segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Em tempo de crise, os polos afastam-se

Um amigo meu enviou hoje para a Time este comentário sobre um artigo arrogante de um finlandês:
Sirs, 
I think that you will probably consider my comment (on a comment…) outdated at this moment and, thus, I understand if you discard it, simply. However, on my view it may have some relevance.
In fact, when Mr. Leif Lukander uses the term 'selfishness' he recalls the very core of the issue, which has nothing to do with a certain moral. If any common territory inside borders is worth the name of 'country', nobody talks about 'help' when referring to the co-natural solidarity that term implies. It's constitutional solidarity, it's matter of governance, paragraph. 
With Europe there are a few equivocal things and that is the biggest problem. The contradiction between national sovereign powers and convergence without the institutional tools will lead to the end of Europe and rebirth of dangerous nationalisms, unless the so-called 'better-run' countries have memory and the intelligence to understand that their well-succeeded market is fed in a large measure by the near insolvent member States of a just monetary union. 
Thank you. 
Subscrevo este comentário. Mas, entretanto, não há muita gente a dizer coisas opostas: mas o que nos impede de exportarmos para o norte, não sabemos é produzir riqueza? E os países ricos, disciplinados, trabalhadores, têm de pagar os nossos erros? E haviam de deixar de exportar para nós? E os cidadãos pagantes desses países o que hão-de pensar? Não chega já de dizer que na Europa há os mauzões do centro e norte que produzem mas à custa dos do sul, e os pobres inocentes e vítimas do sul que são explorados pelos outros?
É o discurso hegemónico (ah, Gramsci!). Mais o da diabolização de qualquer défice, da maldade inata do Estado, da virtude do “mercado eficaz”, da veneração das figuras inacessivelmente aristocráticas dos banqueiros ("gente fina é outra coisa": viram o “Inside Job”?), da menorização da soberania (nunca o poder de reestruturação da dívida, mesmo da odiosa), da sujeição sabuja aos credores/exploradores, da aceitação da primazia do capital financeiro sobre o industrial - o fundiário há muito que se foi à vida -, da caricatura dos trabalhadores como preguiçosos e exploradores do Estado social, da aceitação acrítica do sistema económico considerado como dogma ou o "fim da história", muito mais. É em decorrência o discurso “big brother” dos economistas e ideólogos de serviço, “não podemos ser caloteiros”, “a economia política é como a economia doméstica de gente honrada”, “não há remédio senão a austeridade”, “quem nos ajuda é que manda”, “se não cumprirmos os memorandos, os mercados destroem-nos”, “cuidado com o nervosismo dos mercados”. Viva a troika! Mais, à ministro “nerd”, bom é ser mais troikista do que a troika. E tudo isto são os tais 80% de eleitores manipulados que, democraticamente, indiscutivelmente que têm razão.
Responderia com alguns factos básicos. Tão básicos que, não sendo eu economista, penso não andar muito longe da verdade ao enumerá-los. Isto quanto aos pontos 1-6. Os seguintes são de teor político, e aí eu cidadão não preciso de ter especialização académica em ciência política.
1. Na criação do euro, foram logo enviesadas as condições de concorrência. O marco e o franco foram desvalorizados, o escudo, a peseta, o dracma, a lira menos, foram sobrevalorizados. Foi o preço que a Alemanha exigiu, entre outros, para o negócio de aceitação pela França e outros da reunificação alemã (a meter algum medo, pensando no passado) e de aceitação pela Alemanha do fim do marco. Mas a Alemanha ganhou ainda mais. Um BCE à medida do Deutsche Bank, o triunfo das regras monetaristas de Maastricht aplicadas ao euro e ao BCE, de forma arbitrária (porquê o défice máximo de 3% do PIB e não 4%, como acabou por ter a própria Alemanha? E que também falsificou contas, como a Grécia, quando foi da reunificação). Também, nos dogmas neoliberais que impôs, a desregulação dos mercados financeiros, o pavor da inflação, a recusa de qualquer perspetiva keynesiana, a impossibilidade de monetarização da dívida (embora na prática o BCE tenha tido agora de comprar dívida dos PIGS no mercado secundário), etc.
2. Com isto, a pergunta sobre o porquê dos sulistas não exportarem para o norte fica em boa parte respondida. Além disso, grande parte da riqueza do sul foi destruída pela imposição política dos ricos, com a PAC e a política de pescas, inclusive o desmantelamento de frotas pesqueiras (porque é que a Noruega nunca quis entrar na CEE e depois UE? Para além de ter petróleo) e, por consequência, de boa parte do nosso setor secundário, com forte componente agro-alimentar. Lembram-se do que era a importância da nossa exportação de polpa de tomate? E os laticínios açorianos, hoje a jogar às escondidas com as quotas europeias?
3. A maior parte das exportações alemães são de indústria pesada e aí a Alemanha tem fatores históricos favoráveis. Um capitalismo industrial antigo e sólido (ou “O Capital” não tivesse sido escrito por um alemão, que nem sonhava que o “socialismo” nasceria aberrantemente num país de economia de “modo asiático”), mão de obra com mentalidade de exército, acima de tudo matérias primas, carvão e aço. Não se esqueça de que Jean Monet e os seus pares começaram por tentar equilibrar as coisas na Europa foi com a CECA, do carvão e do aço, antes da CEE.
4. Mais recentemente, a produtividade alemã e a competitividade nas exportações têm dependido fortemente de desvalorizações internas. Como não podem desvalorizar a moeda comum, desvalorizam o preço do trabalho, com os sindicatos a irem nisso. Aumento da idade de reforma, maior horário de trabalho, prestações e serviços sociais menos acessíveis. Os trabalhadores do sul, a meu ver, têm razão em não querer alimentar os seus tipos do Inside Job com esses sacrifícios. Pelo menos a resistirem enquanto podem.
5. A Finlândia é simplesmente a Nokia. A Holanda nem isso, um dia destes acorda atrelada à Alemanha, a viver só de outro tipo de competição com que a Irlanda se lixou, a desvalorização fiscal, em relação às empresas. Sabem quantas empresas portuguesas, a começar pelos bancos, Sonae, etc., têm sucursais na Holanda para circulação taxfree de capitais? Vamos ver como é, daqui a poucos anos.
6. Depois, todas as bocas sobre um euro do norte e um euro do sul, sobre a pressão para a Grécia (para já) sair do euro, etc., são mesmo só isso, bocas. Ou então ignorância crassa de políticos economicamente primários que desconhecem o que é a globalização, desde logo a nível europeu. Todo o sistema do euro está interligado, mesmo que com fios muito fracos, a ameaçar rotura. Mas se os PIGS romperem, vai-se à vida a estabilidade económica e financeira dos AAA. Cada vez mais economistas até agora servis ao sistema, gente do BCE ou dos bancos centrais, articulistas de jornal tão ortodoxo como é o Finantial Times, começa a dizer isto, como forma de protegerem o seu bom nome profissional e académico da burrice dos políticos.
7. E não vale só a economia. Também a política, talvez mais. O que se está a ver dos nortenhos, com sulistas a ajudarem de baraço ao pescoço, é um perigosíssimo nacionalismo, xenofobia, que se até agora era, já detestavelmente, contra o não-europeu, agora divide a Europa e abre portas sei lá a que aventuras neo-nazis (não digo que a Sra Merkel seja nazi, claro que não, mas da forma como isto vai… primeiro foram os comunistas, dizia Brecht, um dia serão os CDUs).  O que têm sido os resultados eleitorais nos últimos anos, nos países AAA? Eu tenho uns primos alemães que andam aterrados.

8. E também vale a ética, a gratidão, o reconhecimento. É certo que por interesse, lembrando-se das consequências de Versalhes, mas afinal os aliados é que reconstruiram a Alemanha do pós-guerra. Os malfadados gregos nunca conseguiram indemnizações de guerra, nem sequer a devolução do seu ouro confiscado (e em boa parte mandado para Salazar, para pagamento de volfrâmio). O mito do esforço alemão é isso, mito. Depois 1953 e a ponte de Berlim, uma fortuna. Depois, a reunificação, que desviou para a Alemanha rica uma parte muito considerável dos fundos estruturais de que tanto precisava a coesão europeia.
9. Finalmente, não aceito bem que pessoas de nível favorecido, como o meu, vivendo confortavelmente, desconhecendo o que são os sacrifícios dos milhões que estão agora a sofrer duramente a austeridade (eu ainda só minimamente, nada que já me tenha feito mudar os padrões de vida) venham lançar culpas sobre “os portugueses” que vivem acima das suas posses, ao contrário dos exemplares AAA. É injusto e é submisso. 
Injusto porque se toda essa gente se endividou, endividando o país, foi com crédito publicitariamente quase imposto dado pela banca com dinheiro que ela foi buscar a crédito mais barato aos AAA e conseguindo os lucros escandalosos de que nos lembramos, na década até à crise. Porque, entre muitos fatores de projeção psicológica ou de “standing” que não nego, esses portugueses (e esses gregos, e esses irlandeses, e esses espanhóis, e a coisa não ficará por aqui) tiveram que comprar a crédito a casa por não haver mercado de arrendamento ou o carro por a rede de transportes públicos ser terceiromundista. Claro que também compraram a TV gigante e as férias em Cancun, mas isto levava-nos longe, para uma discussão sobre os motins de Londres (que não desculpo de todo, mas que quero perceber, “cientificamente”).
E é submisso porque o cosmopolitismo, a vivência internacional, de uma certa camada  intelectual, académica e de quadros bem colocados está a levar para a tal projeção psicológica, agora a nível do padrão de “desenvolvimento e civilização”, do que não é "vergonhosamente" o provincianismo português. De certa forma, queirozianamente; porque os "vencidos" eram bastante snobs e não sei se, nesta crise, não alinhariam pelo "estrangeiro civilizado", que não é "esta choldra". Mas, ao menos o meu co-ilhéu Fradique tinha nível, bom gosto e boas maneiras. Todavia, no momento da verdade, os meninos tentarão apanhar o elétrico, enquanto a choldra vai sair à rua. Dito isto, há muita coisa que detesto no meu povo e não vou agora repentinamente virar "tuga". Não vou em patrioteirismos ao estilo anti-Moody’s, mas algum brio de identidade como povo não nos faz nada mal.

NOTA - E nunca um novaiorquino ou um californiano se atreve a falar de um arkansiano, seu "american fellow", como hoje fala um alemão de um grego. Aí está uma grande diferença, muito para além da diferença entre o dólar e o euro. É que, ao contrário do célebre dito de Clinton, não é verdade que "it's the economy, stupid!"

P. S. (13.9.2011, 00:25) - Descuidadamente, fui injusto para com Leif Lukander, o finlandês a quem o meu amigo JL respondeu. Faltou-me ler a sua última frase, essencial. Afinal, num comentário a um artigo da Time, "It’s Time to Admit the Euro Has Failed "ele estava a defender, sob a forma de uma pergunta, exatamente o que nós dizemos: “What is now being tested is the solidarity among member states. How far will the better-run countries be willing to go to help their weaker brethen nations? Let’s hope that selfishness does not get the upper hand”. Let’s hope, dear Leif! 

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