Vem no último Expresso, e ontem confirmada pelo I, a notícia da promoção por Mário Soares (MS) de uma sessão pública da esquerda sobre o tema “libertar Portugal da austeridade”. Fico perplexo e a minha opinião, até se clarificar este assunto, é muito ambígua. A primeira razão de perplexidade é não perceber bem o que é, com este imenso tema, uma “sessão”. Não me parece que possa ser mais do que uma ação simbólica e de propaganda, coisa a que me referirei adiante.
Também fico perplexo quando vejo que a promoção da iniciativa é assumida em pleno por MS, que falou com as direções dos partidos de esquerda e das centrais sindicais para se fazerem representar neste “grande encontro da esquerda” (o adjetivo é de MS). A notícia é omissa quanto a esse ponto essencial para a novidade e impacto da iniciativa. Vão os partidos participar, mesmo que por intermédio de representantes intervindo a título pessoal? Os nomes que constam da notícia são meia dúzia de personalidades que pouco adiantam para transmissão de um imagem pública de um encontro com algum significado interpartidário.
Não percebo também a forma atabalhoada de anunciar esse encontro. É fácil ver que foi o próprio MS a fornecer a informação. Ela não podia ser feita mais tarde, quando estamos a 10 dias do acontecimento. Mas que anúncio é este, feito por pessoa tão experiente politicamente como é MS, que não garante o principal objetivo do encontro – o encontro, mesmo que inconclusivo, dos três partidos de esquerda – que não dá alguma perceção do que será a reunião, de documentos preparatórios (se os há), de propostas, de intervenções de fundo (porque os nomes anunciados, se poucos para formarem assistência, são muitos para todos intervirem).
A ambiguidade da minha opinião prévia (depois verei) decorre de toda esta incerteza. Já tem havido tantas iniciativas e manifestos que, mais um menos um, mal não faz. No entanto, gostaria de ver maior convergência entre elas, embora provavelmente seja promissor já haver maior trabalho em rede, fora da rigidez partidária. Bons exemplos são a anunciada participação nesta iniciativa, com “vasos comunicantes” de influência noutros setores, de uma sindicalista (recente mas um caso de sucesso) como Rosário Gama ou de um “mestre de sapiência e cidadania” (claro que não estou a ridicularizar um muito caro amigo) como António Nóvoa. Já pessoas que vão a todas, que se movem em círculos de iniciados que nada dizem às pessoas, pouco adiantam para a clareza de uma iniciativa política.
Pesa a favor da minha eventual adesão o papel adicional que esta iniciativa pode ter, com outras, para fortalecer a pressão sobre Cavaco para a demissão do governo. Para imensa gente, é a prioridade política. É diferente daquilo que se sentiu e conduziu à expulsão do poder de Cavaco primeiro-ministro e de Sócrates. No primeiro caso, já enjoava a mediocridade e arrogância do cavaquistão, gente depois simbolizada pelo caso BPN. Sócrates era execrado e os eleitores expulsaram-no mesmo sem saberem se o depois seria melhor – e não foi. Com este governo é diferente, porque, com exceção de uma ditadura fascista extrema, não pode haver maior ruindade económica e social e maior degradação da democracia.
Acima de tudo, simpatizo com a possibilidade, mesmo remota, de MS começar a promover iniciativas, como esta, que “prendam” dirigentes socialistas, deputados, quadros partidários influentes, ao diálogo de esquerda, para já forçosamente muito superficial (repito: como me palpita que seja o deste encontro, e já não será mau) e à perceção de indisponibilidade para aquilo que muitos desejam, fora do PS mas também dentro: uma grande coligação PS-PSD, com ou sem CDS/PP.
Não custa crer que haja no PS quem prefira uma morte a mais longo prazo do que um suicídio a curto prazo. Falo da pasokização do PS, como na Grécia, recebendo o poder da direita para executar uma política só cosmeticamente diferente, condicionada na prática pela mesma subordinação aos ditames da troika e penalizando fortemente o PS nas eleições seguintes. Contra isto, e também a exemplo da Grécia (governo atual de coligação “centro-direita”), será forte para setores do PS a tentação de se ancorar num bloco central, com o apoio de Cavaco e da generalidade dos interesses económicos.
Esta perspetiva de combater desde já este cenário será reconfortante para os eleitores, que começam a impressionar-se com a rua mas que desejam alternativas de política convencional a curto prazo. Muitos não podiam já votar Sócrates, votaram Passos Coelho. Hoje estão arrependidos e não querem correr mais riscos com soluções de alternância sem alternativa. Todo este eleitorado com desejo de mudança (leiam-se as sondagens) precisa também de caras, mas duvido de que as que mais aparecem sejam as mais entusiasmantes para as pessoas menos politizadas.
Esta questão do protagonismo ou personalização tribunícia da política, nos tempos de hoje e em situação de crise com falta de perspetiva de alternativa político-partidária, é a primeira razão para o outro lado, negativo, da minha ambiguidade de opinião sobre esta iniciativa. Começando por MS, a iniciativa ganha ou perde com o seu protagonismo? Creio que é preciso estar-se muito longe do homem da rua para se ignorar a sua má imagem, hoje até agravada pelas contradições entre as suas opiniões atuais (havendo quem as qualifique em termos não políticos) e a sua atuação austeritária nas intervenções do FMI, no seu tempo. E qual o significado dos seus resultados eleitorais recentes?
Poderá argumentar-se que isso conta pouco, porque de qualquer forma este tipo de iniciativas não mobiliza a generalidade dos eleitores, reúnem só umas centenas de pessoas empenhadas. Que, às vezes, são fogachos, enfraquecendo iniciativa a iniciativa. Que, em alguns casos infelizes, são coisas instrumentais para acolher órfãos potenciais da vida política institucional ou para lançar candidaturas prematuras. Que o que fica, a cada vez, é o impacto mediático de momento. Então, o que falta fazer, como ação política mais eficaz, continuada e sustentada?
Como muitas pessoas de esquerda, porque não sou iluminadamente clarividente, estou convencido de que estamos a ver mais as árvores do que a floresta. Estamos a viver tempos confusos que favorecem um exagerado taticismo político, sem a perceção do processo histórico, com risco de degradação de valores, de falta de referenciais ideológicos, com incompreensão da grande mudança social, tecnológica e cultural das últimas décadas, desde logo das consequências da globalização.
Neste contexto, a menorização da importância de iniciativas deste género pode também ser levianamente perigosa, embora com justificação. Raramente como hoje é exigente a velha dialética entre estratégia e tática. Enfraquecida quase ao limite a democracia institucional (Estado e partidos), com ineficácia dos corpos intermédios, com hegemonia ideológica, informativa e cultural das forças anti-populares ou anti-trabalho, com o domínio da comunicação social, é patente a necessidade de articulação, em nova experiência, de movimentos novos de rua, protestativos, e de ações de assembleia, verbalizadas e propositivas. É a democracia que precisa de ser reinventada (discussão que, obviamente, não cabe agora aqui).
Por isto, não se leia este texto como menorizador da iniciativa promovida por MS. Pelo contrário, preocupa-me é parecer-me que está a ser candidata a fiasco. E fiasco é, entre muitos outros significados, qualquer coisa em que o eleitor não vê importância, que lhe entrou em casa entre duas notícias e que no dia seguinte já esqueceu, ao contrário do impacto das grandes manifestações de forças populares a que temos assistido.
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