quarta-feira, 11 de junho de 2014

Um discurso político que vá ao coração

É opinião corrente que o discurso político à esquerda está desadequado, em termos de eficácia comunicacional. As grandes bandeiras e os slogans são vistos por vezes como coisa antiquada e muitas posições são formuladas de forma repetitiva. É a chamada cassete, quando, de facto, não há mais descarada cassete do que aquela que é usada para “denunciar” infindavelmente a cassete que o é, felizmente, porque não se deve dizer e desdizer a cada dia o que é convictamente assumido.
No entanto, não se deve desdenhar sobranceiramente esta questão. Mergulhadas em “ondas” de informação ligeiras e pouco sérias, sem disponibilidade para reflexão, até isoladas em casa ou em círculos muito estreitos que limitam a discussão, as pessoas dependem cada vez mais de “sound bites”. Quantos lerão os programas ou documentos partidários? É por isto que discordo de um amigo, dirigente partidário, que, em resposta a críticas minhas, me remete sempre para documentos oficiais do partido. Por exemplo, o que conta a posição escrita do PCP em relação à Coreia do Norte, quando toda a gente, condicionadamente, se lembra sempre é de Bernardino Soares?
Da mesma forma, que esclarecimento têm de facto 36,6% de eleitores que consideram que Marinho (e) Pinto se situa na esquerda ou no centro-esquerda e que desejam vê-lo concorrer a ambas as próximas eleições, legislativas e presidenciais? Ou alguém já leu ou ouviu alguma coisa diferenciadora de Seguro e Costa para ficar a reflectir nesta onda que só tem como água, ou espuma, a ideia de politiquice primária de que Costa tem mais carisma e é mais ganhador? Nos tempos de hoje, estas é que são as qualidades políticas; mais, importantíssimo, entrar regularmente nas casas por via da TV, mesmo em programas tão ligeiros como o de Marinho (e) Pinto (não recordo o nome) ou o Eixo do Mal (estou a fazer futurologia…).
Desde jovem, no movimento estudantil, escrevi muitos textos políticos. Muitos eram panfletários, cheios de slogans, muito assertivos, a apelar à luta. É claro que só têm sentido quando há alguma receptividade subjectiva a esse registo de linguagem; de outra forma, pode parecer épico-trágico. Outros textos eram doutrinários, mais aprofundados, excessivamente aprofundados. O registo era, e é ainda, áspero, de leitura cansativa, não atraente. Ainda hoje, relendo-os, me pergunto “para quem estava eu a escrever isto? Ou era só um exercício narciso-hedonístico?”.
A questão é hoje ainda mais pertinente. Talvez a esquerda consequente não esteja a saber falar bem para largos sectores sociais incluídos nas chamadas classes médias. Concorde-se ou não, no concreto, com as posições de cada um dos partidos, elas são consequentes, bem formuladas, sem demagogia. E, no entanto, só têm impacto em cerca de 20% dos eleitores. Também é necessário diversificar. Eu julgo ter mais queda para um discurso analítico  teórico, mas considero muito útil, por exemplo nos blogues, o registo satírico, o protestativo ou o emotivo.
É preciso tocar as pessoas. Quando Marx pontua os seus textos teóricos com notas vivas de retrato pungente das crianças miseráveis dos bairros operários de Londres, dá vida e emoção a todo um programa político. Quando António Gedeão nos descreve tão simplesmente o dia a dia de Luísa (aliás a sua própria mãe), a subir e descer a Calçada de Carriche, não precisa de propor um programa político para melhorar a vida das mulheres trabalhadoras. “Os Capitães da Areia” é quase um manifesto do PCB. Hoje, vemos programas que querem dizer muita coisa, listagens de medidas áridas e muitas vezes pouco perceptíveis para o cidadão comum, quando não apenas expressão de simples propaganda. Podem chegar – duvido – ao entendimento das pessoas, mas muitas vezes não lhes chegarão ao coração.
Lembro-me de pessoas que conheço e que até nem são das mais desfavorecidas economicamente. A. trabalha numa pequena empresa, de três pessoas. São amigas, mas só uma é que conseguiu capital e é a patroa. A. tem dois filhos e o marido trabalha quase sempre à noite. Por isso, ela combinou com a amiga proprietária da empresa que faria sempre o turno das oito às cinco, para ir buscar os filhos à escola, tratar deles e também preparar a ida do marido para o trabalho, podendo ainda ter algum tempo para conviver com os filhos, o único lazer/prazer que lhe resta. Mas agora, com a crise e exigências de clientes em relação a horários, e mau grado a amizade na empresa, obrigaram-na a trabalhar até às oito. Perde a vida de família. Não é uma questão de dinheiro, é de qualidade de vida. A. quer encontrar um partido que se preocupe com isso.
B. é licenciada e trabalha numa multinacional. A pressão do trabalho até a impediu de ser mãe até uma idade em que, no meu tempo, já tínhamos famílias bem estabelecidas. Toda a cadeia hierárquica da empresa quer mostrar serviço à casa mãe e ameaça com as avaliações, numa situação em que o vencimento é em boa parte de prémios. Exige-se ao máximo, das oito às nove ou dez, com a cumplicidade forçada do pessoal. O marido também trabalha nos mesmos moldes e a filha, pequenita, que eles quase não vêem, circula entre as avós, obrigadas a trabalhar a meio tempo. B. não tem sido muito prejudicada economicamente com a crise, mas não é uma questão de dinheiro, é de qualidade de vida. B. quer encontrar um partido que se preocupe com isso.
Há tempos, recordei aqui o pioneirismo do MDP do final dos anos 80, ao afirmar-se como partido alternativo. Repito:
A luta política de Esquerda continua a ser, no fundamental, a luta contra a discriminação das camadas sociais marginalizadas e excluídas, a luta contra a distribuição desigual da riqueza, a luta contra a exploração e atraso forçado da maioria dos povos, a luta contra o obscurantismo e a alienação, a luta contra a competição selvagem.Mas mesmo nos extractos sociais que hoje beneficiam da riqueza das sociedades industriais desenvolvidas emerge um novo tipo de problemas sociais que ainda não tiveram reflexo claro no pensamento de Esquerda e para os quais mesmo as formas mais avançadas da social-democracia não encontram solução.As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam novos factores de crise. Criou-se riqueza, possibilitou-se um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a comunicação e a informação. Mas diluiu-se a cidadania, enfraqueceu a privacidade, intensificaram-se em abstracto as interdependências sociais com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares).A vida individual é mais autista, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social, com reflexos na expansão da criminalidade e na evasão alienante por via das drogas, do alcoolismo ou da adesão a múltiplos irracionalismos e seitas. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia.A satisfação crescente das necessidades materiais não é acompanhada por um sentimento paralelo de felicidade humana e de alegria de vida, e essa “tristeza” de uma sociedade sem fraternidade e sem idealismo reflecte-se politicamente naquilo a que já se chamou de “melancolia da democracia”.Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista nesta tendência de evolução das sociedades. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população mesmo das zonas mais desenvolvidas vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não exigem uma revisão radical das linhas tradicionais de acção da Esquerda.Mas ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações, às quais é necessário que a Esquerda tente dar uma resposta actualizada.
Pensar nestes termos, propor programas ajustados aos novos problemas sociais, ter em conta que correspondem ao sentir de vastos sectores da pequena e média burguesia, ter a expectativa de que, com novos desafios, se pode ajudar a desbloquear a situação partidária presa na política convencional, tudo isto pode abrir novas perspectivas a alianças de esquerda, partidárias e sociais.
NOTA – Presumo que vão dizer que o texto do MDP que transcrevi, sendo inovador no conteúdo, sofre do tal estilo de escrita pesado e politicamente convencional. Reconheço.

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