domingo, 25 de setembro de 2011

A maioria tem sempre razão? (IV)

Numa série de entradas anteriores, escrevi (I), escrevi (II), escrevi (III) que a tese de que a votação esmagadora (80%) na troika interna vassala da troika externa justificava, como “razão”, a obediência aos memorandos, à política de austeridade, ao “temos de obedecer”, “não há alternativa”. Mostrei que mesmo esse dogma a que nos tínhamos de sujeitar estava em mudança, ocultada pelo nosso grande irmão governo-banca-media-academia. Mostrei que esse irmão se sujeitava a um poder hegemónico norte-europeu ignorante, que envergonha os pais europeus. Acusei, camonianamente, que “também dos Portugueses / Alguns traidores houve algumas vezes”. 
De nada disto me retrato. Apenas me ficou a dificuldade de concluir como prometido a série de reflexões, porque os acontecimentos, os sinais de desnorte dos dirigentes europeus, os sinais de primarismo político dos nossos governantes, me iam dificultando uma síntese que não me envergonhasse inteletualmente, por esquematismo.
Há dias, na senda da tal razão da maioria, ouvi o ministro Álvaro dizer que “não se devem discutir as medidas do governo, foram aprovadas por 80% dos eleitores”. É uma enormidade política, deturpação da democracia, desculpável a quem apenas se notabilizou por uns livros engraçados, politicamente fracos (falo, por exemplo, do que ele gosta de discutir e que eu conheço bem, a política da educação superior) e que estão em contradição flagrante com o que é hoje a sua posição política. A cada um o seu sentido de coerência e integridade.
Essa afirmação fez-me saltar, "agora é que vou escrever", contra o tal adiamento de escrita. Também entrou na decisão, como ponto crítico, a questão da dívida da Madeira, afinal um aspeto muito visível, na prática, da questão que tenho posto: “a maioria tem sempre razão?”
E o que podemos aprender com o caso vergonhoso da dívida madeirense e da sua ocultação? Os alemães não protestam com a ocultação da dívida grega? Mas nós não somos gregos! E agora não somos madeirenses, ou os madeirenses não são portugeses, ou os açorianos não são madeirenses, ou os algarvios não são minhotos, que confusão! E de egoísmo em egoísmo eu acabo por dizer que não sou o meu vizinho do lado direito. E não há hoje eleitor dos 80% que não esteja a reclamar que os eleitores madeirenses paguem pelo seu governante. 
Não é questão menor de filosofia política. O que é a responsabilidade dos eleitos e dos eleitores? Afinal, qual é a responsabilidade dos milhões de alemães que vemos, em filmes oficiais, em relatos jornalísticos, em registos sérios, em crónicas de historiadores, fanatizados no apoio ao nazismo? E quem melhor pode falar disto são os meus amigos alemães que, crianças ou ainda não nascidos nessa época, transportam hoje à Atlas a culpa dos seus pais. E muitos transportam com sofrimento que nós não imaginamos, porque não temos o mesmo sentido luterano da culpa, em relação aos nossos pecados de salazarismo e colonialismo.
Esses pais nazis “passivos” vieram dizer depois que nunca tinham ouvido falar de Auschwitz, que nunca tinham ouvido falar da Gestapo, que nem imaginavam que comunistas, socialistas, ciganos, homossexuais, deficientes mentais, seus vizinhos desaparecidos de um momento para o outro, não só os judeus, eram massacrados. Nunca tinham ouvido discursos do seu deus na terra em que defendia claramente o que fez (honra aos tudescos, são linearmente transparentes, sem subtilezas; o “Mein Kampf” é brutalmente eloquente, tanto como, hélas, as críticas da razão de Kant, porque não há como os alemães para poderem ser ao mesmo tempo geniais e monstruosos).
E os madeirenses também não sabiam? Não têm tido acesso a milhentas informações sobre o que faz e diz a figura trágico-cómica de Jardim? E porque se calam e se acomodam e o elegem? E não aceitámos todos, portugueses, a vergonha madeirense? A maioria tem sempre razão? Claro que não, é o que tenho estado a dizer nesta série de entradas. Todavia, nada disto se pode transferir, a meu ver, para reações primárias, “votaram, que paguem”. Tudo isto põe em discussão a filosofia da democracia representativa.
Aquilo que escrevi, de cada vez que os acontecimentos me faziam adiar a conclusão, era esta coisa primariamente simples: “a esmagadora maioria, 80%, votou pela austeridade, pelas troikas, interna e externa, a maioria em democracia tem razão? Não é verdade, não há nenhum voto que faça uma pessoa mais inteligente, mais informada, mais esclarecida”. Mais, que democracia é esta que contradiz o rigor inteletual, a informação cientificamente fundamentada? Não vivemos hoje numa nova sociedade, a sociedade do conhecimento?
Claro que se está meter pelos olhos dentro que os dogmas troikianos que alimentam a tranquilidade de consciência dos eleitores (continentais, não madeirenses!…) que permitem ao ministro Álvaro escudar-se neles, esses tais dogmas de “tem de ser”, são hoje visivelmente tudo menos indiscutível, mesmo para as autoridades que estão por detrás dos boys de serviço. Mas como isto já vai longo, passo para nova entrada, amanhã, espero que a concluir, se não houver mais notícias surpreendentes de última hora, numa Europa em que só está tranquilo nas suas certezas, sem notícias, quem é da maioria que tem sempre razão (ou, à Otelo, “o povo tem sempre razão” - os extremos tocam-se!).
Provavelmente, só escreverei amanhã sobre coisas objetivas, de economia. Por isto, fica aqui uma questão política. Os madeirenses, como por aí se diz, são uns egoistas que se aproveitam do betão do Jardim e dos seus negócios com amigos? Ou então, como por aí se diz, são "uns patetas manipulados"? E os 80% de eleitores portugueses que votaram na troika o que são? 

1 comentário:

  1. Não consigo, culpa minha certamente, perceber o nexo entre o título do texto e os sucessivos parágrafos.
    Indo por partes:_ o povo alemão votou Hitler. Não foi esmagadoramente mas foi o suficiente para lhe entregarem a chancelaria. E votou no NSDAP (partido nacional socialista dos trabalhadores alemães) porque o Zentrum católico não atava nem desatava, e sobretudo porque estava instalada a guerra civil entre socialistas e comunistas (Klasse gegen Klasse). Sem saber-se a história concreta pode dizer-se tudo o que se quiser masa questão central fica obscurecida.
    Depois, os alemães com emprego, com auto-estradas, com desafios conseguidos contra as potências vitoriosas, com a segurança nas ruas, entregaram-se arrebatadamente aos nazis. todavbia houve quem protestasse (e não foram assim tão poucos) mas os protestos foram parcelares, nunca em uníssono e sobretudo tudo abafado pelo controle absoluto da informação. Mas há inclusive muitos conservadores de pura cepa que se remetem à resistencia, mesmo silenciosa, contra o regime.
    E, como pano de fundo, convirá não esquecer que para uma maioria de alemães as condições do armisticio de 1918 foram de uma violência tremenda.
    não estou a desculpar nada mas convém perceber como é que o nazismo saiu do ovo, cresceu, teve apoios e pode fazer o que quis. Liquidando a dissidência, as minorias, ameaçando os fracos, comprando os pouco firmes e escondendo tudo debaiixo de uma propaganda avassaladora.
    tudo isto para dizer que a maioria alemã foi responsável pelo wque fez e pelo que deixou fazer. Deixemos os filhos de fora.
    O segundo ponto que não entendo é o que mete a Madeira ao barulho. De que maioria falas? de nós que sabíamos e calávamos? dos madeirenses que sairam da miséria e cegos pela cornucópia que lhes caia em cima deram o seu voto a Jardim?
    Mas alguém vota contra melhoria de vida, estradas, riquesa a cair-lhe em cima? tu votavas?
    questionar sem peias, nem limites, a razão da maioria é fazer a apologia das minorias iluminadas, desculpa-me que o diga com esta brutalidade. E há exemplos históricos: a tomada do palácio de inverno e dissolução da Assembleia onde eram maioritários os socialistas revolucionários e a sua consequente e encarniçada perseguição -que levou ao atentado infelizmente falhado contra Lenin - que foi o berço e o exemplo de tudo o que se seguiu e que culminou no imenso gulag e na coisa medonha que é hoje. tudo obra de umam inoria iluminada que se declarou representante e intérprete de uma classe - o proletariado - que nenhum dos seus teóricos conhecia de perto.
    terceiro ponto: nada obriga os portugueses a serem vassalos, como dizes, duma troika. conviria era saber como o não ser. E sobretudo, como o não ser conservando a bela vidinha de que se desfrutou. Ou estás a propor modelos coreanos, albaneses ou cubanos?
    quarto: falas em pais europeus. quais são? Os do início? Mas esses não só evoluiam em cenários dramáticamente diferentes como sobretudo falavam e agiam noutra realidade. A europa passou do euratom e doa seis para uma bizarria de vinte e cinco países diferentes sem que houvesse uma revolução cultural, ou uma integração do mesmo tipo. E a europa dos pais fundadores já tinha bancos, já tinha capitalismo e tinha sobretudo um são horror ao comunismo e um exercito americano para a proteger. E tinha demografia que já não tem. E tecnologia de ponta e exportava tudo que queria ao preço que queria.
    não sei se a maioria tem sempre razão. Sei, sim, que a desrazão da maioria tem de ser provada por razão da minoria. Por razão e não por outros contundentes argumentos que normalmente a minoria activa emprega com o á vontade de quem se sente portador da verdade. E disso fujo como o diabo da cruz.

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