segunda-feira, 4 de julho de 2011

A maioria tem razão? (I)

Não me agrada nada escrever esta entrada, porque vai ser uma enorme lapalissada. No entanto, tanto ouço dizer hoje o que a motiva que me sinto em “vamos qu’é d’obrigação”, como se canta na minha terra. Nas últimas eleições, quase 80% dos eleitores que foram às urnas votaram num dos três partidos da trindade interna reflexos da trindade externa. Falo com alguns desses eleitores. Estão a carpir-se, a chorar antecipadamente pelo subsídio de Natal mas ainda não ouvi nem um a arrepender-se do seu voto.
Pior, dizem uma coisa espantosa, quando tento defender a minha posição: “mas então 80% dos portugueses não têm razão, você e uma minoria é que têm razão?”. Voltando a Monsieur, há aqui um erro de palmatória no uso da expressão “ter razão”. Eu respondo que, num sentido, 80% dos eleitores têm razão, noutro sentido não têm. Qualquer aluno meu de “racionalidade científica” desmontaria isto num ápice. Se lhes der isto como tema de exame para a semana, todos vão a 20.
Os 80% que votaram no acordo humilhante com a “troika”, sem qualquer discussão ou alternativa, mesmo os meus interlocutores que choram pelo que já sentem a sair-lhes do bolso, têm razão, no sentido democrático de terem razão para, tendo votado todos eles numa grande maioria, terem legitimidade para exigir o respeito pelas propostas e programas em que votaram. Nem me passa pela cabeça discutir isto. 
Mas também tenho igual direito de, pelos meios democráticos (e que são muito mais do que o parlamento, porque manifestações, protestos, greves, são direitos garantidos pela Constituição) tentar combater esse engano (a meu ver) em que foram os tais 80%. E se não fosse engano, porque chorariam? Teriam era a coerência corajosa de dizer “votei assim porque achei certo, ninguém me obrigou, agora aguento”. Mas este é um povo com uma coisa muito característica, a impossibilidade absoluta de entender o velho provérbio inglês “não se pode ter o bolo e comê-lo”.
Também podem dizer que têm a razão de não poderem ter razão, no sentido de eventualmente se sentirem absolutamente condicionados e limitados na sua capacidade de escolha. Até nem é inteiramente verdade. Há basta informação, por exemplo online, a facultar reflexão. Simplesmente, ela não consegue vencer a hegemonia da “informação” de serviço; muita gente nem acesso ou prática de acesso à net tem; muita gente tem isso mas não tem capacidade de filtrar a enorme desinformação que por aí vai. Fica esta importante discussão para a continuação desta entrada. Mas, entretanto, a minha simpatia para com os que são vítimas da despudorada manipulação que tem sido feita sobre esta “inevitável desgraça” que nos caiu em cima. Como nos tempos dos vulcões da minha terra, em que o ilhéu só pedia “mê Dês, misricorda”. Mas estamos no dealbar do século XXI.
Para quem tiver paciência de me ler amanhã ou depois, mostrarei que há uma alternativa de “não” à política de austeridade, vulgo acordo com a troika, o tal acordo “que outra coisa podemos fazer?” que nos vai conduzir ao abismo. Mais, que até há muitas alternativas, que podem ser usadas em muitas combinações e dosagens. Até já mostrei aqui que o atual ministro da Economia escreveu que algumas delas seriam a melhor solução! Não digo de forma alguma que são alternativas milagrosas, sem custos. O que a experiência tem mostrado é que esses custos, mesmo que muito altos, compensam em prazo relativamente curto.
Os meus interlocutores também podem estar convencidos de que têm razão porque são “obrigados” a votar num dos partidos do “arco do poder”, hoje coincidente com a trindade serventuária da trindade europeia-FMI. Porque não há alternativa “séria e credível”, dizem... Novamente, arrebanhamento por uma coisa metida na cabeça, aceite sem qualquer “deixa-me pensar…”, que é o “fim da história”, a exclusão final da esquerda radical de qualquer cenário de governo. Porque é que não pode haver um governo de esquerda com o PS? Digam lá porquê, sem responderem só com preconceitos. Também falarei sobre isto, sobre o processo histórico relativamente recente (década de 90) mas com raízes na guerra fria que levou a isto, sem esquecer que essa própria esquerda também contribuiu imenso para a sua exclusão (e não só Soares-Carlucci).
Finalmente, onde nenhuma razão podem ter os meus interlocutores é quando entendem que “se uma  enorme maioria de 80% das pessoas votou assim, é porque têm razão, isto é, têm ideias certas e corretas”. Se assim fosse, ainda estávamos na idade da pedra. Nunca as maiorias tiveram razão, no sentido de pensarem o que ia no sentido do desenvolvimento da cultura, da mente humana, dos valores sociais. Se alguns poucos simples homens, Voltaire, Diderot, D’Alembert, Rousseau (mais alguns) não tivesse tido razão contra toda a maioria, incluindo a popular, ainda hoje falava Versalhes. O Cavaleiro d’Oliveira estava sozinho contra todo o povo português babado de gozo com os autos-de-fé. Todo o progresso depende das minorias, na política, na ciência, nas artes, na ética.
As ideias não vão a votos. Até tenho vergonha de escrever isto, esta banalidade, mas garanto que é por causa do que ouço, “não pode pensar nessa teoria absurda - por exemplo a reestruturação da dívida - porque a maioria mostrou que é errada”. Ainda hoje li isto num artigo de opinião. Diz o articulista e diz todo o zé que tenta encontrar nisto algum mérito do seu voto, à adepto de clube. Nunca tinha assistido a tal disparate cultural coletivo. 
Se 80% dos eleitores (não estou a fantasiar, veja-se alguns exemplos americanos) votarem, diferentemente de mim, pela proibição do ensino da evolução e pela obrigação do ensino do criacionismo, eu digo que eu e os meus 20% é que estamos certos. Se votarem, com o papa, contra o uso do preservativo para prevenir as infeções sexuais, eu digo que eu é que estou certo. Se votarem contra o uso terapêutico das células estaminais, eu digo que eu é que estou certo.
A “correção” de uma teoria, de uma tese, de uma ideia, em política, não é formada a priori, experimentalmente, como na ciência. Mas tem uma possibilidade comum a todo o método científico: pode ser refutada se as suas previsões não se verificarem. Simplesmente, o teste não pode ser feito no laboratório, no dia seguinte. Demora anos, na vida real e, para felicidade dos políticos, muitas vezes já então se perdeu a memória do que estava em causa. Vale-nos que, se calhar, antes de tirarmos as nossas próximas lições, poderemos aprender muito a curto prazo com os gregos.
E não se deve esquecer que o domínio da dialética, desde os velhos gregos, é uma superioridade na discussão. Para tornar isto mais simples, vou identificar essa vantagem com a capacidade de articular e lançar argumentos. É coisa que também me confrange nestas conversas dos orwellianos que me doem. Não há capacidade de argumentação, provavelmente porque a "informação" é fornecida de forma a inibir a reação crítica (não é nada difícil fazer isto, se se sabe manipular). Costumo retorquir nessas conversas: “mas sabe o que eu penso, que defendo alternativas à política troikiana. Dê-me então um único, mas um único argumento contra isto que eu defendo”. Garanto que a resposta é “não é preciso, toda a gente sabe que não há alternativa, que seria a tragédia final”. Ou então o argumento de "economia moral" de que não é honesto ser caloteiro, como se houvesse tal coisa em economia política. Contra aquilo e isto… É que por vezes, aberrantemente, ao contrário do ditado conhecido, "contra argumentos não há factos..."

1 comentário:

  1. Duas coisas:
    1. Como a democracia e a justiça não são isomorfas a questão nem se coloca.
    2. Sendo assim, basta um contra-exemplo para demonstrar o ponto anterior: Hitler foi eleito e não tinha razão.

    Abraço,
    Alcides

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