sábado, 31 de maio de 2014

Neoestalinistas?

Esta entrada vai um pouco personalizada. É coisa de que não gosto mas creio que, no fim, ao contar um caso recente, compreenderão.
Talvez poucos como eu tenham defendido uma aliança progressista e patriótica sem exclusões. Talvez poucos como eu tenham manifestado a convicção de que, se essa aliança evidentemente não tem tradução institucional/eleitoral sem o PS, também não pode prescindir da força de classe, da determinação de luta e da coerência do PCP. Talvez poucos como eu tenham demonstrado que a sua crítica ao PCP (se não tivesse críticas, era comunista e não tinha deixado de o ser há largos anos) é fraterna de esquerda e só injustamente e sectariamente pode ser rotulada de anticomunista primária.
Por tudo isto, preocupa-me quando o PCP tem atitudes que podem prejudicar a sua afirmação eleitoral e contribuir, como tiros nos pés, para todo o ataque propagandístico que se lhe opõe, e a toda a esquerda por arrastamento. Nos últimos tempos, venho a ver sinais de uma nova vaga esquerdista e de um revolucionarismo primário e romântico, de cartilha.
Relembro o que aqui escrevi, sobre uma entrevista de Nuno Ramos de Almeida a Domingos Abrantes. Nuno Ramos de Almeida, que julgo estar bem informado sobre o PCP, pergunta “mas não se verifica em alguns sectores do PCP uma recuperação da imagem de Estáline?”, ao que Domingos Abrantes, iludindo a gravidade disso, responde que é uma questão marginal. Não posso dizer se sim ou se não existe essa recuperação de Estáline, mas é inegável que, em blogues e muitas páginas do Facebook, há intervenções nesse sentido por parte de pessoas cuja linguagem e redes de contactos aponta facilmente para uma ligação ao PCP.
Não preciso de declarar a minha posição em relação ao estalinismo. Vou com muitos que adiantam as mais variadas explicações – a necessidade de assegurar a construção do socialismo num só país, a industrialização forçada, a repressão dos kulaks, a guerra e a reconstrução da economia, etc. Mas isto são explicações, interpretações, que nunca podem ser confundidas com justificações morais. Estáline e a sua corte partidária foram responsáveis por crimes, que mancharam o socialismo. Pura e simplesmente, crimes, também, afinal, crimes contra os ideais socialistas ou comunistas; e que, tantos anos depois, esteja a ser reabilitado, é coisa muito triste.
Triste mas não surpreendente. Creio que faz parte da formulação de uma narrativa saudosista de explicação do colapso da URSS, mas que não precisaria de ter recuado até Estáline. A menos que alguma gente, tantos anos depois, nunca tenha digerido bem o XX Congresso. Mas alguém no PCP – ao que me dizem, estranhamente, principalmente jovens – está a esquecer que a análise do seu XIX Congresso não legitima esse saudosismo.
“As condições externas influenciaram em medida apreciável as soluções e os caminhos de construção do socialismo e contribuíram para os atrasos, erros e deformações que se verificaram. (…) As condições externas influenciaram em medida apreciável as soluções e os caminhos de construção do socialismo e contribuíram para os atrasos, erros e deformações que se verificaram”. Não me parece que esta apreciação seja apologética de Estáline, como se tudo isto só se tivesse passado depois.
O caso pessoal de que ia falar tem a ver com a pancada que apanhei num blogue manifestamente legado ao PCP (até com o deputado Miguel Tiago como co-autor), o Manifesto 74, acerca de um panegírico às FARC colombianas. Não há dúvidas de que as FARC são uma guerrilha combativa, de inspiração marxista-leninista e que controlam uma área considerável do país, um dos que tem governos neoliberais, reaccionários e dependentes dos Estados Unidos. Mas tem duas manchas principais que mancham a sua imagem junto de qualquer pessoa “bem situada”. Em primeiro lugar, traficam droga. Posso condescender com isto se, como dizem, é a fonte de sobrevivência dos camponeses da sua área de controlo. Em segundo lugar, fazem raptos de pessoas inocentes, muitas vezes durante longos anos, para obterem resgates. Para mim, não há pragmatismo revolucionário que possa justificar isso.
E aqui fica a transcrição de parte da discussão desse “post”.
João Vasconcelos-Costa disse...
Nem uma palavra sobre os raptos de reféns, por vezes durante longo tempo?
Vicente Duque disse...
(…)
Anónimo disse...
É porreiro ler o comentário de pessoas, como João Vasconcelos-Costa que olham para as FARC (muito provavelmente) como grupo terrorista, em vez de libertador da Colômbia. Se o tempo voltasse atrás uns 54 anos, em território cubano (e se existisse a internet) era provável ler o mesmo comentário de João Vasconcelos-Costa, «nem uma palavra sobre os raptos de reféns pelas tropas de Fidel?»
João Vasconcelos-Costa disse...
Nunca li que a guerrilha de Fidel tivesse raptado e mantido como reféns durante longo tempo pessoas inocentes. O comentário do anónimo não desmente que as FARC o tenham feito. Queira-se ou não, isto chama-se terrorismo, coisa que foi muito discutida pelos teóricos da nossa família. Porque, se não sabe, eu situo-me no terreno ideológico deste blogue, com actividade política desde os anos 60, embora sem filiação partidária desde há 35 anos.
Anónimo disse...
O problema é esse e possivelmente o não acompanhamento deste problema que não só afecta a Colômbia, como também o Mundo. Se as FARC vencerem, termina o negócio de narcotráfico entre a oligarquia corrupta deste país e os EUA (principal responsável pelo que está a passar na Colômbia). Caso não houvesse FARC, podiamos bem esperar por uma revolução. É pena que discuta aspectos a que chama de terrorismo nas FARC e esqueça as torturas que os paramilitares colombianos impõe aos prisioneiros das FARC, como também aos comunistas daquele país. Por alguma razão, o exército da oligarquia corrupta da Colômbia é formada por militares israelitas.
João Vasconcelos-Costa disse...
A retaliação já é um procedimento político correcto e ganhador de apoio popular? Eu sou de um tempo em que o PCP tinha extremo cuidado em não fazer vítimas inocentes, nomeadamente nas acções da ARA. Pelos vistos, há uma geração de jovens comunistas que voltou ao passado mais duvidoso do movimento comunista
Argala disse...
Bom texto Bruno.
Quando terminei de ler o texto e comecei a ler os comentários do João Vasconcelos-Costa, achei que os podia sobrevoar e deixar umas achegas sobre o aniversário das FARC-EP. Mas não posso. Não posso por causa disto:
1."Queira-se ou não, isto chama-se terrorismo, coisa que foi muito discutida pelos teóricos da nossa família. Porque, se não sabe, eu situo-me no terreno ideológico deste blogue, com actividade política desde os anos 60"
De que família teórica é vossemecê afinal?
2. Defina "vítima inocente" e diga-me quem são as "vítimas inocentes" que estão nas prisões das FARC-EP. Meu caro, até o direito internacional burguês define com alguma precisão o que são Prisioneiros de Guerra (POW). Vá ler as Convenções de Genebra.
Respondendo agora ao primeiro comentário. As FARC-EP cobram imposto aos compradores da folha da coca. Esse imposto é o gramaje. As FARC-EP não a cultivam, mas também não a destroem (não fariam mais nada.. ). E sim, essas folhas de coca destinam-se maioritariamente à produção de cocaína, como é óbvio.
E desta vez convém que o primeiro comentadeiro vá também ler o que diz o direito internacional burguês em relação à taxação em tempo de guerra. Mais, leia até o NOSSO direito burguês, nomeadamente a nossa Lei Geral Tributária no seu art. 10.º (Tributação de rendimentos ou actos ilícitos). Eu cito: "O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses actos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis."
Posto isto, qual é exactamente o problema?
Ver aqui posições de quem se diz da família teórica do blogue que chegam a ser mais atrasadas que o próprio direito internacional e nacional da classe dominante, é obviamente preocupante e impede que o debate avance.
Um abraço e vivam as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo !!!
Anónimo disse...
Pelos comentários de João Vasconcelos-Costa, as FARC devem deixar de retaliar e sempre que fizerem prisioneiros do lado dos paramilitares, em vez de uns bons pontapés, devem lhes dar "festinhas" e caramelos. É melhor assim. A retaliação contra o inimigo é coisa muito feia. O comunista tem por obrigação tratar os carrascos com bombons e outros aconchegos.
Por mais injustiças que existam contra os comunistas colombianos, (alguns exilados em Espanha) e por mais torturas e mortes que existam contra as FARC a ideia é criticar as FARC por qualquer ponto que seja, neste caso, "o rapto de reféns". Só este ponto, justifica para pessoas como o Sr. João Vasconcelos-Costa que abandonemos a causa das FARC e que ponhamos uma etiqueta a dizer "terrorismo" por cima deste movimento de guerrilha.
Por último, posso dizer que o imperialismo norte-americano (que mata e destrói na América do Sul), agradece às posições politicamente correctas de pessoas como o Sr. João Vasconcelos-Costa.
João Vasconcelos-Costa disse...
E se lessem alguma coisa sobre as diferenças entre Marx e Bakunine?
Está-me a preocupar começar a ver que a nova geração comunista é mais sectária e ortodoxa do que a minha geração, nos tempos da recusa do estalinismo. E não me digam que Estaline não é para aqui chamado.
Diogo disse...
Revoluções sem sangue?! Claro que Estaline é para aqui chamado, nem que seja para o entender João V-Costa.
Argala disse...
"E se lessem alguma coisa sobre as diferenças entre Marx e Bakunine?” Quer aventurar-se um pouco mais?
"a nova geração comunista é mais sectária e ortodoxa do que a minha geração"
Que a nova geração de comunistas o oiçam, e comecem a enterrar de uma vez por todas as teses liquidacionistas do XX Congresso. As tais dos "tempos da recusa do estalinismo". As tais teses capitulacionistas que fizeram com que parte do movimento comunista esquecesse coisas tão básicas como:
"Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um mundo a ganhar."
Anónimo disse...
O João Vasconcelos-Costa pertence ao comunismo revisionista. É que chamar sectário e ortodoxo a quem gosta de Estáline é muito rico. O João Vasconcelos-Costa devia saber que grande parte da sua geração apreciava Estáline, devido à grande vitória soviética frente ao nazismo. Isto foi antes da implosão da União Soviética, como também antes das campanhas mentirosas e pagas com muito dinheiro para denegrir o comunismo.
Nós não somos sectários. Gostamos é de ser esclarecidos em relação à história e por favor não me venhas com as tretas do revisionismo que acusam Estáline de ser um assassino, senão o melhor será tirar uma assinatura no partido do Rui Tavares.
Jerónimo de Sousa, diga a esses meninos que estão a fazer mal ao partido…

9 comentários:

  1. ... recomendo a leitura de La Paz en Colombia de Fidel Castro Ruz ( editora politica la habana , 2008 )

    ResponderEliminar
  2. "Cuba's Fidel Castro censures Colombia's FARC for hostage-taking"
    http://www.laht.com/article.asp?ArticleId=320309&CategoryId=14510

    ResponderEliminar
  3. Para responder aos que aceitam toda a espécie de atropelos ao indivíduo em nome de uma interiorização extrema da estrutura sócio-política do momento (ou do que pensam sê-lo) não podemos prescindir dos instrumentos de análise que o marxismo fornece.
    Eu diria o seguinte: os JVCs que fizeram um percurso de décadas pelo pensamento e acção, sempre em busca do Graal da coerência, não precisam de invocar galões para dar lições de humanismo, que é também - tem que ser -, património inalienável do pensamento comunista.
    Se por esse lado estamos entregues a outra espécie de canalha que repudia esse humanismo em nome de uma retaliação de classe, estamos mal: quem tem responsabilidades na condução da política tem de saber dizer-lhes da importância da afirmação dos valores partilhados por quem pode dar legitimação, nesta sociedade cujo jogo foi assumido.
    Depois, é fácil mandar postas no conforto do anonimato. Mais complicado para os intestinos é estar lá.

    ResponderEliminar
  4. Gosto muito da referência a humanismo. Quem for ao meu site vê um dos meus lemas favoritos: "Homo sum. Humani nihil a me alienum puto (Sou homem e nada do que é humano me é estranho)". Não é meu. Era também o favorito de Marx.

    ResponderEliminar
  5. As FARC traficam droga.

    As FARC raptam camponeses.

    Isto não tem nada de revolucionário, mas na falta de um debate , e na aceitação acritica de tudo o que lhes é impingido, esta gente do PCP, nem se preocupa com o quem apoia.

    Quão longe estão dos Tupamaros, e do CHE.

    ResponderEliminar
  6. Caro João, Muito sabes das FARC, pelos vistos. Certamente não terás essas informações através da imprensa burguesa, pois vejo que não és homem para aceitar como boas acusações infundadas. Quanto ao resto, não me parece justo tomares o blog pelas caixas de comentários. É que, curiosamente, atacaste um blog sobre o qual não foste capaz de tecer uma única consideração no teu texto e usaste apenas comentários de "anónimos" que não são da responsabilidade dos bloggers para fundares a tua acusação.
    Quanto ao resto, cada um escolhe o seu campo de batalha. Se prefere considerar as FARC como traficantes sanguinários e terroristas, façamos por aí o debate. Agora levantar suspeitas sobre a perspectiva ideológica dos autores, não me parece sequer justo nem honesto.

    ResponderEliminar
  7. As FARC não traficam droga. As FARC cobram impostos sobre quem lucra com o negócio da droga. E as FARC não prendem ninguém que não esteja envolvido política ou militarmente no conflito. De todas as formas, não há praticamente ninguém em poder das FARC mas há mais de 5 mil presos políticos nas prisões colombianas que não interessam a nenhum dos senhores que aqui comenta. De resto, quem tem acompanhado as negociações de paz entre o governo e as FARC sabe que já chegaram a acordos em matérias tão importantes como a necessidade de substituir o cultivo da folha da coca por outras culturas agrícolas, proposta antiga das FARC.

    ResponderEliminar
  8. Creio que essencial mesmo é considerar o seguinte: 1º. As perspectivas sobre os acontecimentos políticos ocorridos em qualquer parte do Globo, contemporâneos ou passados, são exercícios necessariamente eivados de profundo subjectivismo: os valores, as crenças, as convicções de quem olha, são um elemento determinante no resultado desse olhar. Acresce, que a informação de que dispomos, mediada, é apenas e sempre, a verdade possível; 2º. De qualquer modo, as experiências históricas não são modelos replicáveis "a la carte": é na especificidade de cada circunstancialismo concreto, que deve nascer a resposta mais adequada. Assim centrar o debate na proposta concreta e não na expressão de sentimentos individuais relativamente a acontecimentos ocorridos em lugares terceiros, é que me parece um caminho intelectualmente honesto. 3º. Atrevo-me a dizer, que pelo facto da nossa humana natureza, tendemos sempre - todos, talvez - a querer acomodar a realidade à confirmação dos nossos axiomas: o Estaline, blá, blá blá e por isso é que eu...enfim, vocês percebem, ou até, de forma mais preclara, no exorcismo do Augusto: "na falta de um debate , e na aceitação acritica de tudo o que lhes é impingido, esta gente do PCP, nem se preocupa com o quem apoia.
    Quão longe estão dos Tupamaros, e do CHE." Pois: o CHE é que era um porreiro, até porque, estando morto, já não diz nada, por mais que eu o torça e vire para o lado que me der mais jeito.

    ResponderEliminar
  9. Reconheço que Miguel Tiago tem razão, quando me critica por eu identificar o blogue com os seus comentadores anónimos. O post, propriamente dito, embora muito panegírico e omisso quanto aos aspectos que o próprio Fidel critica, também não pode ser tomado como estalinista.

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.