terça-feira, 5 de julho de 2011

A maioria tem razão? (II)

Continuando. Numa coisa a maioria tem razão: em exigir informação útil e correta que lhe permita um mínimo de capacidade de escolha em relação a políticas que lidam com uma situação económica extremamente complexa. Esta última campanha eleitoral foi negativamente exemplar. Quando era indiscutível que O (com maiúscula) problema era o do resgate ou suas alternativas, a trindade interna do acordo falou de tudo e mais alguma coisa, abundaram-se em críticas e ataques colaterais, mas alguém ouviu uma discussão séria, esclarecedora, sobre o problema económico? Alguém já teve acesso a um resumo esclarecedor dos documentos do acordo, daquilo a que se chama eufemisticamente "programa de assistência económica e financeira" quando não, incrivelmente, "ajuda"?
Ainda é nas revistas semanais (mas não nos semanários) que, a meu ver, se vai conseguindo informação um pouco mais aprofundada. Mas quantos dos tais 80% de maioria tem meios e mesmo hábitos de leitura para acederem a essa informação? Mesmo os jornais diários são lidos, no total, por talvez 100.000 pessoas, 2% da tal maioria de quase 80%. E estes jornais estão longe de serem a fonte de informação minimamente suficiente e eficaz para habilitar alguma reflexão sobre o problema em causa. 
O seu fraco nível técnico, a impreparação de muitos jornalistas, a falta de espaços especializados, nada ajuda. Muito menos o quase total encerramento da imprensa de hoje ao debate aberto, à publicação de artigos de opinião, com autoridade e rigor. Generalizou-se a ideia de que opinião se restringe a um corpo fixo de colunistas, com dia certo, escolhidos para dar ideia de pluralismo mas, de fato, raramente debatendo entre si, tão ocupados que estão com as suas agendas próprias. Noutros casos, descurando coisas essenciais. Por exemplo, no jornal que ainda vou lendo, o Público, só há um único colunista regular situado na área política que se opõe ao acordo trinitário, Rui Tavares. No entanto, que me lembre, e talvez por influência da sua formação académica, não me recordo de ele ter abordado pedagogicamente a questão do euro e, mais especificamente, do resgate português. E é deputado europeu.
De qualquer forma, e para se ter sentido das realidades, informação é só TV, em termos dos grandes números, os que trabalhamos nesta coisa de maiorias de 80%. No entanto, esse alcance paga-se, em termos de limitação da aquisição de informação. Em relação à TV, é banalidade dizer-se que ela é passiva, menos crítica, mais rígida. Um jornal lê-se à velocidade adequada a cada um, volta-se atrás a compreender melhor, volta-se a pegar nele para se discutir com um amigo. 

A televisão vê-se à sua própria velocidade, apanha-se dela o que se pode e menos filtrado, não se pode ir reexaminar a informação, discute-se depois ao café da forma que cada um “desouviu”. Por isto, a televisão funciona em “sound bites”, obviamente com muito menor riqueza informativa e com prejuízo da complexidade. Não digo, como Popper, que a televisão é um perigo para a democracia, mas há que ter noção dos problemas.
Anote-se, no entanto, que, mesmo com o seu alcance, a maior influência “matraqueadora”, ao que me parece, é a dos canais de cabo informativos e estes estão longe de chegar aos tais 80%.
Mesmo assim, o problema é central para a democracia, uma democracia de gente informada e esclarecida. O panorama é tão conhecido que nem merece grande descrição: hegemonia absoluta de uma opinião dominante, que, em relação à economia, é vincadamente neoliberal e refletindo a visão europeia corporizada no eixo Berlim-Paris, na Comissão e no Banco Central; apresentação das opiniões sempre como indiscutíveis por natureza e milagre, com omissão sistemática de referências a alternativas ou a opiniões diversas; leque estreito de comentadores de serviço, um baralho só de Duques; apresentadores ou moderadores servis ou pelo menos mal preparados, colaborando neste “fazer o frete” ao sistema dominante; etc. E até, perversamente, os mesmos vícios exercidos pelos próprios objetos da informação quando se tornam sujeitos, nos variados programas com os telefonemas dos participantes.
É certo que há programas “de contraditório”, sempre com o cuidado que fica bem, de opor políticos de quadrantes diferentes. Todavia, programas limitados ou à política convencional ou então a generalidades, em que questões de fundo como a do acordo de resgate ficam para trás em relação à agenda partidária mais rasteira mas mais eficaz no dia a dia político. Para já não falar dos “debates” de gente muito inteligente que diz coisas muito engraçadas e em que todos coçam as costas de todos à volta da mesa.
Claro que tudo isto pode ser largamente compensado pela mãe das fontes de hoje, a “net”. Mas em relação a quantos dos tais 80% de maioria? E dos que têm acesso físico, quantos têm acesso mental, isto é, sabem colher informação “online”? E de que tempo dispõem, quando eu já me sinto limitado se não consigo, na minha situação de reforma ativa, ler o jornal português e os principais títulos, ao menos, de dois ou três estrangeiros, mais uma boa dúzia de blogues que me são de obrigação diária? 

E se a maioria das pessoas não tem acesso, nem tempo se tiver acesso, nem mestria se tiver tempo? Fica ainda pior do que sem informação, arrisca-se a ficar desinformado, a ler apenas, sem contraditório e crítica, o primeiro texto que o Google lhe apresenta, nenhuma opinião contrária; lê porque lhe agrada e cai bem nos seus preconceitos a mensagem em cadeia que lhe mandou um amigo que recebeu de e de. Pior, como tudo isto é moderno, é fortalecido e credibilizado por esta “autoridade” da alta tecnologia. Como alguém da minha meninice que assegurava “é verdade, porque ouvi na Pepe” (um café de moda na minha cidade).
Todas estas dificuldades colocadas à obtenção mínima de informação habilitadora de uma “razão” sobre as presentes alternativas de economia política também se pôem, de outra forma, em relação a pessoas de nível privilegiado, mas que sofrem de algumas insuficiências radicais na nossa cultura e educação. Ainda vivemos muito a célebre dualidade que já há quase um século C. P. Snow discutia no célebre livrinho “As duas culturas”. As pessoas da cultura humanística ou literária que ainda (cada vez menos) marcam posição na cultura têm aversão à ciência, à técnica, à racionalidade científica, detestam economia. Dá-lhes prazer intelectual a retórica, o formalismo, o jogo mental. Com isto, estão muito mais vocacionados para a crítica política convencional, sobre o facto político, a picardia, a habilidade. É o que mais se vê nos artigos de crítica política. É a versão erudita das “bocas” populares sobre os políticos.
Concluindo, há sinais cada vez mais visíveis de melancolia da democracia. Ainda há alguns anos, era fenómeno a preocupar apenas académicos ou pensadores políticos. Hoje, como toda a gente vê, transformou-se, para muita gente, nomeadamente gente jovem, em desgosto com a democracia. Os partidos estão preocupados, mas tentam combater isto (ou melhor, usam isto na agitprop) olhando para o que mais vem à superfície, a revolta dos cidadãos contra a corrupção, a leviandade dos políticos, os seus privilégios de casta. Tudo isto é importante, mas é necessário que os partidos - claro que estou a pensar principalmente nos que me interessam, os de esquerda - antecipem que, um dia destes, as pessoas vão compreender que a principal falha atual da democracia é, na sociedade do conhecimento, viver muito da desinformação das pessoas. Partidos, tornem-se também escolas!
Adenda à entrada de ontem - Numa crítica privada, entendeu um leitor que, no fundo, eu estava a usar um discurso aparentemente rigoroso para levar a água ao meu moinho, em termos políticos e, neste caso, de desvalorização do voto. Deixo este julgamento aos meus leitores, embora sempre clamando eu a minha “inocência”. Mas, já agora, escrevo alguma coisa mais, como exemplo da minha posição, da minha tese de que “as ideias não vão a votos”. Imaginem um referendo em que a pergunta era “acredita que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, ao 6º dia?”. Vamos fazer apostas sobre o resultado deste “referendo”?
Quero dizer que quem votou sim neste “referendo” é um cidadão menor? Uma das perversões que hoje se pode ter em relação à democracia é a de um desvio meritocrático, o de que o voto de um esclarecido e informado vale mais do que o voto de um ignorante. É uma ideia detestável, um retrocesso histórico a tempos (entre nós não muito longínquos) da exclusão do voto dos analfabetos, por exemplo. A democracia, como tudo, está sujeita à análise e à discussão, mas não se pode, sem graves riscos, pôr em causa coisas fundamentais. Há uma frase célebre que diz mais ou menos “morro pelas minhas ideias, mas mais importante é eu morrer para que possas ter as tuas, mesmo que eu as deteste”. É claro que isto tem limitações; nunca eu escreveria isto a Hitler.

P. S., 6.7.2011 - A desmentir-me, Rui Tavares escreve hoje a sua crónica tendo como tema a "política" financeira europeia.

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