Anda meio mundo alvoroçado com a novela Seguro-Costa, com a grande revolução política das primárias. É sobre esta última questão que gostaria de deixar alguns apontamentos.
Não tenho nada contra quem as deseja, no seu partido, ou quem as elogia noutros partidos, mas tenho o direito de ter alguma ideia sobre o significado político de tal novidade. As primárias abertas reflectem uma noção de partido mediático, em que, mais do que a coerência das posições programáticas, vale o carisma de líderes com grande presença televisiva que se elegem facilmente, sem terem de passar pelo filtro do trabalho organizativo, de mobilização, de coordenação da reflexão política. Dizem uma dúzia de slogans e é tudo, sob o disfarce de grande democracia da participação dos outros candidatos, na zona obscura de elegibilidade, que têm neste processo uma hora ilusória de importância política. As primárias abertas serviram só para legitimar, por exemplo, Rui Tavares e Pablo Iglesias, do Podemos. No caso do Livre, quem são os seus dirigentes? Alguém os conhece e às ideias com que se apresentaram às suas primárias abertas?
Antes era “o meu reino por um cavalo”. Hoje é “a minha acção política por uma hora de televisão”. E são esses eunucos televisivos – jornalistas ou comentadores –, que vêm dizer que a democracia está conspurcada. Olhem para si mesmos.
A coisa modernista das primárias abertas traduz a ideia de um partido caixa de correio, feito de programa e ideias transmitidas só pelos eleitores e sem elaboração ideológica interna. A minha concepção é inversa, embora, obviamente, aceitando a importância de os partidos estarem atentos à opinião pública e, em especial, das camadas sociais a quem se dirigem preferencialmente. Mas os partidos não são meras caixas de ressonância mediáticas. São os espaços privilegiados (ou deveriam ser) da reflexão teórica e prática, concretizada em propostas políticas.
Não há nisto, teoricamente, nada de antidemocrático mas aceito bem que, na prática, esta questão das primárias, como outras, mereça discussão, como forma de reflexão sobre a melancolia em que caiu a democracia parlamentar e partidária. Simplesmente, esta proposta não encerra a discussão, que tem a ver com o problema muito mais importante da democracia participativa.
Deve-se é clarificar alguns mitos que por aí se agitam. Primeiro, as primárias abertas a simpatizantes (o que não é o mesmo que as directas de âmbito partidário restrito) estão longe de serem uma tendência forte na Europa. Tanto quanto sei, só existem, com expressão significativa, em três partidos socialistas (Itália, França e Espanha) e no extravagante 5 estrelas de Beppe Grilo.
Depois, não têm nada a ver com o exemplo americano, sempre referido. Os dois grandes partidos americanos, Democratas e Republicanos, não têm nada a ver com a situação europeia. Não têm organização, não têm um programa claro, são principalmente máquinas eleitorais. As suas posições políticas são a resultante das propostas de cada candidato e a sua legitimidade vem do voto nas primárias (para além de alguns processos curiosos, como os caucus). Por isto, é frequente verem-se divergências de voto no Congresso, porque cada senador ou representante foi eleito com legitimidade pessoal. Não é este o sistema europeu e invocá-lo em favor de primárias na Europa é fraudulento.
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