Entre outras reacções suscitadas pela minha entrada anterior, “Defender o estado social: base de um programa de unidade?”, uma, no Facebook, vem ao encontro da nota final dessa entrada, sobre o quadro partidário actual e a necessidade da sua renovação. Escreve António Martins Coelho, prestigiado militante de esquerda, com velha experiência de luta política e agora independente: “não vai haver qualquer convergência nem agora nem no futuro entre os partidos que temos. O ponto de partida tem de ser este, o resto é perder tempo. Maquiavel está a ganhar ao Marx, batemos no fundo e é uma ilusão o Soares e o Vasco Lourenço estarem à espera de uma explosão social. O povo é sereno, como disse o "almirante", e a partir de agora começam a distribuir umas migalhas e o povo agradecido até lhes pode dar uns votos inesperados. Ficamos com outro país, destruídos muitos dos avanços sociais, e sem esperança. Como sempre, desde há séculos, perante as dificuldades emigra-se. A esquerda deixou, como quase sempre, passar o momento oportuno, agora é tarde.”
Infelizmente, partilho muito desta visão, que quero chamar de realista, com alguma vergonha de que possam dizer que é antes pessimista ou derrotista.
O que eu quis fazer nessa entrada (talvez para “redução ao absurdo”) foi mostrar como mesmo uma base recuada – e expliquei porque é recuada, em minha opinião – podia ser, com boa vontade, um teste político, à vista dos eleitores, sobre o bloqueio da vida política-institucional portuguesa. Também, para os muitos que hoje alimentam o desejo de convergência de esquerda, quis mostrar que esse desejo pode reflectir, consciente ou inconscientemente, uma posição oportunista.
Os bloqueios políticos
Como já aqui tanta vez escrevi (veja-se só a última, como referência) entendo que o bloqueio do nosso sistema partidário já é irreversível e que isso só se resolve com a criação de um novo partido. Vou discutir isto, mas defendo-me desde já da acusação antecipada de irrealista: considero que é muito difícil a criação de um novo partido e muito mais se o horizonte temporal for correspondente ao deste ciclo político.
O bloqueio do sistema tem dois aspectos, claro que interrelacionados: o bloqueio das escolhas, que coloca questões de alternância e a prazo mais imediato, diz respeito à atitude psicológica dos eleitores em relação à natureza e comportamento dos partidos; e o bloqueio das políticas, que limita as alternativas, é mais profundo, não é tão imediatamente sentido pelos eleitores e tem mais a ver com as propostas políticas e o posicionamento ideológico dos partidos. Claro que o desbloqueio das políticas seria um contributo central para o desbloqueio das escolhas.
A degenerescência do nosso sistema partidário deriva de uma multitude de causas, objectivas e subjectivas, mas, afinal, todas com efeitos potencializados na rejeição pelos eleitores, com taxas crescentes de abstenção. Enumeremos, sem sobrevalorizar os aspectos ideológicos, hoje de menor valia para os eleitores. Primeiro, no pântano que se estabeleceu sucessivamente no poder:
- O carreirismo partidário, acabando num patamar de promiscuidade entre a política e a economia, senão mesmo, em alguns casos, de corrupção.
- A incultura política e a falta de solidez ideológica.
- A dependência excessiva dos líderes, deixando os eleitores presos a uma lógica mediática de combate entre figuras, mas também da sensação frustrante de engano sucessivo por um e outro “mentiroso”.
Indo mais longe, no domínio político e ideológico (mas, a meu ver, menos determinante no plano eleitoral, com eleitores politicamente desmotivados ou condicionados) aquilo que contribui para os bloqueios de alternativa, como i. a negação dos conflitos de classe e do seu papel no processo histórico: ii. a negligência na defesa do controlo estatal da propriedade dos meios estratégicos de produção; iii. a aceitação de ideias básicas informadoras do neoliberalismo; iv. a redução a discurso retórico da luta contra as desigualdades e contra o afastamento das partes do capital e do trabalho no rendimento nacional; v. a recusa da recuperação da soberania perdida para as instâncias europeias, nomeadamente o caso mais recente do tratado orçamental, etc.
Segundo, na esquerda dita radical:
- Uma imagem, não combatida com sucesso mesmo quando parcialmente inexacta, de sectarismo, rigidez ideológica e afastamento da realidade, bem como de fidelidade acrítica a um modelo político extinto.
- A imagem longamente estabelecida, com ou sem razão, de “controleirismo” nas movimentações unitárias.
(Nota – Falo de “quando parcialmente inexacta” ou de “com ou sem razão” por não desejar que estas caracterizações sejam desviadas para a discussão da sua validade. Essas coisas existem, como “factos” políticos e, mesmo que na esfera subjectiva, ou são combatidos pelos partidos ou contribuem para o bloqueio. Negar esta alternativa é atitude de avestruz.)
- Noutro sector, a irresponsabilidade e a imagem de inconsequência de propostas, além do que o eleitor “respeitável” considera coisas infantis.
- Pior, a ideia de que são partidos que só pretendem fazer oposição a qualquer governo e que nunca aceitam fazer parte de soluções “construtivas”.
Aos bloqueios de origem partidária acrescem os efeitos de amplificação e distorção pela comunicação social, com destaque para o que mais chega às pessoas, a televisão. Telejornais, comentários de opinadores de serviço e debates – com um predomínio escandaloso e quase sinal de “tomar por parvo” o espectador – tratam a política sem seriedade, sem rigor analítico, sem pluralismo, ou reduzindo este a uma versão grotesca, de combate de galos.
Da mesma forma, a redução da política a simples intrigas intra ou interpartidárias, de quem disse o quê, com óbvia valorização do tacticismo habilidoso, como um jogo a que a ética é alheia. Ou ainda, requente máximo da alienação à decadência do império romano, a transformação da política em entretenimento, em programas de círculo de amigos muito espertos e muito engraçados (honre-se a relativa excepção da Quadratura do Círculo).
Com tudo isto, parece estulto falar ainda de outra consequência do descrédito do sistema partidário, o populismo, principalmente focando as acusações onde são mais visíveis os partidos, isto é o parlamento. Pelo populismo (mas não só) morreu a 1ª República, mas bastaram dois ou três anos para se ver que há sempre um Salazar à espera.
Tentando reflectir
Embora aceite que o problema tem raízes também psicossociais e culturais (veremos a seguir) não consigo analisar o problema do bloqueio do sistema político-partidário e da chamada crise de representação esquecendo do quadro da estrutura de classes e da sua evolução. É um velho problema, que já vem dos anos 60 ou antes, o de um eventual “emburguesamento” das camadas trabalhadoras, incluindo a classe operária. Continua uma discussão viva, com a qual não quero complicar esta conversa, limitando-me a dar algumas pistas.
Em primeiro lugar, a situação objectiva (últimas duas décadas, dados de diversas fontes).
- Redução não muito acentuada do peso do operariado industrial (mais o proletariado da agricultura e pescas) na população activa, e com contributo crescente dos imigrantes;
- Forte aumento (20%) da taxa de assalariamento, com maior crescimento nas classes intermédias e nos intelectuais e quadros técnicos;
- Redução da actividade manual ou tendência para situações mistas (por exemplo, no grande comércio ou na distribuição);
- Pequeno aumento da percentagem de mulheres assalariadas, mais significativo em actividades de maior qualificação;
- Redução moderada (cerca de 10%) do peso da pequena burguesia (trabalhadores por conta própria e pequenos proprietários);
- Os capitalistas, incluindo os administradores de grandes empresas e os especuladores financeiros, duplicaram em número.
Estas mudanças infra-estruturais foram acompanhadas por importantes mudanças culturais, vivenciais e ideológicas. Sem preocupações de hierarquizar e sistematizar, lembre-se: maior osmose social, com projecção de valores e aspirações individuais diferentes e simpatia por visões mediatizadas de sociedades virtuais; desumanização dos espaços de vida, enclausuramento, enfraquecimento da vida comunitária; deslocação para a “periferia” (idosos, jovens, reformados, desempregados) de boa parte dos problemas; decréscimo acentuado da taxa de sindicalização, o que liga também à precariedade, particularmente dos trabalhadores imigrantes; pressão para o êxito pessoal, com cultura de competição, egoísmo e distorção ética; medo do futuro, pela crescente insegurança do trabalho; mudança radical dos paradigmas sociais, da cultura, dos lazeres, das relações familiares; o agravamento dos problemas ecológicos; etc., etc.
Não é preciso vincularmo-nos a uma perspectiva marxista para percebermos que tudo isto requestiona a dialéctica entre o conteúdo e a forma da acção política. Também que continua a haver questões centrais, de fundo e de natureza estratégica, que não podem ser confundidas com considerações imediatistas. Refiro-me, por exemplo, ao carácter de classes dos partidos. Um partido de esquerda é, por natureza, um partido anticapitalista. Não pode apelar a todos os eleitores, transversalmente, defendendo uma política social justa ou menos predadora do que a da direita. Tem de dizer claramente que está com os trabalhadores contra o capital, mostrando também que pode contribuir para a expressão política de um grande bloco de trabalhadores e pequenos patrões.
(Nota: mesmos as políticas “sociais justas”, como provado no livro agora famoso, de Piketty, não impedem que os rendimentos do capital cresçam mais aceleradamente do que a riqueza do país.)
Esta questão prende-se a outra confusão, a meu ver: o desbloqueio político à esquerda (em sentido amplo) corresponde ao caminho para a conquista de hegemonia da esquerda, à Gramsci? O que é isto? Desculpem teorizar um pouco, mas creio que se justifica, porque já li isso, coisa que me parece uma barbaridade. Começa por ser total confusão entre estratégia, movimento histórico, luta de classes; e, por outro lado, política de curto prazo, alianças, táctica partidária.
Não há uma hegemonia da direita ou da esquerda. A hegemonia é exercida por classes e, operacionalmente, pelos seus instrumentos políticos, culturais, ideológicos. Assim, falar agora em hegemonia do neoliberalismo, a que estamos a assistir, é correcto, identificando o neoliberalismo com o capitalismo tal como ele tem vindo a manifestar-se desde os anos 80. Também é obviamente correcto e ajustado à concepção de Gramsci falar-se de luta pela hegemonia por parte da classe operária (nesse tempo), cada vez mais necessariamente participante de um bloco social alargado mas coerente. Como parte fundamental dessa luta, a substituição do bloco histórico anterior (outro conceito gramsciano, isto é, a interpelação entre infra-estrutura económico-social e a estrutura cultural e ideológica).
Agora o que não há é hegemonia da esquerda, que é apenas um nível político (e ambíguo, só com significado operacional, a cada momento), não uma estrutura social, de relações de classes. Os partidos de esquerda definem-se por agirem para organizar politicamente o tal bloco social objectivamente anticapitalista, que, de certa forma, lhes é anterior. Mas também dão solidez ao bloco mostrando que as classes e camadas envolvidas têm interesses comuns. Esta relação dialéctica elementar é incompreensível se essa unidade estratégica para expressão e organização política de um bloco social for confundida com alianças (agora diz-se mais convergências) tácticas, muitas vezes apontadas a um simples ciclo eleitoral.
É claro que não estou a defender a inutilidade dessas alianças. Também, ao reconhecer bloqueios, não critico os esforços generosos de muitos que se esforçam por os combater rapidamente, apelando a um espírito unitário. Simplesmente, receio que tudo resulte em frustração, pior ainda a emenda do que o soneto.
Em alternativa, e mesmo sabendo que não satisfaz os impacientes, insisto na posição aqui tantas vezes defendida – a necessidade de um novo partido. Mas, perdoem-me o jogo semântico, não é um outro partido, mas um “Partido Outro”, desbloqueando a vida política não por diferença no plano dos outros partidos mas sim por reconstrução (dialéctica…) a nível superior, com um outro sentido da política no século XXI.
Não vai ser fácil e não será para amanhã. Exige muito trabalho militante, custa dinheiro e precisa de "boa imprensa". Mas é precioso começar a pensar, antes que venha aí uma palhaçada à italiana, ou mais uma coisa idílica de intelectuais libertários a desacreditar mais a política.
Já vai longo este texto. Concluirei amanhã, desenvolvendo um pouco o que defendo dever ser esse partido.
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