Analisados os resultados eleitorais e conjecturando sobre as suas consequências, devemos passar para as perspectivas de aliança à esquerda. Antes do mais, e para me situar metodologicamente, transcrevo o que escrevi na minha página do Facebook:
Vou falar dos “espaços políticos”. Não vou entrar por discussões filosóficas, mas é chocante que haja por aí tantos vestígios do positivismo mecanicista mais rasteiro, com total incapacidade de domínio da dialéctica. Os meus alunos de “Racionalidade científica” são capazes de ver isto.
Há um engano de base em muito do que se discute sobre o espaço partidário. A meu ver como uma visão mecânica, esquemática, sem conhecimento da dialéctica. A visão mais vulgar é geográfica, limitada a duas dimensões, a um plano. Onde está o PS, onde está o PCP, o que fica em área entre eles, está ou não vazia para preenchimento.
Não se podem comparar quantitativamente qualidades diferentes. O PS é, como o PSD e o CDS, um partido eleitoralista, com captação de votos por marketing político ao sabor da conjuntura. O PCP, concorde-se ou não com o que daí decorre, é um partido de classe. Quem não compreender o que isto significa, quer na formulação original de Marx, quer posteriormente na perspectiva leninista, não pode compreender o que é necessário para chamar o PCP a uma aliança. O PCP não faz alianças de partidos, faz alianças de blocos sociais ou históricos. É a sua natureza e o seu direito.
Da mesma forma, quanto a um novo partido alternativo, um “partido outro”, como tenho defendido. Não pode ser um partido entre o PCP e o PS, como é o erro do Livre, ou como possivelmente será a causa do encolhimento do BE. É qualquer coisa qualitativamente nova, num plano “geográfico-partidário” superior ao actual. É um partido que, para além do marketing eleitoral, tem de compreender e reflectir a mudança na estrutura social e nas correspondentes aspirações individuais e sociais, numa perspectiva que difere da perspectiva clássica do PCP e da falta de perspectiva social do PS. Tem de ser visto em altitude, enquanto à superfície se passa a disputa clássica.
Está a haver por aí uma grande falta de capacidade de reflexão teórica. A discussão política não é só os sound bites dos colunistas privilegiados pela comunicação social. E veja-se o mecanismo perverso. X cria um fenómeno mediático por agitar as ondas com uma atitude protesto ou uma cisão, mesmo sem qualquer ideia clara a marcar diferença. A comunicação começa a dar cada vez mais espaço a X. X continua a fazer um discurso superficial, mas que entra nos ouvidos. Nenhuma alternativa política vinga sem boa imprensa, e é X que tem. Não conhecem os X?
(Falando de X, esta nota vem a propósito da última crónica de Daniel Oliveira, no Expresso. Merece mais crítica, mas fica para depois).
Da mesma forma, é preciso analisar a questão em dois cenários. Primeiro, a curto prazo, em que tanta gente, voluntaristicamente, quer ver concretizada a aliança de esquerda, não sei como. Ou derivando para uma culpabilização sem sentido político (a política não é um romance), “este ou aquele partido, ou todos é que têm a culpa”. Segundo, com serenidade objectiva, considerando que a história nunca se fez na escala de tempo dos nossos desejos e que a impaciência não é uma virtude revolucionária.
Muita gente, eu obviamente incluído, deseja uma aliança de esquerda. De qualquer forma, não é de esperar uma aliança pacífica, um contrato sem margem para fugas. Não me parece que se possa ir para além de um programa mínimo, sempre a desafiar uma rotura, cuja responsabilidade será sempre pesada pelo eleitorado. Mas, se os partidos podem ser responsabilizados pelas coisas concretas, nenhum partido pode ser responsabilizado por desentendimento em coisas de fundo, pelo menos três: a alternativa à política de austeridade e a recuperação do sistema de estado social, a reestruturação da dívida, e o tratado orçamental. Pedir que esqueçam isto é pedir-lhes que se descaracterizem a favor de uma alianã envenenada que, nestas condições colapsaria em breve tempo.
Queiram ou não muitos dissidentes do PCP, em várias vagas, a sua tendência é logo a de uma ligação formal ou informal ao PS. Curiosamente, isto é tanto mais forte quanto mais recente é a dissidência, como se vê com a gente como eu que foi saindo, silenciosamente, ao longo dos anos 80. Não me parece que isso adiante nada. O sentir profundo dos militantes do PS vai contra Pinas Mouras, Mários Linos e outros. Por isto, um homem íntegro, como Raimundo Narciso, viu quem não tinha lá lugar, bem como (testemunho-o) teve muitas dúvidas Barros Moura. Uma alternativa ao actual PS só pode nascer de dentro, o que considero quase impossível.
Muitos dos ex-PCP, nomeadamente a Renovação Comunista, são água insossa. Misturam algumas figuras muito respeitáveis, alguns ideólogos a tentarem conjugar Marx com teses revisionistas na moda, muitos que, e têm razão, rejeitam principalmente métodos de organização e funcionamento do PCP, mas que não basta para definir uma nova alternativa de esquerda.
As divergências entre os dois principiais pólos de esquerda, PS e PCP, são profundas, essencialmente: tratado orçamental, reestruturação da dívida e preparação, como cuidado, para a necessidade eventual de saída do euro, forçados ou por decisão nacional. Convergem, admitamos, na recusa da política austeritária e na defesa do estado social. Seria muito, como base de um programa comum. Simplesmente, a credibilidade de um tal programa exige a clarificação da obtenção de recursos. O PCP diz claramente: reestruturação da dívida, incluindo “haircut”. O PS não diz nada. Pode, assim, haver aliança? E, se houver, que valor prático tem, a não ser desgastar a imagem da esquerda, arrastando a mais consequente? Diz-se que para um entendimento, é preciso que todos cedam um pouco, que façam compromissos. Isto é um truísmo. O que não dizem é até que ponto é de exigir que vão esses compromissos.
Será um debate difícil. O resultado inicial possível é o de uma “aliança tensa”. Mas deve ser tentada. Se sobrevive ou não à prova de fogo da governação, logo se verá. O que me parece dogmático e apenas fundamentado numa história passada que pode sempre ser revista, é que se postule, como faz Daniel Oliveira na sua última crónica no Expresso, a absoluta e definitiva impossibilidade de uma aliança entre PS e PCP, no plano da acção governativa, principalmente devido à "condição de que o PCP manda", mas também, vá lá, ao "fortíssimo sentimento comunista nas bases do PS". Mas não se lembram de 1973, do Congresso de Aveiro e das eleições?
Será um debate difícil. O resultado inicial possível é o de uma “aliança tensa”. Mas deve ser tentada. Se sobrevive ou não à prova de fogo da governação, logo se verá. O que me parece dogmático e apenas fundamentado numa história passada que pode sempre ser revista, é que se postule, como faz Daniel Oliveira na sua última crónica no Expresso, a absoluta e definitiva impossibilidade de uma aliança entre PS e PCP, no plano da acção governativa, principalmente devido à "condição de que o PCP manda", mas também, vá lá, ao "fortíssimo sentimento comunista nas bases do PS". Mas não se lembram de 1973, do Congresso de Aveiro e das eleições?
Também é importante que se dê um sinal inequívoco ao eleitorado, que julgo que deve começar pelo PCP e pelo BE, porque são os acusados de serem partidos fora do sistema de governação. Devem mostrar-se claramente disponíveis para negociações com o PS, desejavelmente com base numa plataforma acordada pelos dois partidos. É esta a tese que tenho vindo a defender, a da construção de uma aliança em dois passos.
E, segundo cenário, se não for possível uma aliança a curto prazo?
Para muita gente, é coisa catastrófica. São pessoas justamente impacientes, que estão a sofrer, mas que não têm em conta que a história se faz por ciclos, alguns de longo sofrimento. Não tivemos quase cinquenta anos de fascismo?
Mas nem vou para tão longo período. Vejamos o caso grego. Ao contrário da nossa cristalização histórica, que nos está a encurtar a visão, houve a retracção brusca do Pasok (a Pasokização), com emergência do Syriza. É certo que não tem paralelo entre nós. O PS não está a perder tanto como o Pasok e o BE (equivalente do Syriza) está a definhar, bem como o partido comunista KKE a não subir como o PCP. Mas há alguma coisa em comum. O que será a consequência para o PS de uma eventual coligação à direita, independentemente de quem beneficiar com esse provável estrondo?
O que quero dizer é que, sendo certo que quando mais depressa este governo se for melhor, uma certa pausa não é uma catástrofe e abre possibilidades imprevisíveis de reformulação do quadro político. Haja forças!
A seguir, escreverei uma “Carta aberta para uma frente de esquerda".
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