quinta-feira, 16 de maio de 2013

A viragem alemã...

Vi-me hoje na obrigação de comprar o Público, que já há bastante tempo deixei de assinar. No espaço de acesso livre da página online li o título surpreendente “Alemanha junta-se ao coro de críticas contra a austeridade das troikas”. No pequeno texto acessível escreve Isabel Arriaga e Cunha, em Berlim, que “Responsáveis alemães demarcam-se da austeridade imposta aos países periféricos. Críticas são particularmente duras contra a Comissão Europeia e o seu presidente, Durão Barroso.” 

Adiante, “Já não é só em Portugal, Grécia ou Irlanda que as receitas de austeridade impostas pelas troikas de credores internacionais estão a ser criticadas: na Alemanha, as equipas da Comissão Europeia, Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI) também são acusadas de impor receitas erradas aos países sob programa de ajuda externa. Mais de três anos passados desde o início da crise da dívida europeia, os responsáveis alemães já estão mais do que habituados, e mesmo resignados, a serem apontados como os responsáveis pelas dificuldades vividas pelos países periféricos. Esta resignação não os impede, no entanto, de se demarcarem muito claramente do mantra da austeridade a todo o vapor que tem imperado na Europa desde 2010.

Tive dificuldade em acreditar e fui ler o artigo completo. 

– É certo que cresce o coro dos que põem em dúvida a razoabilidade político-social e a sustentação económica – teórica e empírica – da tese do austeritarismo gerador de crescimento ("austeridade expansionista") e redutor das dívidas, externa e pública. 
– É certo que já não são só economistas americanos que, na tradição europeia, chamaríamos de esquerda, que publicam diariamente artigos ou “posts” a alertar para o perigo que o austeritarismo representa para a Europa. 
– É certo que os gurus dessa tese neoliberal estão a ser questionados cientificamente, como Alesina e Ardagna ou Reinhart e Rogoff, estes últimos autores do livro apresentado por Gaspar, no meio de mais uma vaia. 
– É certo que o enorme coro doméstico do pensamento dominante batutado pela troika e por quem está por detrás dela ainda continua hegemónico, mas cada vez mais desafinado.
– É certo que mesmo Durão Barroso, ao contrário da notícia, já tem a lata de alertar para os riscos de uma austeridade que não deve ser excessiva (o que é uma austeridade não excessiva?) e que só se mantém fanaticamente nos carris da CE aquele senhor finlandês muito amigo de Gaspar e com expressão de baixa velocidade das ligações neuronais.

Mas a Alemanha, senhores? Não é só o governo, nem a Alternativa para a Alemanha, nem o apoio dos cidadãos a tudo o que seja postura egoista de “não pagamos para esses preguiçosos”. No extremo, o fervor neoliberal (ou ordoliberal, se preferirem) do Bundesbank e do seu jovem presidente Jens Weidmann põe em causa todo o sistema do euro quando sujeita ao Tribunal constitucional alemão a constitucionalidade do programa “outright monetary transactions” do BCE de Draghi (não é que eu ache que do OMT venha milagre, mas já ajudou alguma coisa).

O artigo fala de mil e uma expressões de crítica à troika e especialmemnte à CE por parte de responsáveis, dirigentes, ou só “Berlim”, sem alguma vez referir um nome. Não obstante, ficamos a saber que “os alemães” ou “a Alemanha” está em desacordo com a austeridade excessiva, que não perdoa a Barroso a hipocrisia de também a criticar, sendo o maior responsável, que está contra a taxa de IVA imposta à restauração grega e portuguesa, que apoia derrogações dos tratados para os países periféricos defenderem as suas exportações não competitivas, que critica a falta de avanço da união bancária (JVC - que a Alemanha tem protelado!), que apoia regras de facilitação do uso dos fundos estruturais para promover o crescimento da economia portuguesa, etc.

A mais poderosa economia europeia, potência regional indiscutível à boa maneira imperial, desavergonhada nos seus "diktats", está contra tudo isso ou apoia tudo aquilo, contra a troika e a CE, e é impotente para impor as suas posições? Como diz muito tipicamente um animador de festas que eu conheço, "estamos a brincar ou quê?".

Cada vez leio menos a imprensa portuguesa. Se calhar fico mal informado, porque o conteúdo deste artigo nunca o li no NYT, no Guardian, no Le Monde ou no El Pais. Cada jornalista tem as fontes que tem. Ou a capacidade crítica que tem.

P. S. (23:21) – Paulo Portas declarou hoje na Câmara de Comércio Luso-Alemã que “conseguimos” (quem?) não ceder à troika, que há limites e que a taxa sobre as pensões não será um objetivo estrutural. Conversa entre Portas e alemães, no dia do artigo do Público. Coincidência? Um novo amigo para Merkel? 

P. S. (15.5) – Um artigo de hoje no iOnline vai ao encontro da notícia do Público, dizendo que declarações nesse sentido foram proferidas pelo ministro Schäuble, o que, no entanto, é desmentido pela chancelaria. Na Alemanha, os ratos já começam a deixar o navio?

1 comentário:

  1. O artigo do Público cita sempre fontes que não identifica, o que pode suscitar questões sobre a credibilidade da notícia. Ninguém pode ser apontado como o “garganta funda” das alegadas críticas alemãs. Até pode ser que elas sejam verdadeiras, mas que visem somente o efeito de branquear a política alemã para os não alemães. Puro “spin” para consumo externo.
    Num pequeno livro publicado recentemente, intitulado “A Europa alemã  De Maquievel a “Merkievel”: Estratégias de poder na crise do euro”, o sociólogo Ulrich Beck escreve algo que me parece importante: “Muitos veem em Angela Merkel a rainha não coroada da Europa. Se perguntarmos qual a origem exata do poder da chanceler alemã, descobriremos uma marca caraterística da sua ação: a sua tendência para não agir, não agir ainda, agir mais tarde  para hesitar. Merkel hesitou desde o início da crise da Europa e continua a hesitar até hoje. (…) O verdadeiro interesse de Angela Merkel não está em salvar os países devedores, mas sim ganhar as eleições na Alemanha. E, para tal, como escreve a revista Der Spiegel, tem de “proteger o dinheiro alemão, para preservar a competitividade da Alemanha nos mercados mundiais e, além disso, eventualmente, salvar a Europa”. Ela faz uma política interna europeia que serve sobretudo à preservação do poder nacional.” (p. 70).

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.