Com a aproximação das eleições europeias, alguns grupos internacionais de economistas têm vindo a tomar posição sobre a União Europeia, e mais enfaticamente sobre o euro. Parece-me útil fazer uma resenha sumária dessas tomadas de posição.
1. A desconstrução do euro
O documento colectivo “Deconstructing the Euro” foi publicado em 25 de Março. Os seus sete subscritores, todos professores universitários de economia, numa lista encabeçada por João Ferreira do Amaral, tomam como exemplo a progressiva debilidade da economia francesa e consideram que a austeridade não é o remédio; antes pelo contrário, só agrava a situação.
Os problemas da economia dos países problemáticos da eurozona radicam no facto de a taxa única de câmbio do euro não é adequada às diversas economias, pelo que as taxas virtuais em relação à Alemanha ficam criticamente sobrevalorizadass, agravado por, relativamente à Alemanha, os salários desses países terem crescido mais rapidamente e a produtividade mais devagar. Com a fixação imutável das taxas de câmbio, os países periféricos cada vez mais acumularão défices em relação à Alemanha, assim como permanecem não competitivos em relação a países como os Estados Unidos e o Japão [os autores não referem a China].
Os autores consideram ser irrealista esperar-se que a Alemanha perceba que o equilíbrio na eurozona e mesmo alguma tranquilidade social, de que a sua economia necessita, a leve à correcção da sua política actual, por um lado de forçar a austeridade nos outros países, por outro de manter a sua própria competitividade à custa de custos de trabalho altos, estímulo da poupança e travão ao consumo. Educados no culto da “economia moral”, os eleitores alemães não aceitarão uma mudança de política.
Assim sendo, este manifesto reclama uma reconstrução do sistema monetário, com esforços repartidos e sem que isso signifique ofensa ao espírito europeu ou regresso dos nacionalismos. Em resumo: 1. A Alemanha e a França recuperariam a suas moedas pré-euro, o que levaria a uma revalorização face ao euro. 2. Os restantes países ou mantinham como moeda este novo euro desvalorizado ou retomariam as suas moedas anteriores, desvalorizadas em relação ao marco. 3. A isto se somaria um plano de salvaguarda da estabilidade bancária e a negociação de mecanismos para a gestão das dívidas denominadas em euros.
2. O manifesto do Grupo Glienicker (GG)
“Para uma união do euro” foi publicado em 17.10.2013, no Die Zeit, por um grupo de onze professores alemães – economistas, juristas, politólogos. Partem da posição de recusa da perspectiva oficial de que a crise terminou ou pelo menos está a passar e de que os mercados acalmaram em relação ao euro, por longo tempo. Entendem que, pelo contrário, nenhum dos problemas fundamentais por detrás da crise se resolveu, nem a crise bancária, nem a crise das dívidas, nem a crise da competitividade, muito menos o empobrecimento e a crise social dos países periféricos.
Em oposição ao manifesto anterior, o GG propõe, como solução, um programa acentuadamente federalista. Não discutindo – e certamente não aceitando – a dissolução da zona euro, partem do princípio de que a indiscutível manutenção do euro exige uma integração mais forte. Parece-me ser a muito frequente fuga para a frente dos eurofílicos quando não podem deixar de reconhecer a disfuncionalidade do euro.
As propostas que formulam são conhecidas nesse campo favorável de opinião sobre a União e o euro:
a) concordância com o tratado orçamental como disciplinador da dívida pública, complementado com uma sólida união bancária que limite os riscos de excesso de dívida privada;
b) concordância com o princípio de que os contribuintes dos países com resgate devem suportar uma grande parte do fardo da crise e sofrer reformas dolorosas. No entanto, para evitar extremos, a Eurozona deve dispor de um mecanismo de seguro, incluindo um seguro contra o desemprego, sendo elegíveis todos os países-membro que organizarem o seu mercado laboral de acordo com as necessidades da união monetária (?).
c) reforço da democracia e do estado de direito, especialmente necessário quando as crises “radicalizam asa sociedades e ameaçam as instituições democráticas”, não se podendo aceitar que seja mais fácil à União apoiar os estados no plano financeiro do que no plano da democracia e da lei.
d) direito da União de intervir para a garantia de bens e serviços públicos que possam ser postos em causa por uma crise de um ou mais países, como, por exemplo, a continuidade de redes energéticas ou a segurança do espaço aéreo e, consequentemente, recusa de políticas nacionais proteccionistas em caso de crise. Como corolário do mesmo princípio, consideram a moeda única como imm bem comum da zona euro, cuja responsabilidade compete a todos.
e) negociação de um novo tratado da zona euro, com transferência de poderes intergovernamentais para um governo eleito por um euro-parlamento, “capaz de agir economicamente – direito de intervenção na autonomia orçamental dos estados, negociação de pacotes de crise [JVC: austeridade? nova troika?], encerramento de bancos, garantia de um fundo de resgate, tudo suportado por um orçamento “federal” por contributos dos países membros, no valor de 0,5% do respectivo PIB.
Como se vê, defendem, no essencial, a concepção consagrada que tem substanciado, na teoria e na prática, o projecto europeu e, a meu ver, alinham de facto com a ortodoxia europeia, entendendo que os tóxicos europeus se tratam com mais tóxicos, no sentido da federalização.
3. O manifesto dos académicos franceses
“Manifeste pour une union politique de l’euro” é subscrito por uma lista de 15 universitários franceses de diversas áreas das ciências sociais, encabeçada por Thomas Piketty, membro do PS francês e agora muito conhecido pelo seu livro “O Capital no Século XXI”. Parece-me exemplificar bem a situação actual, na Europa, de convergência entre o neoliberalismo imperante no pensamento único dos governos e instituições europeias e as posições de cedência da social-democracia.
De facto, com algumas nuanças, o manifesto Piketty não se afasta significativamente do manifesto do grupo Glienicker, que “saúdam com muito interesse”, no sentido de “fortalecer a união política e fiscal dos países da zona euro”, olhando em primeiro lugar para o papel da França e da Alemanha na economia global. O que pretendem, dizem, é levar ainda mais longe as propostas do grupo de Glienicker. A meu ver, está tudo dito.
Em relação ao que vimos do manifesto alemão, repete-se o essencial, e principalmente numa abordagem que sobrevaloriza os aspectos institucionais e formais em relação à economia, ao desenvolvimento e à solidariedade: um parlamento para a zona euro (câmara europeia), a par do Parlamento europeu, com representações proporcionais dos parlamentos nacionais dos países da zona euro e com poderes para cobrar impostos; ministro das finanças e governo da zona euro respondendo perante a câmara europeia; revisão urgente dos tratados para estabelecimento destas alterações institucionais; orçamento federal financiado por impostos directos sobre todos os euro-cidadãos e não por contributos nacionais em função do PIB, como proposto pelo grupo Glienicker.
Como pequeno piscar de olhos para a esquerda, uma proposta de harmonização do imposto sobre as empresas (IRC), com uma taxa mínima geral, à escala da zona do euro, a nível nacional de 20%, mais uma taxa federal (sic!) de 10%, evitando “paraísos fiscais".
Também um mecanismo de mutualização da dívida, mas recuado, na linha da proposta do grupo de peritos para o fundo de redenção da dívida. Curiosamente, a este respeito, o manifesto, na linha do manifesto alemão, questiona a legitimidade de mecanismos de intervenção em crise, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade ou as transações monetárias directas (OMT), por “afectarem de uma maneira ou outra os contribuintes dos países da zona euro”.
Registem-se algumas intenções piedosas, em geral, deste manifesto. Segundo os autores, ele é necessário para “trazer o nosso modelo social até ao processo de globalização”, “activar a democracia e as autoridades públicas (…) para recuperar o controlo e efectivamente regular o capitalismo financeiro globalizado do século XXI”.
4. O manifesto progressista
Promovido por uma rede de economistas progressistas europeus (Euro-pen) o manifesto “Um outro caminho para a Europa – Apelo para as eleições europeias” difere radicalmente dos que temos vindo a discutir. Tem uma posição económica sem ambiguidades, que põe em prioridade relativamente aos aspectos institucionais, e avança com propostas incisivas para saída da crise e alteração radical da política dogmática que tem prevalecido na Europa, com destaque para a zona euro.
O manifesto propõe cinco eixos principais de mudança:
a) terminar com a austeridade, com abandono do pacto orçamental e do PEC e substituindo o objectivo orçamental de equilíbrio estrutural por uma estratégia coordenada que permita a cada estado-membro a política orçamental adequada, quanto a estímulo da procura e investimento.
b) combate à deflação, fornecimento de liquidez pelo BCE e assunção por este do papel de refinanciador de última instância das dívidas públicas. Criação de euro-obrigações e reestruturação das dívidas. Regras da união bancária que impeçam actividades especulativas mais arriscadas, com separação entre banca comercial e de investimento. Eliminação de paraísos fiscais e centros “off-shore”.
c) expansão do emprego e redução das divergências económicas, pondo-se fim à pressão para a redução dos salários e direitos dos trabalhadores. Considerar que a competitividade deve assentar sobre a produtividade e o investimento. Estabelecimento de um salário mínimo europeu.
d) reduzir as desigualdades, defender o estado providência, através de políticas de redistribuição, de protecção social e de solidariedade à escala europeia, com mudanças profundas nos sistemas fiscais transferindo carga fiscal dos trabalhadores para a riqueza.
e) desenvolver a democracia, alargando-a com maior controlo dos parlamentos e maior intervenção dos cidadãos, a nível nacional e europeu, e impedindo “os banqueiros, os tecnocratas e os grupos de pressão financeiros ou industriais de determinarem as decisões que nos afectam a todos”.
Note-se que, na sua conclusão, este manifesto afirma que “a emergência de uma coligação progressista no novo Parlamento Europeu será determinante para pôr fim às políticas em falência, conduzidas pela ‘grande coligação’ entre o centro-direita e o centro-esquerda que até agora tem governado a maior parte da Europa [JVC, itálico meu]”.
Certamente que muita gente viu com o maior agrado que esta última afirmação não impediu que o manifesto, em relação a portugueses, para além de Francisco Louçã, tenha sido subscrito por dois socialistas, João Cravinho e Henrique Neto e por José Almeida Serra, vice-presidente do Conselho Económico e Social. Eppur si move?
5. Uma posição individual
Não se trata de um manifesto, mas vale a pena ler, comparando com eles, o artigo de Costas Lapavitsas, “The left needs a progressive euroscepticism to counter the EU’s ills” (“A esquerda precisa de um eurocepticismo progressista para se contrapor aos males da UE”), publicado no Guardian de 7 de Maio. O autor é bem conhecido entre nós por um seu livro com colaboradores portugueses (E. Pires e N. Teles), “Crisis in the eurozone”.
Lapavitsas reconhece que parte da esquerda, pró-europeia, tem apresentado propostas para os males que estão a afligir a Europa. Que rejeita a austeridade orçamental, a devastação da economia e a destruição do estado social. Que advoga políticas para a redução do desemprego. Que defende a redistribuição dos rendimentos e da riqueza. Que propõe o controlo do sistema financeiro.
Simplesmente, segundo o autor, a questão principal, que abre terreno eleitoral à extrema-direita, é que essa parte da esquerda não reconhece que nada disso é possível no quadro das instituições europeias, desenhadas desde Maastricht para serem governadas por burocratas privilegiados ao serviço dos grandes negócios, e depois por uma zona euro dominadora das políticas económicas nacionais e que endureceu os mecanismos conservadores no coração da UE.
Para Lapavitsas, é utópica a esperança na criação de “uma Europa melhor”, considerando que “os mecanismos institucionais da UE já foram demasiadamente longe para poderem ser reformados. Têm de ser desmantelados e substituídos. A esquerda deve, pelo contrário, é dar voz à frustração dos trabalhadores, enviando uma mensagem clara que combine políticas radicais com eurocepticismo progressista”.
Para isto, duas vias essenciais: 1. oferta aos estados do euro de uma opção de saída cooperativa, enquanto que, no conjunto, o euro se devia transformar num sistema de taxas de câmbio ordenadas e de controlo de fluxos de capitais. 2. compreensão da impossibilidade de um estado único europeu, por inexistência de um “povo europeu” (“demos”) e porque se tem visto que, nesta fase, o estado-nação oferece maior protecção e meios de luta aos trabalhadores contra a ofensiva dos grandes negócios.
Eu assinaria por baixo!
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