A minha mulher é 13 anos mais nova do que eu. Quando eu andava na universidade e militava no movimento associativo e, clandestinamente, no PCP, tinha ela inocentes 7 aninhos. Mesmo quando fui viver em Angola, por opção de lá fazer a guerra colonial, e a podia ter encontrado por grandes relações de amizades de família (lembro a tua grata memória, Valério), não dava para termos antecipado o que temos hoje de imensa vida comum, a menos que eu fosse pedófilo.
Isto também tem reflexos nas nossas conversas sobre política, muito empáticas mas sempre com grande respeito mútuo, até porque sabendo que as divergências não se opõem à identidade dos valores e ideais básicos. Ontem, dizia-me a morena que estava certa de que, com outra evolução das coisas, se não tivesse havido a rotura brusca na sua vida que foi a descolonização, se tivesse vindo estudar normalmente para Lisboa em 1974, teria acompanhado na militância associativa e provavelmente no PCP
um seu primo muito amigo e “heroi de família”, um dos últimos presos da traição de Nuno Álvares Pereira (e que eu, como presidente de medicina, fortemente apoiei – as voltas que o mundo dá), como exemplo da luta pela sociedade que ela deseja, embora com uma certa dose, que me faz enorme ternura, de Madre Teresa de Calcutá.
Aos 17 anos, a sua mudança de vida, a perda das raízes de angolana, a brutal desinformação a que toda a sua geração de angolanos repatriados foi sujeita, mentiras desmesuradas de que só agora tenho conhecimento e que obviamente ela e os seus jovens amigos não podiam desmascarar, a falta de informação política de que a minha geração beneficiou cá, só é de admirar é que não a tenham atirado, e a amigos dela que hoje conheço, para o maior reaccionarismo. É que, não sei bem porquê, a malta do liceu dela que hoje conheço, é gente boa, jogavam à bola na rua com o preto, não devem ser identificados com os racistas que também havia. Estes racistas que até foram, muito caracteristicamente, o chamado batalhão Ferreira da Costa, de labregos que para lá foram depois do “para Angola, em força”.
Com tudo isto, as objecções que ela hoje me põe à política e prática do PCP são-me muito úteis. Claro que não ponho sequer remotamente a hipótese de voltar ao PCP, mas gosto de ter uma atitude isenta e justa. Estou a reencontrar-me, também talvez com alguns excessos que foram pesados na minha saída, cerca de 1980. Há coisas que ela me questiona e a que respondo honestamente como tendo eu também sido conivente, em época de sectarismo “justificado” (claro que não) pelas traições alheias que punham em causa a revolução. Mantenho que houve muitos erros no verão quente, que não houve uma reflexão profunda, antes, sobre a perspectiva enorme de revisão do socialismo aberta pela revolução de Praga, que houve enquistamento na concepção do marxismo, que a rigidez do centralismo democrático à maneira de Lenine conduziu a erros graves de funcionalismo e hierarquismo da vida partidária e do livre e enriquecedor debate interno.
Mas também, outras vezes, principalmente quando, 40 anos depois, uma pessoa interessada e honesta me interroga sobre acontecimentos concretos, admitindo logo que possa ter sido influenciada por propaganda, é uma desafio enorme à nossa capacidade de revisão da história pessoal, integrada na história colectiva.
O problema é quando a conclusão é “mas isto não se conhece. Porque é que tu e os teus amigos íntegros e coerentes não contam toda essa história, mostrando que tanto apresentam o positivo como o negativo e cada leitor que avalie?”. De facto, porquê? Por que pudor, tantos anos depois? Para não me pôr em bicos de pés, quando, para minha surpresa, ainda há pouco tempo uma biografia de Melo Antunes refere repetidamente a minha colaboração na sua fase de actividade política nos Açores, ainda eu nem tinha responsabilidades no movimento estudantil?
Não será que é mesmo altura de mostrar que ainda vive gente que não é da geração dos jotas Sócrates, Coelhos e Seguros? E gente que, no seu tempo, não assinava na Pide decalarações de bom comportamento?
(continua)
Estou muito interessado na continuação da narrativa.
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