sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Um livro abaixo de qualquer consideração

Vou falar do livro de José Milhazes, “Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril”. É um livro ao nível dos leitores do Correio da Manhã e que não seria aceite como relatório final de uma licenciatura em história. No entanto, Milhazes é doutorado e, com isto, merece atenção.

Declaração inicial: não sou membro nem simpatizante do PCP, de que saí há mais de 30 anos; não tenho tido actividades no seu âmbito de influência; critico muitas coisas da sua concepção de partido leninista e do seu comportamento; tenho dúvidas sobre o que poderiam ser os efeitos por arrastamento destas práticas para a sociedade, se tivessem o poder; mas há limites para o anticomunismo primário, coisa que julgava em extinção.

Vítor Dias gastou algum do seu tempo valioso a criticar, no “Jardim das Cerejas”, esse livro recente de José Milhazes. Deixei lá no blogue uma crítica amigável a dizer, admito que com alguma sobranceria, que não se devia gastar cera com tão ruim defunto. Mais tarde, à medida que lia o livro e o comentava com o meu grilo falante (não confundir com o da gastronomia), insistia ela que não pode haver condescendências, que a sua geração foi manipulada por grande demagogia e desinformação e que é dever de quem viveu as coisas e ainda tem valores lutar pela verdade e pelo esclarecimento das pessoas.

Valha que Milhazes ajuda. Doutorado ou não, o seu funcionamento mental é primário, totalmente desprovido de rigor. Não usa fontes credíveis, não as submete a crítica racional, não consegue analisar factos no seu contexto nem estabelecer relações entre eles. Pode ser um bom jornalista-propagandista mas de forma alguma um historiador, muito menos de história contemporânea, perigosa por não se dispor de muito material ainda classificado. Infelizmente, haverá gente séria que goste deste livro de espionagem, por ir ao encontro dos seus preconceitos, tidos como verdade. Eu tentarei uma análise objectiva e rigorosa.

O livro é tão esquemático que facilita a crítica. O primeiro capítulo, de narizes de cera e discurso de casste (onde é que ouvi isto, tantas vezes, de outro lado?) é a exposição do quadro de fundo: 1. o PCP, depois de Cunhal e principalmente depois da fuga de Peniche, foi o mais dilecto filhote do PCUS, prestando-se a todos os trabalhos ao seu serviço no movimento comunista internacional; 2. a URSS foi apanhada de surpresa pelo 25 de Abril e não o apoiou; 3. o PCP mandou para a URSS os arquivos da PIDE; 4. o PCP foi o agente da URSS na influência junto dos movimentos africanos e na luta fria depois da independência dos novos países africanos; 5. o PCP era financiado por Moscovo.

1. As relações internacionais. É indiscutível que as relações entre o PCP e o PCUS – e outros partidos comunistas, no poder ou não – sempre foram desenvolvidas com o maior interesse pelo PCP. Que mal tem isso? Não se passava o mesmo com outras “internacionais”, mormente as relações entre o PS e a Internacional Socialista? Como é que um partido na clandestinidade, a precisar de fazer funcionar todo um aparelho de funcionários, imprensa, viagens, podia dispensar apoios? E sabem que na prática, foi muito mais importante o apoio do PCE e do PCF do que o do PCUS? E que a rádio funcionava em Bucareste, não em Moscovo? E que Cunhal se instalou em Paris, porque Moscovo era uma “gaiola dourada”?

Fiquei abismado com uma longa descrição de Milhazes (ou uma transcrição, segundo ele) de uma conversa entre Gorbachov e Cunhal (cap. 3). É de morrer de riso, mas também é devastador para a imagem que se possa ter da cabeça do nosso Rasputine de barba à boiardo. A fonte é o Arquivo da Fundação Gorbatchov (?). O discurso de ambos parece uma composição de escola primária, cheio de clichês que se podem tirar de qualquer cassete de propaganda. Admita-se que de um escriturário burocrata do KGB, mas obviamente que nunca dos dois líderes. Que Milhazes não perceba diz tudo.

Gorbatchov ensina a Cunhal o bê-à-bá da política, em termos quase estalinistas, coitado, e Cunhal, sempre humilde, vai pedindo repetidamente ao mestre explicações e orientações. Quando se conhece o orgulho de Cunhal, a autoestima em relação à sua capacidade de elaboração sobre o pensamento comunista e como ele desconfiava de Gorbatchov, só uma cabecinha à Milhazes é capaz de acreditar neste conto.

2. A surpresa do PCUS. Para Milhazes (cap. 2 e 3), o PCUS foi apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. É claro, que novidade! Até certo ponto, talvez também o próprio PCP, que tinha boa informação sobre o MFA mas que, segundo a opinião que tenho de um homem chave do MFA, nunca foi completamente informado, tendo-lhe sido pedidas principalmente informações operacionais. 

Para Milhazes, digerida essa surpresa, o PCUS não engoliu o 25 de Abril e quis travá-lo. A tese de Milhazes, do domínio do PCUS sobre o PCP, joga contra ele. O PCP foi sempre acusado de voluntarismo depois do 25 de Abril, de sectarismo, de falta de realismo. Mas como é que o PCUS, alegadamente tão dominador do PCP, não foi capaz de o disciplinar e de o submeter à lógica das esferas de influência, pós-Ialta, para já não falar da teoria da “soberania limitada” que levou à intervenção na Checoslováquia, a que um partido vassalo (?), como o PCP, teria de se sujeitar? (E note-se que até escreverei sobre o que para mim foi de inaceitável essa intervenção, causa da minha primeira rotura com o PCP).

3. Os arquivos da PIDE. É história estafada e só suportada pelo testemunho de dois dissidentes do KGB, que aliás se revelam bem por episódios pitorescos mas inverosímeis de histórias à James Bond, com amantes, jóias e champanhe. Toda a gente sabe o que valem esses testemunhos, como (verdadeira? falsa?) moeda de troca no negócio de passagem para o outro lado. Ao usar exclusivamente essas fontes, aliás sem novidade (é preciso vender livros), o historiador Milhazes fica desacreditado. Deixo só, porque julgo que é considerado por toda a gente como homem honesto, um testemunho do major Sousa e Castro, responsável pela Comissão de Extinção da Pide-DGS.

4. O PCP e os movimentos de libertação. Este capítulo do livro é revelador de ignorância crassa ou de desonestidade, é vergonhoso e ofensivo. Qualquer anti-fascista (Milhazes?) sabe como o 25 de Abril esteve imbricado com a luta de independência das colónias e, cá, com a solidariedade com essa luta. Com falha de qualquer destes componentes da luta global, não sei onde ainda hoje estaríamos. Ninguém desconhece que os grandes quadros africanos estiveram muito próximos do PCP ou até foram militantes (creio que Neto, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, não sei se o próprio Amílcar Cabral, os muitos da Casa dos Estudantes do Império e do Kimbo dos Sobas) até seguirem o seu caminho na construção dos seus movimentos libertadores. Meus camaradas, como éramos camaradas pretos e brancos. E também havendo brancos do lado de lá.

Mas afirmar, como faz Milhazes, que isto foi coisa combinada entre o PCUS e o PCP para atribuir essa tarefa a militantes do PCP, insinuando que se mantiveram nessa situação e sob o controlo do PCP, é a "miséria da história”. É ofensa a todos os que, no meu tempo e conheci muitos, saíram para a luta na mata, é certo que com a ajuda do PCP, mas para assumirem com total autonomia a luta independentista. Milhazes era nessa altura politicamente ignorante, mas devia ser hoje mais humilde. Já agora, e como se disse, foi o PCP, com o PCUS a apoiar, que fez o 27 de Maio em Angola?

5. O PCP foi financiado pela URSS, nomeadamente por meio de empresas criadas pelo partido. Claro que sim. E as malas de Macau, do PS? E as fundações alemãs por detrás do PS e do PSD? E como é que Milhazes faz larga descrição e identificação das tais empresas? Tudo opaco? E qual foi a vantagem dessas empresas no período de sufoco do nosso comércio internacional, a seguir ao 25 de Abril? Que o diga um amigo meu, grande responsável pelo comércio externo com os países socialistas a seguir ao 25 de Abril, quando a “Europa connosco” nos dizia "nim".

A baixeza. Deixo para o fim o aspecto mais desagradável e repelente deste livro. Sobre ele, discordei de Vítor Dias, quando ele escreveu que Milhazes era “um filho de pescadores que graças à ajuda do PCP e da URSS  tirou naquele país um curso superior que cá não poderia tirar”. Achei que era um argumento “ad hominem” despropositado e achincalhante, até contra a promoção de filhos do povo que ambos defendemos. Hoje, depois de ler o livro, acho que ele se pôs a jeito. 

Os últimos capítulos são sobre uma outra forma de domínio da URSS e do PCUS sobre o PCP: o acolhimento de combatentes políticos portugueses exilados, o pagamento de viagens para contactos políticos (inclusivamente a socialistas), a criação de escolas para filhos de comunistas a lutar em Portugal, na clandestinidade, a concessão de bolsas para frequência de cursos nas universidades soviéticas.

Tudo isto era domínio sobre o PCP? Esses lutadores eram “apenas” comunistas ou eram antifascistas merecedores da solidariedade do internacionalismo, por mais que esse já estivesse pervertido no jogo dos poderes?  Note-se que as bolsas universitárias não eram destinadas apenas a filhos de comunistas. Claro que a URSS tirava efeitos de propaganda, mas tenho testemunho directo de alguns desses estudantes quanto a nunca terem tido a obrigação de enquadramento político partidário.

Se toda a primeira parte do livro é de mau nível, este final é moralmente abjecto, de quem morde a mão de quem o ajudou. Não quero dizer que o reconhecimento deva ser absoluto e tolher a crítica, mas há limites de decência.

À MARGEM – Com o passar dos anos, e principalmente com a perestroika, veio a conhecer-se com certeza muitos aspectos absolutamente condenáveis da vida soviética. Muitos dos meus camaradas de 1968 se interrogaram sobre isso, ao acompanharmos o que se passava na Checoslováquia (para nós muito mais importante do que a anarqueirada de Paris). Mas era angustiante. Em plena guerra fria e guerra de propaganda, o que era a verdade?

Hoje, há quem nos acuse de não termos sabido ver nessa altura o que era, para eles "indiscutivelmente", essa verdade (como sabiam?). É certo que já havia a denúncia do estalinismo e alguns se mantinham nessa onda, mas éramos nós estalinistas, nos anos 60?

Se quiserem classificar-me assim, não me importo que me chamem hoje de anticomunista, embora isto não seja bem verdade. Vou pelo que disse acima: creio que o PCP, em 1975, cometeu graves erros, creio que a sua concepção de partido leninista de vanguarda, do centralismo democrático e do funcionalismo aparelhístico é viciadora de uma mentalidade ajustada à vida social de hoje.

No entanto, afinal, os anticomunistas bem seguros de hoje, os que sabem tudo sobre o que se passava na URSS, eram muitas vezes, nos anos 60 (e depois esquerdistas a seguir ao 25 de Abril) maoístas fanáticos, de forma alguma democratas e defensores dos direitos burgueses. Tive erros de avaliação e ponderação política, mas só aceito que me acusem os que têm autoridade para isso.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A fada da unidade

Rui Tavares, paladino da utopia de uma fada da unidade de esquerda, uma esquerda tão vaga que é um embuste, volta à carga, no Público (só para assinantes). “E as eleições legislativas de 2015, será que elas vão resolver alguma coisa? Pelo que vemos da habitual puerilidade à esquerda, o resultado será um governo de direita ou, para gáudio dos sectários, um governo do PS com a direita. As políticas serão as mesmas.

E o que seria, para RT, uma política diferente (?) seguida pela sua esquerda larga? Como é que os sectores minoritários dessa esquerda obrigariam o PS a mudar as suas posições? Ou está RT convencido de que estamos num momento de cedências mútuas, quando estamos é num momento de rotura, ou sim ou sopas quanto à rejeição da troika, à denúncia do memorando, à preparação para a eventualidade (não digo certeza) da saída do euro?

Não sou adepto, em princípio, do “quanto pior melhor”. Mas, neste momento, qualquer entendimento do PCP e do BE com a política subservientemente ambígua do PS, que, como o próprio RT reconhece, é a mesma que a da direita, é condenar a esquerda consequente a um descrédito que a reenviará de novo, por muitos anos, para o limbo político. O curto prazo pode ser o inimigo do futuro. Ou ainda, noutra analogia, uma eventual “vitória de esquerda”, agora, pode ser uma vitória de Pirro.

Estou convencido de que, infelizmente, ainda vai levar algum tempo, mais do que o deste ciclo político, e com avultados sacrifícios do nosso povo, para que haja uma mínima rotura política significativa e a perspectivação de um novo alento da democracia, de uma política nacional de soberania, e de uma mudança real ou verdadeiramente potencial nas relações económicas e de classe, no controlo social da propriedade e no papel do Estado.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

E outro 11 de Setembro


Para não me acusarem de faccioso, aqui fica também a homenagem às vítimas do ataque terrorista e ao sofrimento que naquele dia sentiu o povo americano (que eu testemunhei por via de um bom amigo, em Lisboa, normalmente muito crítico das políticas belicistas e reaccionárias dos governos republicanos).

Jamás te olvidaremos, compañero Allende

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Os puros e os espúrios (III) - o PCP

Já disse o suficiente sobre o PCP, aqui e aqui, para agora passar para a continuação da série de textos sobre as propostas de cada partido para a resolução da crise, mormente a sua posição em relação ao memorando de submissão à troika e em relação ao euro. É bem sabido que o PCP se opôs, desde início, à nossa adesão à então CEE e, depois, à entrada no euro.

Tenho dúvidas em relação à primeira questão. Não sei o que resultaria do nosso isolacionismo num momento de pujante desenvolvimento de um espaço económico europeu, quando ainda tínhamos muitos emigrantes nos países centrais europeus e era para eles que exportávamos principalmente. Quanto ao euro, confesso que, como muita gente – mesmo os então meus amigos do MDP – não vi que a eurolândia estava condenada ao fracasso, não cumprindo as condições mínimas de “zona monetária óptima”. Mas também a posição do PCP era mais política, baseada em posições relativamente lineares de anti-imperialismo, do que em análise económica.

Hoje, parece-me que a posição fortemente crítica do PCP em relação à crise e à política austeritária que domina a perspectiva neo, ultra ou ordoliberal da União Europeia e de todos os círculos hegemónicos, política e economicamente, é firme e clara. Pode-se dizer que também o é a do BE (de que falarei noutra entrada) e até a do PS, quando defende menos austeridade, embora seja diferente defender austeridade mínima para redução do défice e da dívida à keynesiana, em situação de pleno emprego, como faz o PCP, e defender uma simples suavização da austeridade à troika – como, na lógica da sua política? – como faz o PS.

Da mesma forma, julgo haver uma diferença notória entre o PCP, por um lado, e o PS e o BE, por outro, em relação à reestruturação da dívida (talvez não seja sem significado que estes falam de renegociação). Como é óbvio, todos falam de negociação para alívio das condições dos empréstimos, em termos de maturidade e taxas de juro. Mas só no caso do PCP é que vejo claramente a proposta de reestruturação da dívida em termos do seu montante, incluindo a adopção de “haircuts”.

Mais manifesta é a posição em relação à permanência ou não na zona euro. A saída do euro é tabu para o PS e mesmo para o BE, nisto continuando muito influenciado por Louçã, apesar de tanto ter sido criticado por erros técnicos clamorosos (dizem economistas seus colegas) quanto aos custos da saída, nomeadamente por via de uma consequente inflação, que Louçã exagera. Note-se que Louçã é suspeito em tal matéria. No número de Maio de 2013 do Monde Diplomatique (edição portuguesa) pode-se ler uma boa colecção de artigos sobre o euro, todos bem fundamentados economicamente. A excepção é o artigo de Louçã, de natureza vincadamente ideológica. No fundo, ainda é a afinidade com a “fada europeia” em que acreditam todos os trotsquistas europeus. Trotsquista em jovem, trotsquista até morrer? Valha a coerência, porque maoísta em jovem, conservador em velho.

O PCP não defende em definitivo a saída do euro, mas não a afasta. No seu XIX Congresso, em 2012, afirmou por intermédio de um quadro importante, Agostinho Lopes, que “um governo patriótico e de esquerda deve preparar o país para a saída da zona euro”, e advertindo que "é uma ilusão pensar que o federalismo é solução” mas também, por outro lado, que também é ilusão “a ideia de que tudo se resolve com uma saída pura e simples do euro, qualquer que seja a forma como se sai e as condições de saída”. 

Mais tarde, a segunda afirmação foi menorizada e a posição ficou mais clara com sucessivas declarações, inclusive de Jerónimo de Sousa, defendendo estudos rápidos sobre as consequências de uma saída do euro, não considerada como tabu.

Entretanto, na evolução das sondagens, a queda do PSD não é acompanhada de subida significativa do PS nem do BE, mas sim do PCP. Então, com uma posição clara sobre a crise e os malefícios do euro para Portugal, com uma atitude combativa contra a política antipatriótica do governo e com presença significativa na rua, com outras forças, com crescimento da sua posição nas sondagens, porque é que a opinião geral é de que o PCP não conseguirá (até dizem que nunca) ir para o governo?

É aqui que me parece que isto se entronca com os meus “posts” anteriores sobre o PCP, porque a política não é só o agora. Há muito passado, há muitos erros, também muitos preconceitos, que ainda são entraves a um seu papel determinante na alternativa de governo.

Por isto, continuarei esta entrada noutro registo, em que já escrevi, o da minha experiência no PCP. Até breve.

P. S. (10.9.2013) – Muita gente, talvez a maioria da gente, de vários quadrantes, reconhece hoje os “malefícios do euro” e os prejuízos causados à economia portuguesa e bem estar económico do povo e pequenas empresas por uma adesão com excessiva valorização, anti-competitiva, do euro em relação ao escudo e, depois, pela perda de instrumentos essenciais de soberania económica, ligados à moeda própria.

Porque é que também não reconhecem razão, a posteriori (já não é mau) a todos os que exigiram um referendo ao tratado de Maastricht? Porque não se escandalizam, mesmo a posteriori (já não é mau) com aquela obscena e popularucha conversa, exemplar de bloco central, na aprovação do tratado de Lisboa, entre Barroso e Sócrates, “porreiro, pá”?

domingo, 8 de setembro de 2013

A porta giratória da televisão e da rádio

Quase que só ouço rádio no horário rotineiro das minhas deslocações, com o rádio do carro ligado. Assim, ouvi hoje, creio que pela primeira vez, um programa chamado “O governo sombra”, da TSF. São participantes Ricardo Araújo Pereira, o gato fedorento, pessoa com frequentes manifestações de opinião à esquerda; Pedro Mexia, ex-director da Cinemateca, ensaísta e poeta, colaborador de Pedro Lomba na blogosfera e que, por isto, julgo ser um conservador educado e civilizado; e João Miguel Tavares, que leio no Público por masoquismo, exemplo de uma nova direita arrogante, bruta e acéfala.

O que fazem tão díspares pessoas no mesmo programa? O programa é indiscutivelmente de natureza política. Simplesmente, não discutem política a sério. Fazem humor com pouca graça (nem mesmo RAP consegue sobressair e JMT é obviamente demasiado obtuso para algum refinamento de humor). Mas fazem esse “humor” misturando-o com crítica política, claro que de dichote e sem qualquer profundidade. Assim, o programa é um embuste. Nem é de verdadeira discussão política nem é de humor que permita ao ouvinte ficar a pensar que “eles estão só a gozar”. O que fazem ao ouvinte é transmitirem-lhe a sua opinião política, como quem não quer a coisa e como se não fosse para se levar a sério.

Se assim é, pode-se perguntar porque é que a opinião política de RAP, de PM ou de JMT é mais relevante do que a de qualquer outra pessoa, muitas vezes com opiniões muito mais elaboradas e fundamentadas. Ou de pessoas cuja filiação ideológica ou simpatia filosófica ou política seja transparente. Ou que tenham a respeitabilidade de obra académica consagrada. É o que vejo noutros países. Aqui não. O que vale cá é a notoriedade mediática, mesmo que de Beppes Grillo, afinal num circuito à “carrossel napolitano” em que todos são amigos: políticos, jornalistas, opinadores, intelectuais de serviço e bobos de toda a espécie.

Para não deixar sozinho esse programa, e não conhecendo muitos dos seus semelhantes, refiro outro que me parece exactamente igual, o “Eixo do Mal”. Exceptuo a “Quadratura do Círculo”. Tudo neste programa é transparente (fora, claro, as agendas políticas pessoais) e os seus participantes são pessoas indiscutivelmente credenciadas para a discussão política. Até demais, porque não acho que seja normal, em termos de vida das instituições democráticas, que o presidente da maior autarquia do país participe regularmente em programas televisivos (já agora, recebe cachet?).

O que fazem nesses programas pessoas de esquerda como Daniel Oliveira e Ricardo Araújo Pereira, num contexto de futilidade e de graçola gratuita em que raramente conseguem lançar, muito menos desenvolver, uma ideia que justifique a sua presença? Será que, face à preocupação das estações de aparecer com respeito por algum pluralismo, eles fazem bem aceitando estar presentes e influenciar a discussão? Duvido.

Ainda hoje, não ouvi de RAP, em confronto com os seus parceiros, nem uma afirmação que marcasse diferença, nem sequer que nos fizesse lembrar o cronista da Visão. Ou Daniel Oliveira, a conversar sobre futilidades com uma senhora espertinha e com um engraçado sem ideias? Estão a mostrar que são democratas, que podem dialogar – será que discutir política? – com gente de direita? Ou então, no seu pleno direito e no seu exercício profissional, estão num programa de mero entretenimento? Muito bem, mas não usem isso para afirmação pessoal com fins políticos.

Passando para o comentário político televisivo, propriamente dito, e comparando com o que conheço de outros sítios, até aqui ao lado, creio que temos uma situação aberrante. São raros os opinadores ou comentadores não envolvidos directa ou indirectamente, ontem, hoje ou amanhã, na vida política. As televisões são o prolongamento das câmaras adequadas de debate político, mas sem as regras democráticas que essas têm. 

Digam-me de um país em que fale com programa próprio na televisão um ex-primeiro ministro, um ex-ministro do núcleo central de outro governo, um ex-líder de um partido. Ou em que o mais popular, mais manipulador, mais intriguista protagonista televisivo é um homem sempre metido na política, com ambições pessoais de cuja fama não se livra.

É claro que, em muitas televisões estrangeiras, há entrevistas a políticos e a sua participação em programas muito tipicamente americanos que cá não temos, como o Daily Show de Jon Stewart. Mas são fortemente apertados, não lhes fazem os fretes que aqui fazem os apresentadores dos programas em que esses senhores afinal dizem o que querem.

Mas, ó portugueses, afinal como é que aceitam que vos façam a cama e vos ponham a canga?

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ao correr da pena

1. A palavra e a política

Há alguns dias, Manuel Alegre escreveu no Público um artigo intitulado “Palavras imensas. Defende que “a matriz das esquerdas é comum: reside na recusa daquilo a que Octavio Paz chamou ‘a injustiça inerente ao capitalismo.’ Essa é a sua essência”. Mas reconhece logo a seguir que “a divisão entre revolucionários e reformistas vem quase desde o início” e que se agravou quando, “com a guerra fria, os partidos da Internacional Socialista funcionaram como terceira via, por um lado contraponto em relação ao bloco comunista, por outro gestão moderadora do capitalismo, através do Estado providência e dos direitos sociais que significaram um considerável avanço civilizacional.” Conclui, e não discordo, que “os partidos socialistas ou se deixaram colonizar pelo neoliberalismo triunfante ou seguiram a moda pseudo-modernizadora do blairismo. (…) A queda do muro de Berlim não se traduziu na vitória da social democracia, mas no triunfo do capitalismo financeiro à escala global”. E confessa-se: “Sou, porventura, um socialista fora de moda. Mas não quero o socialismo fora da História e da própria linguagem. E muito menos da vida. Como escreveu Mário Cesariny: ‘Há palavras imensas, que esperam por nós.’ Mas não as palavras ideologicamente assépticas.

Desde o título, há neste artigo algum arrebatamento poético, que não é de estranhar. Mas até que ponto têm as palavras, por si, um valor transformador e revolucionário? Em contraponto, não há uma análise objectiva e teoricamente fundamentada das consequências para a acção prática actual da divisão que se processou ao longo de décadas, reduzindo a bandeira de palavras simbólicas a tal matriz comum. O seu artigo acaba por ser um simples enunciado de factos bem conhecidos, sem devida explicação. O que reconheço em Alegre é que assume a quota parte de responsabilidade histórica do seu lado partidário. 

Dias depois, responde-lhe Domingos Lopes, “Perseguir a imensa esperança”. “Há, na verdade, palavras imensas. Fico-me pela palavra socialismo. Palavra que aproxima as esquerdas. Socialismo, sonho, como outrora o de Cristo, antes de a Igreja se inclinar perante o poder dos Césares. (…) há palavras imensas que esperam por nós. Eu acrescentaria pelas quais nós esperamos em perseguição pelo ideal contido na palavra. Há palavras imensas que aproximam os homens e as que os afastam e os tornam inimigos uns dos outros.

Manuel Alegre analisa as várias rupturas nas esquerdas e até dentro delas, pois enquanto houver homens haverá sempre lugar a diferentes interpretações. Porém, ao acabar de ler e acalentado pela ‘fé’ na palavra que poeta não deixa morrer - socialismo - e tendo em conta a tese do autor de que vivemos num tempo em que os partidos tradicionais podem deixar de contar ou até desaparecer, dei comigo a pensar no futuro do PS com Seguro ao leme. Porquê? Porque se impõe perguntar qual o futuro do PS... E ainda porquê... porque o PS deixou cair os valores da esquerda que proclama ter... (…) O PS é um partido-chave para uma mudança (salvo se se entender que a mudança será sem eleições, do género revolucionário). Continuando, porém, a ser um actor que em muito pouco se distingue dos partidos do Governo, prosseguindo o caminho de incorporação na vaga ultraliberal que assola o mundo, liquidará o sonho social-democrata de muitos aderentes daquele partido.

(…) A democracia precisa de um PS que não se vergue à onda conservadora que varre o mundo. O mundo precisa de mudar. E Portugal também. Há palavras imensas que temos de perseguir: liberdade, igualdade, justiça, socialismo. Há palavras terríveis que todos os dias açoitam os portugueses: empobrecimento, austeridade. Precisamos da imensidão da palavra esperança, desejavelmente com o PS. Se não, com quem tiver esperança. E futuro.

Julgo que Domingos Lopes tem uma formação e solidez ideológica superior à de Manuel Alegre, que é fundamentalmente um tribuno. A sua formação política emerge na aceitação de outra hipótese, comon se viu acima: “salvo se se entender que a mudança será sem eleições, do género revolucionário”. Mesmo assim, procurando corresponder, com espírito “unitário”, ao idealismo de Alegre, fica enredado na contradição principal da nossa “esquerda”: precisamos de um PS diferente mas o PS não quer ser diferente. E outros, que tenham esperança e futuro, de que fala Domingos Lopes, fica-se pelo vago. Contra isto, não há palavras imensas.

2. O BE e Angola

Dou de barato que o MPLA deixou de ser há muito o partido que, na minha juventude, era o exemplo da coerência na luta pela independência. Dou de barato que, principalmente a partir da guerra civil, ambos os lados usaram importantes recursos naturais para se armarem, o MPLA vendendo petróleo, a Unita diamantes. Dou de barato que, com isto, os generais fizeram fortunas que foram acalentadas por José Eduardo dos Santos, para lhes ganhar o apoio. Dou de barato que não é com um simples curso em Inglaterra e sem meios anteriores que Isabel dos Santos se transforma na mulher mais rica de África. Dou de barato que há farta corrupção em Angola, a par com o cumprimento dos slogans anunciados de que “os angolanos têm o direito a ser ricos” e “é necessária a acumulação primária do capital”. Dou de barato que Angola tem uma enorme assimetria económica e social.

Também é inegável que há capitais angolanos a entrar em Portugal (e portugueses em Angola), com destaque simbólico (mas não económico e financeiro) para a comunicação social. E que há uma ostentação de novo-riquismo de angolanas nas lojas de luxo da Av. da Liberdade.

Mas o que faz, disto tudo, proclamar-se repetidamente, como faz o BE, que Angola está a comprar Portugal? Está a dominar economicamente mais do que os ricos da eurolândia? Oprimem o povo português mais do que a troika? E que vantagem há em agitar este papão (xenófobo?) numa altura em que estão a emigrar para Angola centenas ou milhares de portugueses? Quando se chega à economia moral, não há diferença entre fanáticos, sejam eles Louçã ou Merkel, em extremos opostos. 

3. As lutas inglórias do BE

Esta nota vai quase sem palavras. Nos tempos que vamos vivendo, o piropo teve honras de tema nacional no recente debate do BE, “Socialismo 2013”. Se o ridículo matasse...

4. O que Krugman disse

Já foi há bastante tempo que foi muito badalada a afirmação de Paul Krugman no sentido de que os salários (melhor, os custos unitários de trabalho) em Portugal e na Alemanha tinham entre si um desajustamento de 20%. As brilhantes mentes da casa nem foram ler o texto de Krugman, “German Wages and Portuguese Competitiveness (A Bit Wonkish)”(com explicação em português no Jornal de Negócios), mas deveriam ter logo pensado que se duas bengalas diferem em 20 cm tanto pode ser porque uma é 20 cm mais comprida ou a outra 20 cm mais curta (não estou a brincar, pensem bem).

Agora, tantos meses depois, é o inefável José Manuel Fernandes, saído do Público por uma porta e entrado por outra, que, cumprindo aquela norma prática de que arrogante de cabeça rígida fica sempre assim, primeiro como esquerdista depois como “neocon”, vem dizer o mesmo: “vejam lá, não era só António Borges que dizia, também o keynesiano Krugman diz que os salários portugueses têm de descer”. Não é verdade. Vão ao tal “post” e lerão que o que Krugman defende é que os salários alemães devem subir. Agora conseguir isto é outra história…

(A propósito: quais são os critérios do Público para a escolha dos seus colunistas? Se não me falha a memória, dois socialistas, Correia de Campos e Francisco Assis; um jornalista independente de esquerda, José Vítor Malheiros; um PSD, Paulo Rangel; um liberal conservador, João Carlos Espada; um eurodeputado alinhado com os verdes europeus, Rui Tavares; um jornalista de direita retinta, João Miguel Tavares, que só tem rival no seu colega do Expresso, Henrique Raposo – e cada vez mais Henrique Monteiro; finalmente, a figura inconcebível de ultramontanismo de cabeção, Gonçalo Portocarrera de Almada, que, curiosamente e contra o seu retrato, nunca se apresenta como padre católico e do Opus Dei.) 

sábado, 31 de agosto de 2013

Lixo na net

Já muitas vezes aqui escrevi que tenho uma relação de amor-ódio com a net. Muito manifesta quando o poder de imposição do botão “send” obscurece toda a capacidade de análise. Uma pessoa que me dizem ser saudavelmente contestatário, eventualmente de esquerda, não deve fazer mais nada e envia-me diariamente dezenas de mensagens, muitas a meu ver agudas e sensatas, outras inconcebíveis de má qualidade, por vezes difamação e baixeza. Em regra, com forte dose de populismo, coisa que hoje substitui a luta política de nível e que passa à frente do mínimo de sentido crítico e de rigor intelectual.

Há dias, recebi dele uma mensagem com base no estafado documento de Cavaco a pedir à Pide acesso à consulta de documentos Nato reservados. Simplesmente, a mensagem transformava isto em prova de Cavaco ter sido colaborador (informador?) da Pide: “Após uma investigação aos arquivos da ex-PIDE depositados na Torre do Tombo em Lisboa, eis a cópia do original do Formulário Pessoal Pormenorizado do senhor Cavaco Silva, no qual, em 1967, o mesmo declarou a sua intenção em integrar a ex-PIDE da ditadura salazarista.” Qualquer meu leitor sabe que não tenho qualquer simpatia política por Cavaco. Nem sequer pessoal, quando todos os dias nos cruzávamos no Instituto Gulbenkian. Mas isto que recebi é abjecto e desqualifica moralmente quem difunde coisas destas.

É preciso deixar claro que um excremento destes não é de gente de esquerda. Propus a este meu correspondente traçar o caminho da mensagem em sentido oposto, com desmontagem da calúnia, até o autor ver que nem sempre a podridão compensa. Não o fez, o que me permite escrever aqui isto.

Ainda uma nota. Nessa mensagem, diz-se que “em 1964 o Silva ainda não era um PIDE seria só em 1967”. A referência a 1964 tem a ver com a legenda, feita pelo autor anónimo (mas por que responsabilizo legitimamente o meu correspondente) de uma fotografia de Cavaco como alferes em Moçambique, dizendo “rapaz de armas do exército português". Note-se que o termo "rapaz", neste contexto pejorativo, é retintamente colonialista (fascismo, colonialismo, populismo neofascismo, andam hoje de braço dado). Eu fui firme opositor da guerra colonial mas não insulto assim as centenas de milhar de jovens a quem o fascismo prejudicou tanto, enviando-os para a guerra. E quem escreveu este nojo de texto se calhar até, com a mentalidade fascistoide que ele revela, é que é apologista tardio da guerra colonial.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Será que ainda hoje sou um comunista com problemas? (II)

RESUMO: de como o autor, num texto forçosamente longo, descreve o que foi ser comunista nos anos 60, prepara a transição para a explicação da sua primeira rotura partidária, com a revolução de Praga e, mais tarde, o regresso à actividade partidária após o 25 de Abril. Também o que parece serem motivos compreensíveis para que as discordâncias com o PCP não derivem para uma atitude anticomunista.

* * * * *

Queremos dar lógíca a artigos, mormente quando encadeados, mas eles emaranham-se com outros e só rendeira de bilros consegue fazer sair dali alguma coisa que se veja. Já há tempos que comecei a escrever sobre a esquerda e as suas propostas para a crise, logo a possibilidade ou não de uma mítica unidade que parece ser desejada por tanta boa alma da esquerda pura donzela.

Falar do PS não foi difícil, porque, a meu ver, não pode determinar um governo de esquerda em rotura com a servidão a que a crise nos sujeitou. Então, que será esse governo de esquerda, propriamente dita? Difícil é ir só mais para a esquerda, falar do PCP e do BE. As posições económicas destes partidos não são radicalmente incompatíveis, a diferença é política. E também a sua viabilidade de governação não depende só das suas propostas de economia política, estando muito ligada à percepção estritamente política que o eleitorado deles tem. 

Muita desta percepção, mesmo por parte de quem não viveu velhos tempos e principalmente em relação ao PCP, vem de preconceitos. Outras vezes, de factos reais mas interpretados fora do contexto de uma cultura partidária (mal) peculiar. Muitas vezes, também, de erros com grave repercussão na imagem pública do partido. Também, frequentemente, de um grande defensismo sobranceiro que desculpabilizava o partido em relação à necessidade de esclarecer as pessoas, mesmo bem intencionadas, em relação a coisas que se remetiam para o lixo do “anticomunismo primário”. Era verdade, mas quem não limpa a nódoa de excremento que lhe atiram aparece aos outros como sujo.

Creio que vale a pena discutir hoje o que deve ser um partido comunista nesta volta para o século XXI. Não julgo que seja matéria exclusiva dos seus militantes, principalmente quando quem entra nesse debate fraterno, embora como independente, é muito crítico do partido mas não lhe é hostil.

No plano político, não posso falar do PCP sem alguma reflexão pessoal. Assim, interrompi a cadeia de posts “Os puros e os espúrios” para o último “Será que ainda hoje sou um comunista com problemas?”, que hoje continua, até retomar aquela. 

Começo por dizer que ainda hoje, mais de trinta anos depois de ter deixado de ser militante do PCP, tenho dificuldade em falar dele com objectividade. Para o bem e para o mal, a minha vida política, com tudo o que ela me significa de missão, cumprimento de um trajecto de vida, são indissociáveis do que foi o meu único partido e de que saí com discrição, sem alaridos mediáticos a servirem os adversários. Como há tempos me dizia o meu amigo MC, grande escritor, fica-se com a relação e a memória terna que temos da primeira namorada, mesmo que depois, com o tempo, venhamos a ver que ela era feia e bastante estuporada. Mas gostámos dela! Assim, nunca depois fui anticomunista, sem prejuízo de frontal e declarada discórdia com muita coisa do PCP. Senão, se não discordasse, não teria saído.

Isto está a sair muito personalizado, admito, mas é difícil ser de outra forma. Justifica-se então um escrito que não é análise, que é mais testemunho ou catarse? Creio que sim, porque muito do que tenho lido de ex-comunistas, sendo isso de apenas literatura de confissão pessoal, não tem a honestidade crítica que julgo que me vou esforçar a ter neste texto. Todavia, e como a mais importante das limitações deste escrito, admito que se duvide da sua validade, quando quem o faz desconhece por completo, em vivência, o que foi a actividade do PCP como partido de operários e de trabalhadores agrícolas, mesmo quando nele militou, como estudante universitário.

E seria possível fazer análise rigorosa? Coisas à Pacheco Pereira e outros, por muito documentadas que sejam, são vistas de fora, por quem não consegue minimamente sentir o enorme componente afectivo do que foi a militância comunista. Mas, sendo assim, um testemunho, uma impressão, em nome de quem posso falar? Em tempo, lugar e modo, do que sei: década de 60, Lisboa e particularmente a universidade, perspectiva e condicionalismos de um jovem da pequena-média burguesia de serviços educado na província (ilhas). 

Mesmo assim, isto remete para coisa mais difusa do que a política partidária, mais especificamente o movimento associativo estudantil e a intervenção cultural, por exemplo a cineclubística. Do partido (dizer partido ou PCP era indiferente) só em âmbito muito mais limitado, quase nebuloso. Entre 1962, em que a crise académica me acordou, e 1964, em que comecei a ter responsabilidades associativas e depois militância no PCP, creio que não li mais do que meia dúzia de Avantes e certamente que não o Rumo à Vitória. Quanto a conhecimento de outros comunistas e das suas memórias posteriores, só a meia dúzia que conheci na minha organização clandestina e, depois do 25 de Abril, os bastantes mais de quem suspeitava e que vi, como eu, aparecerem à claridade.

Desvio para assunto colateral mas importante, a guerra colonial. Só havia uma escolha para comunistas, discutida com o partido: desertar ou ir para a guerra mas com a intenção de fazer o máximo de trabalho político junto de soldados ou, como meu caso, marinheiros fuzileiros. Também, claro, junto dos oficiais do quadro. Continuo a achar que foi um factor importantíssimo na génese do MFA. A quadrícula “antiterrorista” implicava a estadia longa em quase isolamento de um capitão ou primeiro-tenente comandante de companhia, normalmente já em segunda comissão, em convívio estreito com três alferes milicianos mais um médico, muitos com traquejo associativo estudantil e alguma formação política. Mas não vou falar disto em termos de militância no PCP. A minha experiência, creio que generalizável, é de que esta acção era individual, sem possibilidade de contacto com o partido.

Como nos tornávamos comunistas?

Os percursos eram certamente muito diferentes. Peço novamente desculpas mas vou personalizar. Adolescíamos aos 13 e pré-adultávamos aos 17, a ir para a universidade. Neste período revoltávamo-nos, deixávamos de ir à igreja, líamos o Drama de Jean Barrois, depois Sartre, ouvíamos Juliette Greco, no meu liceu fazíamos um clube Antero de Quental (“pour cause”), provocávamos Ilídio Sardoeira – que pedagogo! – a fazer de nós gente, alinhávamos nas iniciativas de outro jovem um bocado mais velho, amigo inesquecível, Ernesto Melo Antunes. 

E tudo mudou com a crise académica de 1962. Também antes, para quem ouvia alguma coisa em casa, mesmo que muito limitada e numa perspectiva de oposição democrática tradicional, a campanha de Delgado, o Santa Maria e a Índia (“mas não contas isto fora de casa”). Com sorte de não ouvir, o que era frequente nessa época, opiniões paternas reaccionárias e salazaristas, as opiniões em família podiam parecer-nos recuadas mas eram valorizadas. A política também é afecto. Ou, se calhar, é principalmente afecto, mais ética e missão na vida, respondendo-se perante quem quer que seja, um deus, a nossa consciência que até se vai connosco, os outros, ou mesmo a nossa memória vaidosa.

Porque aderíamos ao PCP? Antes da resposta, é preciso ter em conta que só falo, com razão, do PCP. Os esquerdistas, começando com a FAP de Francisco Martins Rodrigues, são nessa altura um pequeno grupo e acabam por ser relativamente ultrapassados, já no passar para os 70s, pelo MRPP, num processo que nunca percebi bem (e há quem perceba bem a origem e trajecto do MRPP?). O PS, então Acção Socialista Portuguesa, era apenas um grupo de amigos, de estudantes – valha-lhes que prestigiados academicamente – na órbita, até familiar, de Mário Soares e limitados quase que só a Medicina, com um pouco em Letras e Direito. Não tinham programa, nem ideias que se vissem, eram apenas anticomunistas muito sectários.

Volto à pergunta. Aderíamos principalmente porque queríamos lutar, e o orgulho de querermos lutar, contra todos os riscos, ninguém nos tira até à morte. E aderíamos por três factores, com peso relativo conforme cada caso. Primeiro, a revolta contra a injustiça social. Creio que pesava nisto a educação católica prévia, se influenciada por alguma perspectiva de acção social cristã, como eu tive. Em segundo lugar, o sentido da eficácia (talvez com algum radicalismo juvenil), vendo a gratuidade e acomodamento burguês da oposição tradicional, do reviralho, bem como do que se vislumbrava já dos grupos juvenis socialistas. Em terceiro lugar, talvez com menor peso, a elaboração ideológica. Isto merece um pouco mais de reflexão.

Ainda há dias me dizia alguém que a nossa geração universitária era politicamente inculta, que se ficava pela Marta Harnecker, activista chilena e discípula de Althusser. Talvez não seja bem assim e desconfio de que quem agora me diz isto nem a Marta leu nessa altura (até nem ela escrevia então). 

Muitos dos meus camaradas também começavam por ler Georges Politzer (“Princípios Elementares da Filosofia”) ou o “Processo Histórico”, de Zamora. É verdade que livros com algum esquematismo, mas que não enjeito como introdução ao pensamento marxiano. De Marx, ao menos o Manifesto era bem lido. Em todo o caso, talvez mais do que leram, dos clássicos, muitos dos detractores da formação ideológica da minha geração de comunistas. Quantos só leram o livrinho vermelho de Mao?

É necessário contextualizar. Primeiro, era bem difícil obter os livros. Dos jovens estudantes, só alguns tinham amigos respeitáveis que os apresentassem na Barata ou ao Brito, ou que, como a mim, lhes trouxessem livros de Paris. Depois, para quem tinha como bases de leitura e instrumento de reflexão os livros de filosofia do liceu, mesmo os textos mais básicos de Marx não eram pera doce. Bem me lembro de quantas vezes precisei de reler e reler cada página do Capital, em tempos em que nem sequer havia a wikipedia para nos explicar cada termo de economia política. 

Mesmo assim, não éramos poucos os que lá iam fazendo e lendo a sua pequena biblioteca básica dos clássicos, como se pode ver ainda hoje cá em casa, em lugar de carinho de memórias (as bem conhecidas “Oeuvres Choisies” das “Éditions du Progrès”, de Marx-Engels e de Lenine, mais uns avulsos (como o indispensável, tanto relido, "A Sagrada Família"), assim como uma edição em português do Capital (Delfos, de 1973, ainda antes do 25 de Abril!) e que está toda sublinhada e anotada. Não o digo para me gabar, mas para que se veja que muita gente da minha geração político-partidária não era assim tão acarneirada e primária. E quanto ao Manifesto, não seria só uma minoria de militantes intelectuais a lê-lo. Pergunto-me se tinham este nível de formação a maioria dos anarco-diletantes ontem e hoje muito mais anticomunistas ou os maoístas hoje recauchutados à direita ou pelo menos a hábitos de boa burguesia.

Abro parênteses para mais alguma coisa sobre a literatura marxista-leninista (termo de que não gosto, por achar que a junção de Lenine diminui Marx e até o desvirtua; além de que, pessoalmente, sou hoje marxiano e nada leniniano). Também cá tenho Engels, mas não o aprecio. O Anti-Duhring é indigesto e a Dialéctica da Natureza um disparate. Ao elaborar a sua noção de materialismo dialéctico, ou de materialismo histórico, Marx nunca caiu nesse erro de o “objectivizar”, no mundo físico. A dialéctica é inerente e limita-se ao pensamento humano e à sua decorrente acção social e histórica. Também cá tenho três volumes de Lenine, todos lidos na juventude mas hoje a amarelecer. Considero Lenine um grande teórico da acção prática política, mas completamente datado. Quanto ao Materialismo e Empiriocriticismo, mais uma pecha dos revolucionários que têm de mostrar que também são filósofos. Que seca! 

Atraía-nos a coerência do PCP, a sua aura de resistência, a coragem dos seus quadros face à tortura – mas também nos angustiava não sabermos nós se também resistiríamos, mau grado os ensinamentos do “Se fores preso, camarada”. Víamos determinação, boa elaboração mental e viabilidade prática (hoje tenho dúvidas) no programa do VI Congresso (1965), na proposta de Revolução Democrática e Nacional, explicados no Rumo à Vitória. Líamos uma análise sólida do papel dos monopólios e da propriedade latifundiária na exploração do nosso país e na ligação com um estado de essência fascista (não me venham com a forma) que sustentava essa economia. Sabíamos dependerem fortemente do PCP as acções políticas eficazes, que nos mobilizavam, como as CDEs ou o Congresso de Aveiro.

No plano externo, víamos que era o único partido com posição firme de condenação do colonialismo e de apoio aos movimentos de libertação. Era o partido que apoiava “aventuras” (no bom sentido) simbólicas da nossa juventude, como a revolução cubana (na sua genuinidade) e a resistência vietnamita. 

Tudo isto com muitos erros? Certamente, mas nada de comparável com outros que tinham também erros e nada destas coisas positivas. Muito menos com a “pureza” dos que criticavam e não se comprometiam. Porque comprometer-se podia ser perigoso, acreditem.

Estávamos cegos?

Encontro hoje amigos e conhecidos próximos desses tempos que cultivam uma atitude anticomunista evidente. A sua pergunta habitual, como que a dizer que eles viam, é “mas vocês não viam?”. O que é que não víamos que eles então viam? Em muitos casos, esta sua atitude actual e essa sobranceria não é honesta, mormente por parte de muitos que, sendo hoje assim, cometeram na época muito mais flagrantes erros, como se babarem a ler o livrinho vermelho, ou a criticarem o partido em consequência de terem recusado por razões menos dignas a proposta de nele lutarem.

É verdade que havia muito a criticar, embora as possibilidades de informação e de construção de opinião isenta não fossem fáceis. Começa por se estar em plena guerra fria, com guerra de propaganda e de desinformação feroz. Depois, algumas coisas passadas, como as sublevações de Berlim e de Budapeste, apanharam-me com 9 e 12 anos e passaram de raspão pela casa dos meus pais, até pessoas interessadas pelo mundo. Mais importante, a denúncia do estalinismo já tinha sido feita pelo próprio PCUS no início da década de que estamos a falar e não havia nenhuma razão para pensarmos que o PCP não estava a alinhar com a linha khruschoviana de correcção dos crimes do estalinismo. Por exemplo, na década de 60, não havia qualquer culto de personalidade de Cunhal (nessa altura nem conhecia um retrato seu), que só aflora depois do 25 de Abril como hábito sabujo de arrivistas de última hora que o PCP, na época do "assim se vê a força do PC", não soube analisar e controlar.

Se havia razão para desconfiarmos, no quadro do consequente conflito sino-soviético, até era para nos interrogarmos sobre o inverso, sobre o que de monstruoso se passava com o maoísmo, logo com a mortandade anterior da Grande Marcha. Também, mais tarde, com o movimento dos guardas vermelhos e a Revolução Cultural, a decapitar a elite da direcção do comunismo chinês, como tinha feito Estaline. Que diziam “os poetas maoistas de agora (de então)”?

Vi eu bem, mais tarde, depois do 25 de Abril, in loco, que a vida na URSS era cinzenta e tristonha. Que dominava a burocracia, o formalismo, uma norma social arrasadora da riqueza da individualidade inserida no bem comum. Mas como podíamos sabê-lo antes, em época de guerra propagandística feroz, com contactos fechados de parte a parte? Desconfiámos alguns pela surpresa que foi o golpe de palácio de Brejnev e do seu grupo. Que significava afastar Khruschov, o símbolo de uma certa transparência?

Estou a dizer com isto que se discutia muito, obviamente que apenas no âmbito restrito da nossa célula. “De cima”, só o que vinha no Avante e no Militante, mais algumas orientações genéricas do “controleiro”. Também pelas condições da clandestinidade, não podia haver um controlo rigoroso do partido sobre o que se discutia na base, a desmentir o que se diz sobre a disciplina férrea que reinava no partido. Havia todo o lugar para a abertura de espírito, embora condicionada, positivamente, por uma grande identidade de ideias, aceite colectivamente. Assim, quanto conversei, por exemplo, sobre Maio de 1968 ou sobre o eurocomunismo, sem ter de pedir autorização, era o que faltava. 

Ao mesmo tempo, evidentemente, o centro de toda a discussão política marxista, a revolução de Praga, acontecimento decisivo na minha vida política e de bem mais um grande grupo de camaradas. Tão importante que aqui me fico, em passagem para o seu significado para outra fase de análise da vida no PCP, não sem dizer, ainda aqui, que o processo checoslovaco revolucionou – até hoje? – toda a minha maneira de ver a revolução socialista e a construção de uma sociedade que eu já imaginava e desejava, a reflectir o profundo sentido humanístico de Marx, de que via agora ser o movimento comunista oficial uma caricatura. Lembram-se do lema de Marx, também o meu? "Humani nihil a me alienum puto" (Sou homem e nada do que é humano me é estranho).

(continua)

NOTA - No período que estou a relembrar, e mesmo depois, até ao 25 de Abril, houve amigos meus que, individualmente, sem organização, um pouco à anarco-diletante, como disse, tiveram actividade política.  Mesmo quando me dão razão, então ou agora, para os incluir no anticomunismo que critico, quero deixar bem claro que os distingo dos outros que falam para se ouvirem falar e instalarem-se no sistema. Esses são amigos que prezo e admiro, que correram riscos, que até foram presos. Para mim, esse seu anticomunismo é honesto, respeito-o, discutimo-lo com duas cervejas, até porque nem tenho alguma dama a defender com voto de serviço donzel.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Feira das vaidades

Há quem, muito legitimamente, se entusiasme com os êxitos do mundo científico português, numa época em que pouca coisa positiva nos pode envaidecer em contraste com a vergonha da “triste, apagada e vilm tristeza” a que nos estão a remeter. Infelizmente, não é bem assim.

Hoje, no i, vem mais uma notícia de descoberta científica portuguesa. Pode ser verdade, pode não ser. Isto porque, ao contrário da política, dos negócios ou do jornalismo, a ciência tem uma credibilidade ímpar que lhe vem, em grande parte, do facto de só ser deontológico divulgar resultados após a sua publicação em revistas consagradas, com escrutínio dos artigos por cientistas independentes.

Não é o que se passa com esse caso (e muitos outros, todos os dias). Divulgar grandes descobertas por via de conferências de imprensa, comunicados e declarações à imprensa é cada vez mais frequente (alimenta a pressão pública para o financiamento e a construção de boas carreiras) mas não é deontológico e, muitas vezes, nem é verdadeiro como informação. 

No caso presente, nem é difundida por investigadores mas pelo gabinete de divulgação do centro de investigação – que certamente desvia parte do precioso financiamento da própria investigação. Até já se passou à fase profissional da propaganda da investigação e contratam-se "empresas de comunicação". Ainda recentemente tive conhecimento de um contrato desses, com uma famosa agência de "comunicação" especialista em promoção da imagem de políticos e em campanhas eleitorais.

Pode-se chegar mesmo ao ponto, como já li, de anunciar com parangonas não os resultados mas sim a intenção de desenvolver um projecto de investigação ainda nem iniciado. Ou elaborações sobre aplicações práticas que são banalidades ocas ou que só existem na fantasia (só?) de quem as diz. Enormes potencialidades de aplicação ao bem-estar humano, à saúde, de coisas de que ainda nem se faz ideia de para que servem? Em investigação, o melhor é dizer que servem para avançar o conhecimento. É tudo e é muito bom.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Será que ainda hoje sou um comunista com problemas? (I)

A minha mulher é 13 anos mais nova do que eu. Quando eu andava na universidade e militava no movimento associativo e, clandestinamente, no PCP, tinha ela inocentes 7 aninhos. Mesmo quando fui viver em Angola, por opção de lá fazer a guerra colonial, e a podia ter encontrado por grandes relações de amizades de família (lembro a tua grata memória, Valério), não dava para termos antecipado o que temos hoje de imensa vida comum, a menos que eu fosse pedófilo.

Isto também tem reflexos nas nossas conversas sobre política, muito empáticas mas sempre com grande respeito mútuo, até porque sabendo que as divergências não se opõem à identidade dos valores e ideais básicos. Ontem, dizia-me a morena que estava certa de que, com outra evolução das coisas, se não tivesse havido a rotura brusca na sua vida que foi a descolonização, se tivesse vindo estudar normalmente para Lisboa em 1974, teria acompanhado na militância associativa e provavelmente no PCP um seu primo muito amigo e “heroi de família”, um dos últimos presos da traição de Nuno Álvares Pereira (e que eu, como presidente de medicina, fortemente apoiei – as voltas que o mundo dá), como exemplo da luta pela sociedade que ela deseja, embora com uma certa dose, que me faz enorme ternura, de Madre Teresa de Calcutá.

Aos 17 anos, a sua mudança de vida, a perda das raízes de angolana, a brutal desinformação a que toda a sua geração de angolanos repatriados foi sujeita, mentiras desmesuradas de que só agora tenho conhecimento e que obviamente ela e os seus jovens amigos não podiam desmascarar, a falta de informação política de que a minha geração beneficiou cá, só é de admirar é que não a tenham atirado, e a amigos dela que hoje conheço, para o maior reaccionarismo. É que, não sei bem porquê, a malta do liceu dela que hoje conheço, é gente boa, jogavam à bola na rua com o preto, não devem ser identificados com os racistas que também havia. Estes racistas que até foram, muito caracteristicamente, o chamado batalhão Ferreira da Costa, de labregos que para lá foram depois do “para Angola, em força”.

Com tudo isto, as objecções que ela hoje me põe à política e prática do PCP são-me muito úteis. Claro que não ponho sequer remotamente a hipótese de voltar ao PCP, mas gosto de ter uma atitude isenta e justa. Estou a reencontrar-me, também talvez com alguns excessos que foram pesados na minha saída, cerca de 1980. Há coisas que ela me questiona e a que respondo honestamente como tendo eu também sido conivente, em época de sectarismo “justificado” (claro que não) pelas traições alheias que punham em causa a revolução. Mantenho que houve muitos erros no verão quente, que não houve uma reflexão profunda, antes, sobre a perspectiva enorme de revisão do socialismo aberta pela revolução de Praga, que houve enquistamento na concepção do marxismo, que a rigidez do centralismo democrático à maneira de Lenine conduziu a erros graves de funcionalismo e hierarquismo da vida partidária e do livre e enriquecedor debate interno.

Mas também, outras vezes, principalmente quando, 40 anos depois, uma pessoa interessada e honesta me interroga sobre acontecimentos concretos, admitindo logo que possa ter sido influenciada por propaganda, é uma desafio enorme à nossa capacidade de revisão da história pessoal, integrada na história colectiva.

O problema é quando a conclusão é “mas isto não se conhece. Porque é que tu e os teus amigos íntegros e coerentes não contam toda essa história, mostrando que tanto apresentam o positivo como o negativo e cada leitor que avalie?”. De facto, porquê? Por que pudor, tantos anos depois? Para não me pôr em bicos de pés, quando, para minha surpresa, ainda há pouco tempo uma biografia de Melo Antunes refere repetidamente a minha colaboração na sua fase de actividade política nos Açores, ainda eu nem tinha responsabilidades no movimento estudantil?

Não será que é mesmo altura de mostrar que ainda vive gente que não é da geração dos jotas Sócrates, Coelhos e Seguros? E gente que, no seu tempo, não assinava na Pide decalarações de bom comportamento?

(continua)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Uma cabecinha radiosamente brilhante (ou Solar)

Não destoando da colecção de escritos broncos que o arquitecto solar destila semanalmente, escreve ele hoje o seguinte mimo, num artigo de louvaminha a Maria Luís Albuquerque em que até chega a notar a sua parecença (?) com Angela Merkel, mas para melhor (venha o diabo!):
“(…) fragilizar neste momento o ministro das Finanças, qualquer que ele seja, é fragilizar o regime e fragilizar o país.Ora, se se percebe que o PCP e o BE o façam, não me parece que o PS tenha algum interesse nisso.”
Não se percebe o quê, Sr. Arquitecto (ou romancista policial)? Percebo que, risível hoje a propaganda anti-comunista das criancinhas ao pequeno almoço e da injecção atrás da orelha, se tente passar a mensagem da ideologia antidemocrática (fragilização do regime) e antipatriótica (fragilização do país), como não pode deixar de ser com veneradores de Kim Jong-un ou da memória de Enver Hoja.

O PS deve pensar que figura faz quando esta gente, por contraste implícito ou explícito, o usa como exemplo de uma “esquerda” realista, credível, moderada, bem comportada, etc. 

Tony Blair, ainda virarão as costas ao desfile do teu caixão, como fizeram à senhora de ferro.

NOTA – Notável mas infeliz pai, que tal filho teve.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dúvidas de ignorante

Já aqui tenho dito que, hoje, um dos principais papéis dos economistas de esquerda, mais do que simplesmente se manifestarem como cidadãos com posição privilegiada, é fornecerem aos seus companheiros de luta, leigos, a informação técnica necessária para fundamentar uma opinião política. Peço-lhes hoje um trabalho destes.

No blogue de Yanis Varoufakis vem uma longa entrevista de James Galbraith (JG), agora novo co-autor da “proposta modesta”, sobre a Europa, a Grécia (e o Syriza), a Alemanha e a América

Logo ao início, JG considera um erro, contra a verdadeira ideia de Keynes (?), que se contraponha ao austeritarismo o estímulo económico e a pretensão de voltar à inicial – considerada como normal – tendência de evolução do “output” potencial. A seguir, enreda-se, a meu ver de leigo, na discussão de constrições que impedem a luta pelo emprego, ao mesmo tempo que propõe alternativas de duvidoso realismo (novas formas de trabalho de serviços avançados, aumento de actividades não lucrativas, desfinancialização dos mercados de energia e de “commodities”, limitação dos efeitos da tecnologia na procura de trabalho, etc.), e enquanto considera ligeiramente a inevitabilidade de desemprego no sector manufactureiro.

A sua defesa de uma “terceira via” (instintivamente, detesto esta expressão!) parece-me mais uma versão do sonho com a fada europeista, em que, afinal, se baseia a “proposta modesta”. Parece-me reflectir, ao que sei, o posicionamento trotsquista e pró-Syriza de Varoufakis e, provavelmente, dos seus amigos e co-autores, como, aliás, expressamente manifestado nessa entrevista, com elogio à posição pró-europeia do Syriza e uma entusiasta admiração pessoal pelo seu líder, Alexis Tsipras.

Segundo JG, o estímulo não é alternativa imediata à austeridade. “A primeira necessidade é estabilizar o doente, que está à beira do colapso. Isto não significa estimular, não é regressar ao crescimento, ou regressar ao pleno emprego; é impedir um desastre que conduzirá à destruição da zona euro e à dissolução da União Europeia”

Pergunto eu, ignorante: porque é que, para JG, mais importante do que resolver a crise dos periféricos é manter a todo o preço a integridade da zona euro? E é correcto afirmar que uma política de estímulos a curto/médio prazo é pseudo-keynesiana?

(Imagem – um "cartoon" sobre  "A Modest Proposal" de Jonathan Swift)