), cooperação (0), educação (1), emigração (1), juventude (0), trabalho (2), povo (0), popular (0), liberalização (0), desregulação (1), austeridade (1), ideologia (1).
Em contrapartida, veja-se o resultado da pesquisa com termos frequentes da retórica política convencional e muito suscetíveis de serem usados com imprecisão ou ambiguidade:
Esquerda (9), democracia (12), Europa ou adjectivos (16), solidariedade (4), convergência ou equivalentes (5), justiça (4), liberdade (6), livre (2), ecologia (4), igualdade (9), desenvolvimento (8), Estado (4).
Isto reproduz, no essencial, o que se passava com o Manifesto para uma esquerda livre, que, sobre a crise, se limitava a dizer um país decidido a superar a crise com uma estratégia de desenvolvimento económico e social, com uma economia que respeite as pessoas e o ambiente, numa democracia mais representativa e mais participada, com um Estado liberto dos interesses particulares que o parasitam.” 

Que coisa mais balofa! Devia ser hoje espada em brasa. Desequilíbrio estrutural da zona euro? Consequências da pressão para a competitividade por desvalorização interna? Espiral recessionista, coisa intuitiva para gente comum? Disfuncionalidade da eurolândia (falta de orçamento comum, falta de mutualização da dívida, "independência" do BCE, seu mandato exclusivo para combater a inflação, falta de um emprestado d último recurso, etc.)? Austeridade expansionista? Falta de solidariedade dos contribuintes dos países centrais? Rejeição do pacto orçamental? Etc, etc? Não há uma palavra. 

Há por aí pela política muita gente que deve ter biblioteca mas que não sabe nada de finanças. “I rest my case”.
NOTA FINAL – Já o essencial desta entrada estava escrita, fui surpreendido com a divulgação de um “Roteiro para a convergência”. RT já me tinha habituado a uma atitude sistematicamente pesporrente, mesmo hostil, em relação aos partidos com quem, ao mesmo tempo, afirma veementemente querer fazer unidade. Agora, raia o inimaginável em termos de insensatez política e de arrogância, propondo um mecanismo (mais uma vez a sua tendência para o modo mais do que as coisas) concreto que mistura partidos e pessoas a título individual, com debates e discussões públicas, o envio aos partidos de um questionário sobre as suas divergências (está mesmo a falar a sério?), um fórum consultivo permanente entre partidos, tudo mediado pelo Congresso Democrático das Alternativas, a proposta de listas conjuntas para a europeias de 2014, tudo com calendário e número de rondas já definido por RT. RT escreveu a partitura, quer reger música, os outros que a toquem, à sua batuta. O homem é bom da cabeça? ou não sabe o que são processos políticos negociais? Como vai RT obrigar os outros partidos a tomarem isto a sério, vindo de um “partido” que ainda nem sequer é?
Ao menos, pela primeira vez, ficámos a saber que RT não está sozinho. O documento é subscrito por aqueles que RT tem chamado “nós” (claro que ainda não podem ser os que, depois da reunião do S. Luís, se começam a inscrever (o site não dá informação precisa, para além de algumas fotografias). Segundo o que vi no Facebook, “nós” são 6 pessoas jovens próximas de RT desde o Manifesto para uma esquerda livre, professores ou estudantes. Que eu saiba, sem nenhuma experiência política reconhecida.

Por muita estima e mesmo amizade pessoal para com pessoas que se têm manifestado interessados neste projecto, e porque não desejo de forma alguma mais perturbações no campo tão complicado da esquerda, tenho muita pena de dar muito pouco pelo sucesso do LIVRE. Mas vou esperar, para já a ver se se legalizam e, depois, conhecer os dirigentes e o programa. Por enquanto, encerro este folhetim.

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