terça-feira, 26 de novembro de 2013

Notas soltas

1. Cada vez somos mais

Em geral, tosto de ler Manuel Carvalho (MC), subdirector do Público, mesmo quando não concordo (ler coisas inteligentes de uma pessoa com quem não se concorda até pode ser muito interessante). Não me parece arriscado deduzir dos artigos de opinião de MC que é firmemente oposto a este governo e, talvez, pelo menos reticente em relação ao PS. Mas tudo é escrito com serenidade e recionalidade. Dou como exemplos artigos seus recentes, tais como “O fantasma alemão”, “O dito, o não dito e o reiterado”, “Foi você que pediu o FMI?” e uma excelente revisão crítica, sucinta mas muito articulada, da história da social-democracia europeia, “SPD comemora 150 anos sem saber o que fazer da social-democracia”.

No passado domingo, escreveu um artigo, “O recurso à violência política é constitucional?” (sem “link”), com um tom muito crítico ao que muitos consideram ser apelos de Mário Soares e Vasco Lourenço à violência. Não sou dos que afastam liminarmente a violência como sempre condenável em democracia, quando os poderes de uma democracia formal pode ser violenta contra o povo. E é preciso saber o que se quer dizer com violência, palavra bastante ambígua; não falo de mortos e feridos. Mas não é isto que vou discutir agora, antes um aspecto bem expresso no artigo, de se estar a tentar construir um amplo movimento de protesto – que obviamente é positivo – mas sem compromisso possível entre propostas de solução.
A menos que ouse dar a resposta à pergunta de um milhão de dólares que o PS não é capaz de dar: deve ou não deve o país recusar a austeridade da troika e pagar os custos respectivos, que podem passar pela renegociação da dívida e pelo regresso ao escudo? Estando dependente da ajuda financeira externa e das suas imposições, o cenário de mudança proposto por Mário Soares e pelos que acorreram à Aula Magna não acontece com uma simples mudança de rostos. Portugal pode e deve ser melhor governado, mas nenhuma governação radicalmente alternativa será viável sem que a troika se vá embora. 
Alguém acredita que o FMI, o BCE e a Comissão Europeia iriam perdoar a um novo Governo e a um novo presidente, eventualmente surgidos na sequência de uma acção violenta, cortes nos salários e nas pensões? Em tempos, seria possível lançar uma mensagem ao internacionalismo socialista e esperar que daí viessem apoios, como aconteceu tantas vezes no passado. Infelizmente, hoje o discurso da austeridade banaliza-se perante “a crise generalizada da socialdemocracia, depois de capturada pelo pensamento único do liberalismo conservador (…).
Cada vez somos mais a dizer, passe o plebeísmo, que “ou sim ou sopas”, ou que não se pode ter o bolo e comê-lo, como quer o PS (NOTA – o que não quer dizer que eu negue a importância das acções de protesto, as únicas que, por enquanto, isolam e afrontam o governo de traição ao povo e à dignidade nacional).

2. Duas propostas surpreendentes (para um leigo)

a) O bem conhecido e reputado articulista do Financial Times Wolfgang Münchau, num artigo de há poucos dias, “Why Europe needs to try unconventional policy” (“Porque precisa a Europa de experimentar uma política não convencional”), faz uma proposta que ainda não tinha visto formulada, a da adopção pelo BCE de uma política de alívio quantitativo (“quantitative easing”, QE).

Espero não me enganar ao dizer que é mais avançada do que a eventual emissão de euro-obrigações e mesmo do que as “outright monetary transactions” (OMT). As OMT e a política de QE significam a compra de títulos ou obrigações pelo banco central, mas a distinção fina entre ambas ultrapassa-me, tecnicamente. Espero ajuda dos meus amigos economistas. O que diz Münchau é que o QE é mais eficaz quando a taxa de juro está perigosamente perto de zero, com uma inflação baixa, a ameaçar deflação. Além disso, o plano de OMT é mais de criação de um sistema de segurança para os investidores do que de verdadeira injecção de dinheiro por compra de títulos.

Pelo que leio, o QE tem funcionado nos EUA e no Reino Unido. No entanto, se a Alemanha nem quer ouvir falar de mutualização da dívida, se ainda vai ouvir o seu tribunal constitucional sobre as OMT, como esperar que dê o “passo de gigante” de aceitar o QE? E terá Draghi coragem de alguma vez propor tal coisa? 

b) À segunda proposta que hoje me aparece já posso reagir mais politicamente, com menos dependência técnica. Ela vem de Ashoka Mody, ex-economista do FMI e chefe da missão na Irlanda, que conhecemos principalmente por, há meses, ter declarado que a austeridade era uma política autoderrotada, por não resultar em crescimento, antes em aumento da dívida.

Num estudo intitulado “A Schuman compact for the euro area”, de que só li ainda o resumo, Mody parte de duas constatações: 1. não é possível alcançar uma união política europeia; 2. as políticas orçamentais e bancárias podem funcionar a nível nacional. Assim sendo, propõe que a política orçamental seja devolvida aos países; que se minimize o risco de dívidas excessiva por proibição de resgates, mas com a contrapartida de possibilidade de restruturações; que se reduza a dimensão da área bancária europeia, com limitação do aumento do número de bancos zombie. 

Há por aí europeistas que terão um chilique se lerem este ensaio de Mody. Ainda por cima, invocando em vão o sagrado nome de Schuman…

domingo, 24 de novembro de 2013

Partido LIVRE (V) – Princípios e ambiguidades

Finalmente, alguma coisa sobre o programa. Espero, depois disto, deixar descansados os leitores já compreensivamente cansados destes meus longos escritos e os entusiastas do LIVRE que, reparo pelo Facebook e listas de correio, não parecem seguir os propalados princípios do LIVRE, fechando-se ao debate tanto quanto acusam os outros. 

À parte o que ficou dito na entrada anterior, tem de se falar do programa, melhor dito, do que se adivinha como programa, porque é só uma vaga declaração de princípios, com mais uns slogans na página da internet. Dir-me-ão que uma declaração de princípios é forçosamente geral. Creio que não e que não. É claro que não peço as 11.666 palavras do Manifesto do Partido Comunista (desculpem a provocação amigável), mas, para boa precisão das formulações sem ambiguidades, por exemplo as 7876 palavras da declaração do Congresso Democrático das Alternativas. A declaração de princípios do LIVRE parece obedecer à convicção dos blogues de que ninguém é suficientemente motivado para ler mais do que uma página.

Confirma-se o que tenho escrito. No essencial, esta declaração de lançamento do LIVRE é uma posição social-democrata tradicional embrulhada em vacuidades demagógicas de esquerda retórica (oxalá se verifique depois um prática consequente a corrigir esse vício intelectuais). 

Vai atrair uma ala esquerda do PS que ainda se mantém no partido e uma ala mais conservadora de militantes e eleitores do BE que já tinham feito antes o mesmo percurso, do PS para  a esquerda. É transparente que, sendo esses os que RT disse em entrevista que são "aqueles com quem está bem", delineou à medida deles a Declaração de princípios do LIVRE. Mais uma vez a história requentada do "verdadeiro partido socialista", quando já não há "partido socialista" em parte nenhuma desta Europa. Ter um agora vai ser uma grande originalidade nossa.

Arrisco mesmo dizer que, embora desconhecendo-se ainda as propostas programáticas concretas do LIVRE e muito menos a sua prática, tem algumas posições recuadas quase ao nível de um velho republicanismo progressista. A sua invocação da Liberdade, Igualdade e Fraternidade – de que falarei já a seguir – pode ser brilharete de intelectual mas também pode significar, de facto e como tem escrito um seu colega eurodeputado, a negação de qualquer revolução posterior à francesa. Lá saberão porquê.

Não tenho nada contra um programa social-democrata. É bem-vindo, quando o PS deixou esse terreno e se converteu, com toda a internacional socialista europeia, ao neoliberalismo, numa coisa que podia chamar de social-liberalismo (não, não andei pelo MRPP…) ou que outros, bem situados na órbita do PS, elogiam como ordoliberalismo. Não queiram é esconder-se sob outra capa, de esquerda nova e coerente. Como disse, vai ser um partido que acolherá muita gente que esperava entrar num PS que não o que temos. Bem bom, se isto os fizer afirmar esse novo PS como interlocutor da esquerda.

O partido terá quatro pilares: liberdades e direitos cívicos; igualdade; aprofundamento da democracia em Portugal e construção de uma democracia europeia; ecologia. Dito assim, pouco acrescenta ao que dizem todos. Vejamos que melhor caracterização faz a declaração. 

A lista mais extensa dos princípios derivados desses pilares inclui uma referência surpreendente, neste princípio do século XXI, a liberdade, igualdade e fraternidade. Não digo que estejam ultrapassados, mas obviamente têm de ser muito bem situados no tempo, em conteúdo real e expressão prática. Não acontece com a declaração quando considera, por exemplo, a liberdade como “autonomia pessoal, realização do potencial humano e desenvolvimento colectivo”. Uma bonita fórmula genérica que de forma alguma define, como exclusivo seu, um partido de esquerda.

Ou então igualdade como incluindo a “equidade na distribuição de recursos e a equalização progressiva de possibilidades e condições de vida”. Quando vivemos hoje num mundo globalizado com crescente exclusão e desigualdades, quando a Europa adopta princípios ideológicos e políticas ultra(neo)liberais, quando a economia está dominada pela financeirização, quando os salários são esmagados pelas desvalorizações internas (em particular na zona do euro), quando, com tudo isto, cada vez mais se agrava quando se agrava a distribuição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital, aquela fórmula vaga da declaração é pouco mais do que nada.

Ou a solidariedade como materialização de um sentimento de fraternidade a determinar a correcção das injustiças sociais, uma visão de certo modo mistura de fabianismo e Exército de Salvação, que esquece as lutas dos oprimidos, a quem nunca a sociedade, no seu todo, isto é, incluindo os dominantes (que o LIVRE aparentemente não exclui desse bonito sentimento), lhes ofereceu fraternidade, por graça divina ou de um partido de iluminados.

Ou a afirmação gongórica, hoje um pouco estranha como primeiro princípio, da universalidade dos direitos humanos, coisa talvez em dúvida para RT depois de 1948 ou mesmo 1789 (NOTA – não quero dizer que os direitos humanos sejam sempre respeitados; mas então há é que lutar por eles e dizer como, não fazer só afirmações solenemente piedosas).

Do europeísmo, diz-se essencialmente o que referi na entrada anterior, quando critiquei a eurofilia utópica tantas vezes manifestada por RT nos seus escritos. Como diz, “sem democracia europeia não há solução para a crise que estamos a viver”. RT, que é certamente um homem intelectualmente honesto, sabe bem que pode haver solução, como cada vez mais gente vai dizendo cá e por toda a Europa. Está no seu direito de dizer que não concorda com essa ou essas soluções, mas não pode dizer que não existem. A sua eurofilia cega-o, coisa estranha em quem tanto apregoa a condenação do fanatismo. 

Como se quer dar nesta declaração de princípios tanta importância e prioridade como terreno de luta à Europa, num momento em que as perspectivas de insucesso de uma luta de esquerda comum estão tapadas pela total hegemonia do ultra(neo)liberalismo e dos diktats políticos e económicos do núcleo central, além do mais com rendição da social-democracia (Seguro até já nem fala de Hollande, mesmo que para propaganda)? E quando os povos europeus, virados para os seus graves problemas, não mostram qualquer perspectiva de seguirem esse apelo, como o mostram as percentagens d abstenção e o desinteresse pela informação do que se passa na União? Não vou gastar mais tempo. 

Mais importante é a posição em relação ao socialismo: “recusa da mercantilização das pessoas [JVC – deve querer dizer da força do trabalho, porque escravatura já não há. E “pessoas” inclui os capitalistas, também mercantilizados?…], do trabalho e da natureza, e no sentido de que seja conferida ao estado a garantia de aplicação dos princípios de universalidade, liberdade e igualdade de oportunidades.” (NOTA – Não parece ter algum cheiro a Polanyi, mal interpretado e aparentemente adoptado como inspirador de socialismo?).

Ora aqui está uma definição de socialismo que consegue aos costumes dizer nada sobre trabalho e capital, sobre a propriedade e o seu controlo. Quanto à fantasia da não mercantilização da natureza, quer dizer, por exemplo, que não se pode produzir, como bem com valor e preço, energia hidroeléctrica? Mais importante, evidentemente, é que se atribui ao estado socialista apenas a função de garantir a aplicação dos princípios de universalidade, liberdade e igualdade de oportunidades. Já nem se trata de uma visão social-democrata. É puro republicanismo liberal a caber em qualquer social-cristianismo ou lá o que se quiser.

Escreve-se também que “embora a ação governativa ou estatal seja crucial na criação de uma economia mista, em geral com três setores (privado, público e associativo/cooperativo), o nosso socialismo não é um estatismo.” Presumindo que não ser um estatismo quer dizer limitação do sector público, quais os critérios e objectivos de constituição desse sector limitado? Que papel relativo é dado ao sector cooperativo? Que protecção terão as PME face ao poder mono/oligopolista e financeiro? E o crédito? E a que controlo não apenas accionista estarão sujeitas as grandes empresas? Sem respostas a tudo isto, não sei avaliar que socialismo está a ser proposto.

Não tenho dúvidas de que muita gente interessada no LIVRE é genuinamente de esquerda (embora ainda estejamos por nos entendermos sobre o que é esquerda). Ouvi RT afirmar em entrevista à TSF (muita imprensa, como se costuma dizer, tem RT) que ser de esquerda é defender a justiça social e a igualdade de oportunidades, e que assim partilha o seu posicionamento de esquerda com todos os outros partidos progressistas (sic). Isto traz ao debate mais um elemento de confusão. Qual é a distinção que faz RT, entre partidos? Há algum partido português que seja progressista mas não de esquerda? Será o PS, para RT? Seria uma enorme surpresa ouvi-lo dizer isto.

Para terminar, um exercício elucidativo de análise de texto. Procurei termos significativos na declaração de princípios, juntando-lhe, para atenuar a generalidade e por ser mais propositado, o Manifesto para uma esquerda livre. Vão a seguir, entre parênteses, as ocorrências, entre as 1228 palavras do texto, de termos (ordem aleatória) com relevância para a estrutura económica, a crise, o neoliberalismo europeu, o socialismo não retórico: 
Economia (3), euro (0), crise (5), resgate (0), troika (0), memorando (0), reestruturação (0), denúncia (0), emprego (2), desemprego (0), investimento (0), pacto orçamental (0), banca (0) ou bancos (0), dívida (0), recessão (0), procura interna (0), exportações (0), capital (0), globalização (0), moeda (0),  periferia (0), desvalorização (0), salários (0), estado social (1), privatizações (0), cooperação (0), educação (1), emigração (1), juventude (0), trabalho (2), povo (0), popular (0), liberalização (0), desregulação (1), austeridade (1), ideologia (1).
Em contrapartida, veja-se o resultado da pesquisa com termos frequentes da retórica política convencional e muito suscetíveis de serem usados com imprecisão ou ambiguidade:
Esquerda (9), democracia (12), Europa ou adjectivos (16), solidariedade (4), convergência ou equivalentes (5), justiça (4), liberdade (6), livre (2), ecologia (4), igualdade (9), desenvolvimento (8), Estado (4).
Isto reproduz, no essencial, o que se passava com o Manifesto para uma esquerda livre, que, sobre a crise, se limitava a dizer um país decidido a superar a crise com uma estratégia de desenvolvimento económico e social, com uma economia que respeite as pessoas e o ambiente, numa democracia mais representativa e mais participada, com um Estado liberto dos interesses particulares que o parasitam.” 

Que coisa mais balofa! Devia ser hoje espada em brasa. Desequilíbrio estrutural da zona euro? Consequências da pressão para a competitividade por desvalorização interna? Espiral recessionista, coisa intuitiva para gente comum? Disfuncionalidade da eurolândia (falta de orçamento comum, falta de mutualização da dívida, "independência" do BCE, seu mandato exclusivo para combater a inflação, falta de um emprestado d último recurso, etc.)? Austeridade expansionista? Falta de solidariedade dos contribuintes dos países centrais? Rejeição do pacto orçamental? Etc, etc? Não há uma palavra. 

Há por aí pela política muita gente que deve ter biblioteca mas que não sabe nada de finanças. “I rest my case”.
NOTA FINAL – Já o essencial desta entrada estava escrita, fui surpreendido com a divulgação de um “Roteiro para a convergência”. RT já me tinha habituado a uma atitude sistematicamente pesporrente, mesmo hostil, em relação aos partidos com quem, ao mesmo tempo, afirma veementemente querer fazer unidade. Agora, raia o inimaginável em termos de insensatez política e de arrogância, propondo um mecanismo (mais uma vez a sua tendência para o modo mais do que as coisas) concreto que mistura partidos e pessoas a título individual, com debates e discussões públicas, o envio aos partidos de um questionário sobre as suas divergências (está mesmo a falar a sério?), um fórum consultivo permanente entre partidos, tudo mediado pelo Congresso Democrático das Alternativas, a proposta de listas conjuntas para a europeias de 2014, tudo com calendário e número de rondas já definido por RT. RT escreveu a partitura, quer reger música, os outros que a toquem, à sua batuta. O homem é bom da cabeça? ou não sabe o que são processos políticos negociais? Como vai RT obrigar os outros partidos a tomarem isto a sério, vindo de um “partido” que ainda nem sequer é?
Ao menos, pela primeira vez, ficámos a saber que RT não está sozinho. O documento é subscrito por aqueles que RT tem chamado “nós” (claro que ainda não podem ser os que, depois da reunião do S. Luís, se começam a inscrever (o site não dá informação precisa, para além de algumas fotografias). Segundo o que vi no Facebook, “nós” são 6 pessoas jovens próximas de RT desde o Manifesto para uma esquerda livre, professores ou estudantes. Que eu saiba, sem nenhuma experiência política reconhecida.

Por muita estima e mesmo amizade pessoal para com pessoas que se têm manifestado interessados neste projecto, e porque não desejo de forma alguma mais perturbações no campo tão complicado da esquerda, tenho muita pena de dar muito pouco pelo sucesso do LIVRE. Mas vou esperar, para já a ver se se legalizam e, depois, conhecer os dirigentes e o programa. Por enquanto, encerro este folhetim.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Partido LIVRE (IV) - As obsessões

Na entrada anterior, tentei justificar um discurso crítico, bem na tradição de polémica da esquerda e das forças progressistas – na política, na filosofia, na cultura, nas artes – embora hoje desvalorizada pela nossa natural brandura cordata (Rui Tavares, RT, diria que de moleza, como vem no Manifesto para uma Esquerda Livre; nisto concordo) de todos os que, muito compreensivamente, não querem que nada facilite o jogo da direita.

Explicada a minha posição, retomo as críticas, estritamente como contributo para a discussão do novo partido de esquerda que imagino, que não tem nada a ver com este LIVRE. É óbvio que não posso – e, mais importante, não tenho o direito – opor-me aos que o querem constituir. Mas isto torna-me mais fácil defender o que seria um partido em que eu me reveria. Infelizmente, nos tempos comunicacionais de hoje, é mais fácil afirmarmo-mos pela negativa, pela crítica, do que pela propositividade positiva. Não é minha culpa, mas devo ir na onda.

Antes, quero deixar bem claro que há anos que leio RT sempre com interesse, embora muitas vezes discordando, principalmente do que me parece ser alguma superficialidade, refugiada em coisas vagas, consensos e “lugares comuns de esquerda”. Mas, por exemplo, a sua coluna de hoje no Público é vertical e com ela alinho por inteiro. Não duvido de que ele se considere um homem de esquerda. Todavia, lastimo a sua evidente falta de formação económica, tão importante hoje em dia para quem quer ser político (eu sou leigo, mas não quero ser dirigente partidário). Julgo que há no pensamento político de RT muita infantilidade inconsequente. E, admitindo que possa estar a ser injusto, parece-me haver nele uma grande dose de vaidade pessoal e de vontade de protagonismo, sempre um veneno na criação de um projecto político necessariamente colectivo.

Também me preocupa que mais uma fracassada hipótese de baralhar e voltar a dar cartas à “esquerda” resulte nas mesmas mãos (mão, no sentido de jogo de cartas), com maior descrédito junto dos eleitores. Não se pode, democraticamente, combater a criação de um partido como o LIVRE, a meu ver perigoso e inquinado de graves erros originais, mas isto deve ser considerado como um desafio à criação de um verdadeiro partido alternativo de  esquerda, não de “verdadeiro partido socialista” (muito bem, façam-no, mas digam claramente que é na área de uma social-democracia desejavelmente liberta da prisão do neoliberalismo). A minha luta é na esquerda. Afastando-me dos erros dos seus actuais partidos, propondo coisas inteiramente novas, por exemplo aqui, ou aqui, ou aqui, ou aqui, ou ainda aqui, mas acrescentando mais esquerda à esquerda, não temperando o centrão com uns pozinhos de esquerda.

Ainda antes da discussão, no concreto, das propostas e princípios do LIVRE, que fica para entrada seguinte, chamo a atenção para aspectos gerais que demonstram, a meu ver, aquilo que eu e outros já criticaram em RT: uma grande tendência para o formalismo e para o institucionalismo. Interessam-lhe mais coisas de procedimento, a que dá qualidade essencial. Refere-se sempre mais aos quadros institucionais formais, principalmente os europeus, sem compreender como eles podem ser – e são, na prática – ultrapassados pelas relações de forças. É estranho, num historiador.

Este institucionalismo manifesta-se no projecto LIVRE por duas obsessões de RT, que, por não me interessarem muito e serem matéria de principal interesse dos motivados nesse partido, não vou desenvolver: as primárias e as candidaturas de listas de cidadãos (erradamente chamadas de candidaturas independentes – só falta chamarem-lhes “candidaturas livres”). Parece um leit-motif de RT, o centro do seu pensamento político, como já vem, na sua privilegiada actuação manifestante, no Manifesto por uma Esquerda Livre e no Manifesto pela Democratização do Regime (o tal que até tem a assinatura de Veiga Simão).

Não concordando inteiramente com o seu artigo, creio que Francisco Louçã, para só falar de intervenções recentes, colocou bem a questão das primárias. Afinal, concluo de muitas reacções que, por um lado, há pessoas que, naquela atitude de quase justificação do seu pendor para um PS utópico, têm de criticar o PCP e o BE seja pelo que for, inclusive por esse direito dos seus membros de escolherem como quiserem os seus dirigentes. Eu dir-lhes-ia que na minha casa mando eu. 

Por outro lado, alguns membros do PS (que, curiosamente, já tem eleições directas) foram defraudados na expectativas que tinham nas primárias. Com todo o respeito e amizade, acho que foram ingénuos ao defenderem esse processo. Sem precisar de me alongar, as directas ou primárias são ganhas por quem domina o aparelho, a comunicação interna e externa, as perspectivas de colocação de boys. Que o diga o meu amigo Eurico de Figueiredo, que nem conseguiu acesso aos ficheiros de militantes. E porque é que RT não se interroga sobre o facto de terem sido o PSD e o CDS os primeiros partidos a abraçarem entusiasticamente essa coisa das primárias?

Quanto a primárias abertas a toda a gente, são uma aberração. Se eu quiser ter uma palavra a dizer no PS, por exemplo, quanto à escolha do seu líder, o que tenho a fazer é inscrever-me. Ter o bolo e comê-lo é que não pode ser. Parece que o LIVRE não propõe as primárias abertas. Mas, em vez disto, como se vê no seu sítio da net, tem uma proposta estranha: membros de pleno direito, eleitores e elegíveis para cargos internos; e apoiantes, também eleitores e elegívels para listas de eleições oficiais. Em ambos os casos, com direito a voto quanto aos documentos fundamentais do partido. Desculpem, mas não percebo.

Segundo leit-motiv. As listas não partidárias têm sido objecto de muito discussão, até académica. Nunca vi RT contribuir para essa discussão, a não ser em artigos meramente de opinião, panfletária e subjectiva. Mesmo em Portugal, a propósito de debates sobre a lei eleitoral, a discussão foi rica (veja-se o Diário da AR). Muito resumidamente, há largo consenso em que só são essencialmente compatíveis com a organização em círculos uninominais ou de pequena dimensão, que colocam questões importantes de transparência (que programas? nacionais ou tribais?), de dúvidas quanto ao financiamento, etc. É muito bonito agitar bandeiras na moda, mas é preciso sustentar as ideias que estão por detrás (será que há ou é só fogacho?).

Como disse, estas são questões bastante formais, de funcionamento, importantes para quem se desgostou com o funcionamento de partidos por onde andou, mas para mim secundárias. Muito mais importantes são outras duas “obsessões estruturais” de RT: o europeísmo utópico e a noção de “esquerda livre”.

Quanto à crença na fada europeia, já disse muito e não vou maçar mais os leitores. Vou pôr os meus ovos de cuco no ninho do PS. Faço notar apenas que, consultando a nossa imprensa, cada vez mais se vê o crescimento do eurocepticismo, mesmo na área do PS. Vejam sempre que puderem as intervenções de João Galamba no parlamento. Leiam Pedro Nuno Santos e, no Expresso, Pedro Adão e Silva. Até, agora, a nova série de artigos no DN de Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho. Tudo gente na área do PS, todos descrentes da luta por uma reconversão do projecto euro. E isto para já não falar da surpreendentemente óptima entrevista recente de João Cravinho, “Sem reestruturação da dívida ficamos esfolados”.

Mais importante é outra obsessão de RT, a libertação da esquerda. Fala sempre de uma “esquerda livre”. Talvez eu seja muito primário, mas não consigo entender o que isto é. Será que livre é não dar qualquer importância a compromissos eleitorais por que se foi eleito? Será que livre é não querer obedecer a qualquer disciplina partidária? 

Tenho alguma dificuldade em entrar nesta discussão porque há muitos anos que não conheço o funcionamento interno do PCP – terão ultrapassado o “centralismo democrático” leninista, que só aceito em situação de luta clandestina? – muito menos o do BE, que não conheço de todo. Quanto ao PS, vejo o que transparece da informação, a luta feroz entre candidatos a líder, a influência do carreirismo e do aparelho nessa luta, o jotismo.

Em todo o caso, acho arrogante e próprio de uma personalidade tão transparentemente analisável psicologicamente como a de RT que se insista tanto numa acusação de “complexo de Estocolmo” a tantos e tantos militantes e activistas de esquerda. Eles e elas, gente responsável, empenhada, não merecem ser assim insultados por uns peralvilhos com muito menos tempo e esforço de trabalho político do que muitos desses activistas "não livres". Mas também me ocorre agora que não deve ficar de fora quem, por eleitoralismo, foi buscar um não credenciado RT para vedeta nas eleições europeias. Pagou.

Ser mais livre é o essencial para diferenciar um nova esquerda das atuais formações de esquerda? Em quê, de substantivo, de programático em termos nacionais e sociais? Não sei, porque não sei bem o que é ser livre uma (e numa) organização particular e isso pouco interessa ao homem comum, "eles que se entendam lá no partido, é coisa deles”. Uma organização é tão livre quanto os seus membros queiram que ela seja.  Os de fora não têm nada com isso, a não ser nas suas projecções psicológicas e nas suas frustrações. No meu caso, a organização tem 100% de liberdade, porque é a organização de mim sozinho. Palpita-me que isso tem muito de coisas grupais que afligem companheiros meus, mas que não são problema meu. 

E o que são “partidos reaccionários”, de que fala RT? A acusação parece-me tão gravemente insultuosa que me dispenso de dizer mais alguma coisa, até ver mais esclarecida esta questão por RT e seguidores. E depois sou eu que sou polémico e agressivo? Fico com a impressão de que RT e outros consideram a política como uma coisa de elites, de direcções partidárias, falando só uns com outros. Entre eles, atacam-se ( mas depois sai um café, em S. Bento ou em Estrasburgo), nem que seja com coisas ridículas de quem foi ou não fundador do BE, a motivar roturas partidárias, discussão de "tias". Mas esquecem que, muitas vezes, com isto, estão a insultar milhares de pessoas generosas e honestas que não merecem estar envolvidas nestes joguinhos de galinhotes com sensibilidades delicadas.

Lamento ter de dizer, uma vez mais, que RT e alguns dos seus companheiros próximos, mais à sua imagem e semelhança, sendo indiscutivelmente bem intencionados na sua posição que julgam de esquerda, são exemplo da mais evidente arrogância de intelectuais pequeno-burgueses, com um enorme ego afagado pela comunicação social, com muita infantilidade e incultura política, com falta de informação e de reflexão em economia política. Leia-se só o espantoso primeiro parágrafo do tal Manifesto para uma Esquerda Livre: “Portugal afunda-se, a Europa divide-se e a Esquerda assiste, atónita”. Onde paira etereamente esta gente? Na esquerda deles? A minha não assiste, atónita.

NOTA – Um amigo chamou-me ontem a atenção para a injustiça de se pensar que o LIVRE é um instrumento fulanizado para a eleição de RT como eurodeputado. A prova seria que ele foi proposto como candidato independente pelo PS e não aceitou.

Não é bem verdade. Entre uma vaga alusão de Francisco Assis num artigo de jornal e um convite oficial do PS vai grande distância. Depois, RT não é estúpido e sabia que já tinha ultrapassado, em escritos, a linha vermelha que permitiria isso sem o penalizar gravemente em imagem.

No entanto, vou ter em conta este reparo e não falarei mais de qualquer influência de projectos pessoais de RT nesta criação do LIVRE.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Partido LIVRE (III) – O mito da convergência

Começam a aparecer as críticas aos críticos, como eu. No essencial, resumem-se a considerar que, para além de alguns “ataques soezes” que espero que não me sejam injustamente imputados, os críticos estarem a fazer o jogo da direita, mais uma vez contribuindo para a falta de entendimento à esquerda, um mito a cumprir seja a que preço for, seja com que cedências for.

Uma destas críticas aos críticos é feita hoje no Público por José Vítor Malheiros. Pela grande e velha estima que tenho por ele, julgo que partilhada, e pela qualidade do que escreveu hoje – embora errado, a meu ver – merece resposta minha mais destacada e ao seu nível de qualidade. Fica para amanhã, enquanto hoje vou ao geral sobre este tema.

A direita é muito mais unida do que a esquerda, é inegável. Mas esquece-se que a direita tem a tarefa facilitada. Defende os seus interesses e essa defesa não depende essencialmente de posições ideológicas diferenciadas, basta ter o poder. Para ter o poder, pode facilmente aliar-se, inclusivamente com sectores seus marginais captados (social-democracia) e garanti-lo distribuindo com habilidade os benefícios do poder por um largo aparelho burocrático-partidário de peões do seu exército.

Perguntar “porque é que a direita se entende e a esquerda não” é coisa sem senso. Que a esquerda se pode e deve entender tacticamente, é indiscutível (e, mesmo assim, há dificuldades, como agora em relação à política austeritária e ao euro). Defender que a esquerda se deve entender estrategicamente, como visão do futuro a orientar o presente, é tolice, é misturar esses dois planos bem distintos. É não perceber que, na acção e na consciência, na história e nas ideias, os avanços se fazem por roturas e debates, não por consensos. Nem preciso de invocar Marx, basta Hegel. Ou até o meu padroeiro Epicuro.

A esquerda real é luta e, inevitavelmente, conduz essa luta com projectos, senão era oportunista e inconsequente. Por isto, desde à partida, é difícil haver entendimento com sectores ditos de esquerda que já estão instalados no sistema. Já houve experiências históricas importantes de aliança, como as frentes populares dos anos 30. No entanto, anote-se que foram defensivas contra os fascismos e que os partidos sociais-democratas estavam claramente no lado antifascista. Também tiveram o seu lado ofensivo, por direitos sociais populares, mas, repito, numa época em que a social-democracia nem sonhava que um dia havia de capitular perante o capital. E nem foi recentemente, com Blair e a terceira via ou com Schröder e o Hartz IV. Foi logo nos anos 50, com a grande viragem de Bad Godesberg.   

Mas vamos admitir que pode haver esperança de chamar os sectores moderados de centro-esquerda a projectos de luta comum, guinando eles à esquerda, como muitos gostam de os situar. E vamos também adoptar, como princípio essencial, que, se isso acontecer, os projectos têm de ser confrontados e debatidos fraternal e lealmente.

A questão crucial é que isto hoje não se esgota em palavras e slogans. Em próximo texto, desenvolverei isto, mas aqui fica, para que se perceba o que é o dilema da “unidade”, ou convergência, ou o que se queira chamar, o problema inultrapassável. O PS proclama a luta contra a austeridade, contra os ataques ao Estado social, pelo crescimento económico, pela competitividade da economia, com base nas exportações. Sem dúvida, toda a esquerda deve convergir nestas posições indiscutíveis. 

Mas, sabendo que, na zona do euro, não se pode criar dinheiro por emissão clássica ou por “quantitative easing”, que é preciso afrontar os poderes europeus para nos comprometermos com endividamento (e que não é desejável, além de certo ponto), que não podemos usar a desvalorização da moeda nem a taxa de inflação, o PS sabe bem que as medidas que propõe são inexequíveis no seu quadro de posições políticas e compromissos. Neste sentido, a direita tem razão: não há dinheiro. Claro que não há dinheiro se obedecermos às regras troikianas secundadas religiosamente pelo tal “arco da governação”.

Pelo contrário, a esquerda diz, com algumas diferenças entre os partidos e grupos de opinião: "concordamos com tudo isso, facilmente nos entenderíamos com o PS, mas isso só é possível com reestruturação da dívida, com possível suspensão do seu serviço e – hipótese não definitivamente assumida mas a não excluir de todo – com a saída do euro".

Esta oposição não é irredutível? Digam lá os defensores do mito da convergência como a resolvem. Sem o dizerem, não têm autoridade, muito menos para se arvorarem como criadores de um partido de esquerda novo, diferente, cheio de ideias salvadoras. E não me digam, como ainda há dias li um deles, que isto é coisa de economistas (que eu até não sou) a esquecerem-se da política. O que é hoje, nesta crise de viragem do capitalismo, uma política de esquerda sem fundamentação no entendimento do que é hoje a crise do capitalismo? 

Já desde há bastante tempo, mas agora mais com as notícias (bem acarinhadas pela comunicação social) sobre o LIVRE, que bom número de pessoas, não nego que bem intencionadas e de coração na esquerda mas talvez um pouco irreflectidamente, adoptam uma posição ligeira. “Os partidos de esquerda não se entendem, não conseguem uma plataforma comum” (ou mínima, ou lá o que seja). Façam um exercício, num velho caderno de significados do meu tempo de escola, com duas colunas, e para já em relação ao PCP e ao PS, mas depois em relação ao PCP e ao BE, assim como ao BE e ao PS. Num lado e no outro, as respectivas propostas sobre cada problema (leram-nas? se não, toda esta discussão é sobre preconceitos). Ajuizem da possibilidade lógica de um entendimento mínimo e, já agora, marquem de um lado ou do outro a vossa própria concordância. Talvez tenham uma surpresa.

Sem qualquer intuito de ofensa, considero que o que mais se vê por aí, a arrumação fácil e apressada dos partidos em definições impressionistas e em construções de cassete para efeitos mediáticos, revela fragilidade ideológica e falta de esforço de reflexão. (NOTA – Já estou a imaginar, “mas ele não faz o mesmo em relação ao PS? Antes, digam onde não me esforço por justificar a minha crítica à rendição da social-democracia ao capital, nas suas formas liberais mais exacerbadas)

Outro aspecto desta obsessão actual com a convergência e com o consenso é a sua relativa falta de correspondência à cultura e tradição da esquerda. Em épocas em que a esquerda tinha grandes homens, Nunca as polémicas e a afirmação das ideias prejudicaram significativamente as lutas comuns. E, muitas vezes, os termos da crítica foram de enorme dureza. Já leram “A Crítica do Programa de Gotha"?

Mesmo entre nós, sempre houve grandes polémicas, políticas, literárias, ideológicas. Volto a sugerir um refrescamento de leituras, “Bom Senso e Bom Gosto”. Também muitos debates magníficos que se podem ler nos diários dos sucessivos parlamentos. Será talvez coisa de hoje de uma brandura dos nossos costumes de que não nos conseguimos livrar. Não lêem noutros lados vivíssimas polémicas? Basta ler, por exemplo, o blogue do bem assertivo Paul Krugman. E assertivo não quer dizer agressivo. 

NOTA 1 – Como esta entrada fala muito de crítica, agressividade, assertividade, aproveito-a para deixar bem claro que tenho o maior sentido de camaradagem e de respeito por quase todos aqueles a quem me dirijo e que se têm manifestado a favor de teses que critico. Se duvidasse da sua generosidade e posição de esquerda, não estava a esforçar-me por aqui debater com eles, frontal e amigavelmente, esta situação que vivemos. E a denunciar sem receio quem merece que se diga que “o rei vai nu”.

NOTA 2 – Perguntaram-me: “mas se achas que o PS não é esquerda, como o vais situar, de forma a que a pessoas percebam?”. Simplesmente, para facilitar e como muitas vezes se escreve, como centro-esquerda (o que quer dizer ala menos conservadora de um centro comum, centrão, pântano, “marais”). Estão satisfeitos?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Partido LIVRE (II) - O posicionamento

Uma imagem explicativa da dialéctica é a espiral. Andamos em circunferência, voltamos a andar e tudo parece o mesmo, na horizontal. Afinal, a cada volta, subimos também na vertical, ganhamos nova qualidade, a circunferência de cima já não é igual à de baixo. A perspectiva antidialéctica do lugar dos partidos é o que chamei de perspectiva geográfica. Não quero um partido no mesmo plano dos outros, quero num plano superior, a outra volta da espiral. Pelo contrário, a visão de Rui Tavares (RT) e do seu LIVRE é esquemática, mecanicista, antidialéctica (já agora, antimarxista, mas isto de marxismo não é coisa obrigatória para quem quer falar de esquerda, embora não fizesse nada mal).

Ainda por cima, RT confunde-nos com uma proposta estranha de posicionamento geopartidário, o de colocação “no meio da esquerda”. É difícil de perceber, quando ele certamente acha que há três partidos de esquerda, o que, para fazer um meio entre eles, obriga a colocá-los em triângulo. Enfim, mais uma coisa retoricamente pateta. Não digo mais porque a morena, meu grilo falante, me diz sempre "dá cabo das asneiras mas não te rebaixes a adjectivá-las". Mas, perdoa, não resisto, lá que é coisa tonta é! E também escrita balofa, de discurso de tudo e de nada, como “entendemos como nosso dever a procura e a realização de convergências abertas, claras e transparentes, para criar uma maioria progressista capaz de criar uma alternativa política em Portugal e na Europa.”

Na prática, porém, vê-se facilmente que o seu posicionamento é outro. Nunca mais fala do vértice PCP, só dos outros. “Sinto-me bem com muita gente do PS e do BE, da ala mais moderada do BE e da ala mais à esquerda do PS”. Não se pode ser mais claro. Mas isto diz alguma coisa a todos os muitos eleitores confusos, não representados? Querem eles saber do que é o espaço geopartidário das elites partidárias ou dos órfãos dos partidos? Ou dos eternos oscilantes da ala esquerda do PS, que se passaram para o BE e que agora não sabem onde estão? Isto é o problema estrutural dos saudosistas sociais-democratas, por quem tenho simpatia como companheiros de luta, mas a quem só posso dizer “assumam-se, lutem”. 

Tenho muita estima pela social-democracia europeia dos anos 50 e 60, que mais não fosse pela solidariedade que lhe devemos, bem como os movimentos de libertação das ex-colónias. Mas que o PS não é social-democrata, que, na onda blairiana da terceira via adoptou o neoliberalismo, é coisa indiscutível. Para mim, o LIVRE quer reocupar o espaço perdido da social-democracia em Portugal.

Muito bem, mas assuma-se. Não vai estar no tal estranho meio da esquerda, nem no “espaço moderado” do BE, vai querer é ser o “verdadeiro partido socialista”. Veremos o que isto vai dar. Mas, meus amigos, sejam honestos. São próximos do PS, sempre foram, estiveram envergonhados pelas socratices e pela moleza de Seguro, não venham agora dizer que querem alguma coisa distinta do PS. Querem, de facto, é coisa que lhes permita sentarem-se sem problemas à mesa de conversa com o PS.

Também os seus apoiantes. Tenho recebido muitas mensagens sobre este tema, numa lista de e-mail  remanescente de um grupo político entretanto desaparecido. Com todo o respeito pelo seu direito de opinião, noto na maioria uma grande hostilidade ao PCP e alguma frustração em relação à eficácia do BE (perder metade dos votos é coisa difícil de aceitar por revolucionários de entre hoje e amanhã, sem sentido do tempo  histórico). 

E tenho memória de elefante. Esse grupo, de certa forma herdeiro da campanha Alegre, foi desafiado por mim e outros a avançar para partido, o que não venceu. Creio que, dos oponentes, alguns estão agora neste projecto “livre” de aproximação ao PS. Justifica-me pensar que é o que sempre quiseram. Também um movimento importante, que na altura contactei e que não estava disponível para um novo partido, a Renovação Comunista. Está nesta coisa de RT?

Julgo que vale a pena lembrar o PRD. Até vou defender o PS, contra o que disse sobre a sua degenerescência e a necessidade de um “verdadeiro partido socialista”. Sem nos retermos na tentativa da ala Manuel Serra, o PRD foi a grande experiência de enfraquecimento propositado do PS. O próprio PCP acarinhou-o. Mas foi não pensar que um partido sem matriz ideológica sólida e consequente, feito de protesto e de negação, sem programa, centrado numa figura mediática, não iria soçobrar à segunda, como aconteceu. O proposto LIVRE não tem todas as características populistas do PRD?

Continuarei a escrever.

Partido LIVRE (I) – Introdução

Vou começar a falar do projecto de novo partido, LIVRE (porquê maiúsculas, se não é um acrónimo?), hoje na generalidade, depois no concreto. Hesitei muito antes de escrever esta entrada. Estou certo de que a grande maioria das pessoas que está interessada na criação do LIVRE é gente de esquerda e que tem genuína intenção de contribuir para a luta contra a hegemonia da direita que se está a impor. Têm pleno direito de formar o partido que quiserem, sem interferências. Assim, eu não devia dizer nada sobre ele, deixar as coisas falarem por si.

No entanto, quando gente de esquerda com perspectivas diferentes deseja um novo partido, desde descontentes com o PS até desiludidos com o BE, mas também pessoas como eu, Jorge Bateira, José Manuel Correia Pinto, José Vítor Malheiros, João Carlos Graça, Eduardo Milheiro, etc., que têm teorizado, julgo que em termos inovadores e sem conciliação com uma visão de esquerda-pântano, sobre a necessidade de nova intervenção política – novo partido e muito mais – esta acção é comum e legitima o debate, porque iniciativas erradas – a meu ver – podem prejudicar a luta comum. Podemos estar, em termos de calendário de democracia institucional, num momento irredutível no curto prazo. O que tiver de ser criado, em favor da esquerda, deve ser muito bem criado.

Falando ainda dos interessados num novo partido, parece-me que a situação é envenenada por haver um contágio negativo de descontentamento. Um projecto novo ganhador faz-se com gente solta, não com descontentes da situação actual que não conseguem vencê-la, nos seus partidos (claro que principalmente PS, parece que com muitos seus militantes na reunião do S. Luís). Afinal, talvez seja a estes que, habilidosamente, Rui Tavares (RT) apela falando de uma “esquerda livre”. 

É transparente a intenção de RT de captar descontentes do PS. É coisa velha, a criação do “verdadeiro partido socialista”. E sempre foi, mas muito mais nos tempos que correm, o álibi para muita gente na órbita do PS mas que tinha vergonha de se aliar ao "socialismo na gaveta". Não tenho nada contra os orbitantes do PS, a não ser quando, como me aconteceu com o namoro do grupo Pina Moura ao MDP a cuja direcção eu pertencia, havia por detrás evidente oportunismo interesseiro. Mas também nada tenho a ver com a questão interna do PS sobre a sua orientação social-democrata perdida e a sua rendição ao ordoliberalismo ou, pior, ao mais retinto neoliberalismo. É outra luta, na área do centro, que não tem a ver com esta, como bem me escreveu, há dias, Eurico Figueiredo. 

(NOTA – E não me venham dizer, como um entusiasta do LIVRE, que estas coisas que estou a escrever  são fantasias de teóricos, que não chegam aos que “não têm bases intelectuais”. Isto cheira-me logo a demagogia, a tartufismo, a desprezo pelo povo naturalmente “inculto”).

Mas também conheço pessoas que, com sólida consciência dos erros estruturais do PCP, não votam nele, mas só por isto, ao mesmo tempo que não concordam com a traição socialista contra os ideais e prática da tradicional social-democracia. Procuram uma esquerda nova, mas mesmo nova, moderna, mas não uma reconstrução de jogos antigos, sabendo muito bem ver como coisas como o LIVRE são velhas músicas orquestradas de novo. Votam branco.

Uma das minhas primeiras reservas em relação ao LIVRE é de ordem ética. Sou isento, porque, sendo estrénuo defensor da criação de um novo partido de verdadeira esquerda, ninguém poderá suspeitar de que tenho interesses pessoais investidos. No remanso de uma boa reforma, de reflexão e de escrita livre (livre é isto, RT, não o seu frenesim político), o que me faltava era pensar em protagonizar em qualquer grau um projecto político. Não tenho nenhum tacho a perder, não vejo a curto prazo acabar-se uma mordomia em Estrasburgo.

Mas, se me quisesse envolver, certamente que não construiria à minha volta e com mediatismo um projecto político. Seria sempre colectivo. E claro que nunca eu assumiria um papel de liderança num projecto tão conotado com eleições – as europeias de 2014 – em que precisaria de garantir um emprego de grande gosto e proveito. 

Este partido nasce irremediavelmente contaminado com a fulanização. (NOTA – o que tem a vantagem de, mesmo antes de se conhecer bem o que pretende, ser legítimo criticá-lo em função das opiniões de RT). Por isto, sensatamente, disse Ana Benavente que “isto não está suficientemente maduro e não podemos estar aqui só com as nossas decepções. Tornar esta iniciativa como a iniciativa do Rui Tavares fragiliza-a, tem de ser um colectivo mais forte”.

Como escrevi há bastante tempo, RT tem condições muito favoráveis para impulsionar a criação de um novo partido. Como eurodeputado, tem facilidades estruturais e recursos, tem relações internacionais. Em Portugal, tem protagonismo mediático e certamente boa rede de relações com os media, como se vê por estes dias de notícias sobre o seu partido. É pena que não os consiga pôr ao serviço de um projecto colectivo, dialogante, humilde. E, já agora, de esquerda coerente e firme.

O que mais me irrita em RT é o seu tartufismo ou fariseismo. Com a boca sempre cheia de públicas virtudes, esconde os vícios privados (obviamente que, quanto aos verdadeiramente privados, tem o direito de os reservar). Apontando sempre o dedo aos manipuladores partidários que não permitem uma “esquerda livre”, está a fazer exactamente o mesmo. Isto é oportunismo e desonestidade intelectual. O que me espanta é que leve tanta gente atrás.

RT não vai além da mediocridade, um produto da máquina mediática de fabricação de opinadores. A história da sua saída do grupo europeu de deputados do BE é ridícula. Em qualquer país com alto nível de qualidade intelectual tê-lo-ia destruído. Eu não gostaria nada de ver tal pessoa a engrossar a mediocridade da nossa vida partidária.

A esquerda, e a política em geral, está a precisar de um homem grande, com visão, com sentido da história e do estado, eticamente irrepreensível. Um Cincinato. Obviamente, RT não o é. Só isto me bastaria para não desperdiçar o meu tempo calando-o com estas suas iniciativas, como já foram os seus deploráveis  manifestos. Não me calo porque tenho deveres para com toda a gente generosa que está a ir nesta coisa.

Continuarei a escrever sobre isto.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Situacionismo

Vou falar de situacionistas, a propósito da homenagem a Eanes que se prepara e que é, a nível superior e de personalidades, uma expressão do centrão, do pântano, do tradicional “marais” à francesa, como quiserem. Deixo de fora os militares. A comissão promotora faz lembrar os anos do fascismo em que a unidade obrigava à maior abrangência. Só como exemplos, no campo de centro pantanoso (condescendo com centro-esquerda), Artur Santos Silva (BPI e Fundação Gulbenkian), António Rendas (presidente do Conselho de reitores), João Proença (UGT), Pinto Monteiro (ex-PGR). Mas também Adriano Moreira, Belmiro de Azevedo, Henrique Monteiro (ala direita do Expresso). E, sem que eu perceba bem o que querem, Manuel Alegre e António Nóvoa (estrela ascendente nas expectativas políticas de renovação).

Todos pessoas a que chamo de situacionistas, como explicarei. No entanto, tratando-se de uma homenagem a una personalidade com respeito granjeado em muitos sectores – eu próprio o considero um homem sério, só não aceitando bem que tenha sido mandatário ou coisa que o valha de Cavaco – admito bem a amplitude deste leque de promotores. O problema é que me palpita que isto ainda vai dar num movimento de “salvação nacional”, sidonista, a meter no mesmo caldeirão grupos distintos de pessoas politicamente convencionais, e que, embora politicamente bem intencionadas, podem reproduzir o que foram as confluências de republicanos descontentes, em 1926, à volta da ditadura militar.

Antes de discutir esse situacionismo, vou lembrar dois manifestos, porque estes notáveis, senadores e gente de elite, gosta muito de manifestos. Não dá muito trabalho e afirma-os politicamente, até para todas as veleidades de intervenção messiânica.

Em 2011, dois “senadores” – a mais viciosa e ridícula dessas formas de se ser situacionista – Soares e Sampaio, promoveram a divulgação de um manifesto, “Um Compromisso Nacional”, que era uma conciliação inequívoca com a política de austeridade, na altura configurada no PEC 4, antes do memorando com a troika. 

Devem ter havido muitas pressões para a assinatura, como me contou um amigo subscritor. A lista foi enorme, de todos os bem pensantes. Como na de agora, a elite: universitários, empresários (Alexandre Soares dos Santos e Belmiro de Azevedo), gente conotada com a esquerda independente (António Nóvoa, Boaventura Sousa Santos – que depois foi arengar aos acampados do Rossio! – Joaquim Canotilho, José Carlos Vasconcelos, Júlio Pomar, João Caraça, José Mattoso, Octávio Cunha, Rui Vieira Nery, etc.). Também membros conhecidos de partidos do “arco da governabilidade”, como diz Portas: António Vitorino, Maria João Rodrigues, Miguel Veiga, António Pires de Lima, Eurico Figueiredo. Ao lado, uma longa lista de gente que flutua na etérea superioridade da sua pessoal política “isenta”, indo a todas, como João Lobo Antunes, Freitas do Amaral, ou então de direita retinta, como António Barreto, Maria de Fátima Bonifácio ou, pasme-se, Miguel Poiares Maduro.

O charme discreto da burguesia!

Lembro ainda outro, mais pobrezinho em objectivos e conteúdos, “Manifesto pela democratização do regime”, promovido pelo infantilmente sempre agitado Rui Tavares. Reflecte duas das suas tontas obsessões políticas, a da obrigatoriedade de primárias abertas a todos os cidadãos, em que os simpatizantes do PSD interfeririam na eleição do líder do PS e vice-versa, e a da candidatura de listas de cidadãos a eleições legislativas. Recolheu uma lista de algumas dezenas de pessoas muito respeitáveis, mas misturadas com Veiga Simão!

Falei de situacionismo. Com risco de abuso, comparo com o que era “ser-se da situação” no salazarismo. Creio que não era obrigatoriamente ser-se fascista, saber-se da actuação da PIDE e concordar-se. Era, mais difusamente e como dizia um célebre decreto, estar inserido na ordem social e política vigente. 

Passa-se hoje o mesmo, em consequência da acção do aparelho de hegemonização ideológica. Oitenta por cento dos eleitores oscilam entre os partidos do centrão, mas partilham a noção de “ordem social, política e económica”, hoje traduzida, no essencial, na aceitação do programa das troikas, interna e externa. Na aceitação, como indiscutível, do capitalismo, da financeirização da economia, da globalização. Na aceitação da regra da sustentabilidade dom estado social. No respeito absoluto e acrítico pelas normas formais da democracia, sem percepção de como, na prática, ela aliena os cidadãos, mormente por meio da comunicação social, da publicidade e de todas as técnicas de marketing.

É a nova forma de se “estar na situação”. E, como antes, quem “está na oposição” é uma minoria, mas que julgo combativa e que não desiste – e eu fiz há dias 69 anos!

Na situação antiga, havia a elite da união nacional e a massa desdenhada. Hoje, há novamente outra elite, a pairar sobre a massa desdenhada. Mas não se iludam, não é a pseudo-elite dos agentes políticos, dos funcionários do sistema político. Enquanto que, ao nível da política institucional, do combate ideológico e das tensões sociais, as posições estão relativamente bem demarcadas, cria-se uma forma de superestrutura da superestrutura, relativamente indiferenciada e inorgânica, de uma elite bem-pensante, acima da “porcaria da baixa política”, com veleidades de transportar em si a missão salvadora de um interesse nacional abstracto.

Têm um discurso redondo, cheio de narizes de cera. Pior quando circulam no meio nacional e internacional, caricato e balofo, dos “homens de estado”, em que acabam por dar cabo – vide Sampaio – da sua história de jovens decididamente claros na acção política. Em muitos casos, proclamando a sua clarividência isenta, acabam muitas vezes por serem exemplos das mais óbvias contradições. Por exemplo, como é que se pode ser mandatário nacional de Sampaio e, nas eleições seguintes, de Cavaco?

Em alguns casos, até podem ter notável discurso de esquerda, como alguns gurus com um pé na rua e outro nos financiamentos do governo, mas depois alinhando nesse consenso de gente de elite, que se conhece, convive nos salões, não sabe o que significa aquilo que escreveu Graciliano Ramos, e que reproduzo figuradamente, no plano das ideias e dos valores sociais e políticos: “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas”.

O homem comum faz hoje as suas ideias de forma muito enviesada, pela comunicação social. Antes, não havia mediatização dos "intelectuais". Politicamente, valiam os partidos, que só projectavam para círculos muito estreitos a imagem dos seus intelectuais. Para as massas, a imagem era indirecta. Pior exemplo, certamente muitos simpatizantes comunistas conheciam de nome Redol, Soeiro, Lopes Graça, Pomar, mas sem alguma vez terem visto ou ouvido uma sua obra. Eram símbolos.

Hoje, diferentemente, há centenas de opinadores, "autoridades", que as pessoas conhecem porque lhes entram casa dentro, mas sói com títulos e credenciais que não lhes dizem nada. São professores, ora toma. A maioria das pessoas ainda considera como sagradas as instituições académicas, desconhecendo que algumas – nas ciências sociais, no direito, na economia e gestão – são fábricas de doutrinação ideológica dos nossos jovens. Alguns, felizmente, e como conheço, libertam-se, mas com grande esforço e, por vezes, tendo de ir reaprender em grandes escolas onde a ciência e os seus valores intelectuais ainda valem.

É a esse tipo de pessoas formatadas no pensamento dominante que poderá haver tendência, na crise do sistema partidário, para se ir buscar a solução. Até agora, como nos casos Papademous e Monti, foi-se aos economistas, mas pode a coisa ir para os “ideólogos”. Tenho receio dos iluminados e dos intelectuais típicos (sendo eu intelectual). Não vai ser fácil vermos aparecerem intelectuais orgânicos de uma reconversão das forças de esquerda, mas é factor histórico crucial do processo que estamos a viver.

Mas que não se confundam esses necessários novos ideólogos com os oportunistas videirinhos que estão a aparecer.

NOTA – Entretanto, é de se estar atento a dois possíveis desenvolvimentos desta homenagem (merecida) a Eanes: 1. um novo PRD. 2. uma candidatura de Eanes a PR.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A economia socialista (?) de mercado

Daniel Oliveira (DO) publica hoje no Expresso um artigo – “A China vai dar mais um passo, preparem-se para o terramoto” – em que analisa o significado de algumas medidas já conhecidas adoptadas pelo terceiro plenário do 18º Comité Central do Partido Comunista Chinês. O artigo é muito articulado e parece-me, como leigo, ter boa sustentação económica. No entanto, há uma parte, quase de conclusões, que me surpreende. Escreve DO: 
“Por mais que me esforce, tenho dificuldade em imaginar a imensa China, multicultural, multirreligiosa e sem qualquer experiência levemente democrática no seu passado, a viver em paz com uma verdadeira democracia pluripartidária e livre nas próximas décadas. Pode ser que a democracia chinesa nasça muito lentamente, como quase tudo naquela imensa nação. Pode ser que viva, durante muitas décadas, em regime semidemocrático. E que isso até se transforme num padrão para todos nós. Não nos é difícil imaginar um capitalismo global construído à custa do enfraquecimento das democracias nacionais. E a esta democracia de baixa intensidade a China até pode adaptar-se com alguma facilidade. 
Posso esforçar-me por imaginar que o aumento do consumo na China, o crescimento duma classe média poderosa e os novos padrões culturais que isso trará, mudarão os níveis de exigência democrática e social dos chineses. E que que isso venha a corresponder a um novo impulso à economia mundial e ao começo de uma nova era de esperança.”
O primeiro parágrafo citado parece-me realista, mas suscita-me algumas dúvidas. Como define DO um regime semidemocrático? Não me parece questão de somenos, porque DO admite que seja um padrão para todos nós. DO resigna-se, como inviabilidade histórica, a esse capitalismo global com semidemocracia ou tem alguma perspectiva de luta?

E em que sentido antevê DO que as previstas mudanças sociais na China, segundo ele (classe média poderosa e novos padrões culturais), mudem “os níveis de exigência democrática e social”? Para mais ou para menos? Se para mais, como imagino, isso é indiscutível que a classe média seja mais exigente em relação à democracia? E que classe média? Não tem nada a ver com estrutura de classes, principalmente num país já com décadas de socialismo? É homogénea? Tudo isto me parece uma simplificação perigosa se extrapolada para Portugal.

Que o desenvolvimento da “economia socialista de mercado”, do mercado interno e da procura na China seja, para DO, sinal de alívio da pressão competitiva chinesa que sofre boa parte da economia mundial, percebe-se. Mas que isto, fora de um quadro muito mais amplo de mudança; e, principalmente que, sem a clarificação do papel da China no movimento mundial – muito enfraquecido – das forças do socialismo, do trabalho, da paz, da solidariedade internacional, isso seja chamado, como DO aparentemente faz, de “nova era de esperança” é que, francamente me ultrapassa.

NOTA – Não consegui encontrar a fonte e posso estar enganado, mas julgo bem que DO já escreveu pelo menos um artigo centrando na “classe média” portuguesa as suas expectativas de mudança social e política. 

Repito, posso estar enganado, mas creio que o fez, como aqui refiro, numa perspectiva homogeneizante e esquemática de uma "classe média" inexistente e de forma alguma reduzindo a si a grande diversidade ideológica, cultural, de aspirações sociais, etc., das camadas de pequena burguesia tradicional, pequena burguesia dos serviços, funcionalismo, quadros assalariados, intelectuais desempregados ou precários, etc. Será para justificar uma base social de apoio para uma "unidade de esquerda" capaz de agregar toda uma massa amorfa de "classe média"?

Para quem teve bastante formação marxista, como presumo que foi o caso de DO, é estranho, ou então uma rejeição deliberada.