A minha prioridade de agenda de escrita era uma carta aos meus amigos de esquerda. Obviamente, pela sua importância, não a posso esquecer, até porque se estão a multiplicar outras posições, como a dos dois dirigentes do BE, bem como as respostas de Ana Drago e de Daniel Oliveira. Mas, em tudo isto, sinto-me em dificuldade, numa espécie de diálogo de surdos. Que esquerda? Que unidade e para quê? O que são os factores de união? O que é que o eleitorado pensa disto? E, mais especificamente, o que pensa cada “grupo social”?
Respeito pessoalmente as pessoas com quem não concordo, mas fico muito condicionado no debate, neste período tão crítico, quando não há um mínimo de entendimento sobre as premissas do debate. Um dos mais flagrantes exemplos é o da discussão centrada na classe média. A meu ver, este conceito duvidoso confunde toda a estrutura social (reconheço que em mudança) e, transposta para a política transversal e convencional, alinha, à esquerda, com uma visão empastelada que converge com a do pântano ou do centrão.
O principal problema na discussão de uma possível unidade entre PCP, BE e PS é o de se igualizar os partidos. Concorde-se ou não (não vou discutir) o PCP é um partido de classe, em que a acção eleitoral e institucional é apenas uma parcela da acção. Pelo seu sentido estratégico, as alianças situam-se num quadro que ultrapassa um ciclo parlamentar eleitoral. Uma aliança é sempre de azeite e vinagre, teoricamente imiscíveis. Para se conseguir uma boa vinagreta, uma emulsão sempre instável, é preciso boa técnica e bom conhecimento dos ingredientes e das suas características essenciais.
Para que fique claro, e pretendendo contribuir de fora para um debate saudável e amigável sobre a natureza dos partidos e como ela condiciona as suas relações, vou deixar de lado a minha perspetiva teórica (marxista) mas não traduzida na prática (comunista, que não é a minha). Não é fácil para mim, porque, na realidade política portuguesa, o marxismo do PCP está intimamente vinculado ao leninismo, que não perfilho, no que respeita ao “centralismo democrático” (fora a teorização do imperialismo e da conquista do Estado), para além de emergências estalinistas que me horrorizam, enquanto que outros partidos, BE e Livre, dificilmente se podem considerar como marxistas. Ideologicamente, estou numa terra de ninguém. Entenda-se, porém, que não considero necessária a uma aliança de esquerda, popular e patriótica, uma base marxista.
Façamos uma viagem até muito atrás. Em 1974, ainda havia uma grande parte de proletariado industrial e agrícola, em que o PCP tinha grande influência. Entretanto, já tinha mudado bastante a relação de forças noutro sector importante, o intelectual (predominantemente o estudantil) em que, no fim da década de 60, o PCP perde posições para os socialistas e principalmente pra variadas correntes maoístas, hoje absorvidas pelo PS e pelo PSD. Entretanto, tinha-se desenvolvido uma ampla pequena burguesia de funcionários, pequenos empregados, que acorda politicamente com as posições moderadas, a jeito das democracias liberais, do PS, nas camadas urbanas, e do PSD, nas camadas da pequena burguesia nortenha, provinciana e rural. O sistema partidário estabilizou-se em três polos principais, PS, PSD e PCP.
Significa que, em polarização, o confronto faz-se em torno do dipolo democracia e totalitarismo, explodindo no 25 de Novembro. Mais tarde, e durante toda a fase da aproximação à Europa, por o PS ter posto o socialismo na gaveta, ter jogado tudo na união europeia e nunca ter precisado do PCP para uma maioria governativa. Goste-se ou não, com um PCP sempre firmemente agarrado aos seus valores, e à defesa depois do colapso do sistema soviético, e com um PS cada vez mais descaracterizado, terminando na sua veneração por uma terceira via blairiana, passou a ser impossível pensar-se em alianças. E nem isto tinha muito sentido, por não haver uma ameaça de direita suficientemente forte, antes da supremacia do neoliberalismo e do domínio da política da crise pelo pensamento único europeu.
O que eram as camadas sociais de então? O proletariado (operariado industrial e trabalhadores assalariados rurais e das pescas), a pequena burguesia de economia familiar e sem empregados em número significativo (artesãos, pequeno comércio), a pequena/média burguesia dos empregados, os intelectuais e quadros técnicos, os pequenos e médios empresários empregadores, já membros da burguesia, tal como os quadros administrativos e dirigentes, e, finalmente, a grande burguesia. Porque é que já não ouvimos falar nesse termos, só em eufemismos? O que se chama classe média é uma amálgama de sectores sociais com rendimentos, interesses, valores, níveis culturais e educacionais muito variados.
Entretanto, e em boa parte pelas mudanças económicas decorrentes da adesão à união europeia, julgo que mudou substancialmente a estrutura social, com reflexos nas projecções ideológicas e na forma de se ver a política. Aumentou enormemente o sector dos serviços, com escassa solidariedade orgânica, muita competição entre colegas, egoísmo. Sem bases, reconheço, julgo que devem ter engrossado consideravelmente a votação de direita. Decresceu o proletariado industrial e principalmente o agrícola e das pescas, o que, com a debilidade por insegurança laboral de amplos sectores do pequeno empregariado, retira apoio fiel ao PCP e ao movimento sindical. No extremo oposto, foram cada vez mais hegemonizados ideologicamente os quadros gerentes e técnicos, a reverem-se socialmente na alta burguesia e captados pela ideologia liberal e seus partidos. E, talvez a principal mudança, a democratização do sistema educativo, fez crescer uma grande camada de pequena burguesia, mesmo da mais baixa pequena burguesia, com educação superior, abalada entre as influências culturais de origem e as universitárias, e presa de ideologias confusas, vagamente contestatárias e principalmente em revolta com uma sociedade que os confronta com desemprego insustentável, precariedade de vida, dependência dos pais, impossibilidade de constituir família, em contraste com os tempos dos seus pais, em que o diploma era tudo na vida.
Com isto, a polarização “democracia” (PS e PSD) e “totalitarismo” (PCP) complicou-se com um novo polo, de jovem esquerda intelectual, desestruturante, inconvencional, ávido de alinhamento em experiências estrangeiras pós-modernistas, congregação de correntes antes visceralmente antagónicas (trotskistas, maoístas, neocomunistas), preocupação com a ocupação mediática. A princípio o BE, agora o Livre e tudo o que aparece em resposta a um apelo emotivo à convergência de esquerda. Repare-se que não se pede uma afirmação ideológica, antes um simples papel instrumental, para “agarrar o PS”. Triste destino de uma nova história política!
Tudo com grande fragilidade teórica, pouca determinação prática, distanciamento elitista do trabalho social autárquico e sindical, sobrevalorização de figuras mediáticas. Anos depois, é o que ainda faz sair figuras tão obscuras e ideologicamente tão infantilmente (?) ambíguas como Rui Tavares ou Pablo Iglesias.
Assim, é um logro pretender-se reduzir a estrutura social a proletariado (diminuído e preso ao PCP e vice-versa) e a classe média, aberta a novas soluções, como faz sistematicamente Daniel Oliveira, como base teórica das suas propostas políticas. Não há classe média, como pretendi demonstrar. Há um conjunto de camadas ou sectores sociais móveis, entre os dois polos do sistema actual, os capitalistas e os proletários. O resto está em mudança acelerada, muito em função das mudanças técnicas (o pós-industrialismo, o pós-taylorismo, o “capital humano” – expressão de que não gosto), mas também da hegemonia cultural e ideológica que “compra” alienatoriamente a consciência de classe.
Eu creio que Daniel Oliveira não consegue captar a complexidade da estrutura social actual, reduzindo tudo, nas suas análises, a “classe média”. Talvez seja coisa útil para quem quer usar o seu espaço mediático, mas não é rigoroso. E viu-se o que deu o 3D. Mais problemático foi tê-lo lido a dizer que continuava os seus contactos, a título pessoal. Isto quando, honestamente, o 3D anuncia que termina a sua acção. Mas há egos descomunais.
Eu não pretendo que todos os interessados no debate de uma aliança de esquerda pensem nestes termos, embora esteja convencido de que, não o fazendo, começam logo por ter dificuldades em perceber o que é a esquerda. Mas certamente o que não podem é pensar em alianças misturando alhos com bugalhos. É preciso compreender a natureza de cada partido para se poder imaginar como os sentar à mesa.
Este texto é interessante, mas, a meu ver, tem um problema estrutural: as premissas em que se apoia no seu propósito de ajudar ao debate teórico para a construção de uma unidade de esquerda. Não fora esse objectivo e poderíamos a partir daqui escrever linhas, parágrafos, monografias -. todas com potencial interesse, que fique claro. Mas, sendo aquele o objectivo, importaria talvez assentar no seguinte: os partidos políticos, inspiram-se (filiam-se) em grande correntes doutrinárias e, a partir dessa matriz genérica, constroem os seus programas e estatutos. Nos anos do pós 25 de Abril, houve uma objectiva aliança táctica - negar isto não é só preconceito, é também ignorância dos factos - entre as forças mais à direita do espectro político-parlamentar e o PS, tendo em vista suprimir da cena política o PCP, tão inconveniente a uns como a outros e muitas vezes pelas mesmíssimas razões. Naturalmente que os anos entre 1986 e 2001 - especialmente esses - foram anos triunfalistas para estas forças políticas e para os interesses que por detrás delas se movem: CEE, fundos estruturais, desemprego em níveis historicamente baixos, sobretudo por força da bolha imobiliária, queda do muro de Berlim e da URSS, capitulação de muitos partidos comunistas europeus, em suma, "O Fim da História". Sucede porém, que nem a natureza classista do Capitalismo, nem as contradições que lhe são inerentes se modificaram e o futuro que alguns anteviam (os avisos sobre as consequências do procsse de integração europeia e os mais gravosos resultantes da adesão à UEM, foram feitos de forma exclusiva pelo PCP), tornou-se infelizmente, presente. É neste caldo de cultura que surgem inquietações com a morte do PCP que nunca mais acontece, com o seu progressivo rejuvenescimento, com a sua tendencial penetração em camadas sociais que não têm sido historicamente as suas, mas sobretudo, preocupações com a coerência alicerçada numa doutrina, num programa e num compromisso com os problemas concretos de pessoas determinadas. O BE julgou pois poder dispensar o PCP e até sentiu necessidade de se afastar (o sempre jovem Louçã que vi de cócocras num qualquer aniversário do Mário Soares, na mesma genuflexão de quem beija o anel do Cardeal, fazia sempre questão de sublinhar que enquanto um havia nascido no princípio do séc. XX outro nascera no início do séc. XXI) Quanto ao PS, insistir em o catalogar de esquerda, é um devaneio.
ResponderEliminarA unidade de esquerda forjar-se-á no patamar da firmeza das convicções, da verdade, da proposta, unindom, esclarecendo e mobilizando cada vez mais pessoas, em vista da construção desse elemento-chave que se chama consciência de classe. Venham de lá esses contributos de pés bem assentes no chão que logo se fará a pouco e pouco, essa separação fundamental entre o trigo e o joio. Daí é que nascerá a unidade. O resto é muito bonito, muuito teórico, muito elevado, mas não transforma nada, rigorosamente nada.
Francisco, tenho alguma dificuldade em ver em que é que, no essencial, estamos em desacordo. Simplesmente eu quis, para maior eficácia (não lhe chame oportunismo) usar uma linguagem e uma estrutura de exposição menos formatada do que o seu comentário. Atenção: por formatado, longe de mim diminui-lo. São questões de estilo.
ResponderEliminar1. As premissas programáticas para um governo de esquerda (não tenho usado a expressão de "unidade", mas de "diálogo" e "convergência", que são coisas diferentes) já foram expostas em inúmeros textos meus sobre a Europa, Portugal, Estado Social, etc. Não se pode começar o mesmo debate todos os dias em todos os textos.
ResponderEliminar2. O ponto de vista em que eu refiro a classe média (não costumo falar de proletariado, expressão que hoje considero carregar mais equívocos e vontades do que instrumentos de análise) é sempre o mesmo: para falar do Estado Social, do acesso universal, da aliança social que em torno dele se constrói e da relevância que isso tem para a democracia. Ou seja, não uso a classe média como uma forma de compreender os conflitos sociais mas apenas na sua relação de necessidade com o Estado Social, que é o tema central de todos os confrontos políticos a que assistimos (onde ser ou não ser marxista tem sido, na prática, irrelevante). Como o Estado Social e a sua preservação é o fundamental dos tais "factores de união", é nesta perspectiva que falo de "classe média" e de "esquerda".
3. Defender que o PCP é um partido de classe é assumir a própria retórica do PCP para o analisar, coisa bastante comum em ex-comunistas. O PCP defende, no essencial, o mesmo que defende um qualquer partido social-democrata: o Estado social (que não é obra sua), os direitos laborais comuns a qualquer sociedade capitalista regulada e a manutenção da soberania no Estado-Nação. E por isso representa, no essencial, os mesmos grupos sociais do resto da esquerda. As dificuldades na relação com o PCP não são de representação social ou ideológicas. São de história, tradição e modelo de partido. Pois o PCP reserva para si mesmo o papel de defesa de um legado histórico. E pouco mais.
4. O problema não é não conhecer as minhas premissas. Escrevendo eu de forma tão prolixa, seria difícil tal suceder. O problema é que, estando em terra de ninguém, faz uma análise política socorrendo-se de um marxismo bastante estreito, quer na análise das classes sociais quer na sua suposta representação política. E isso torna, de facto, a nossa conversa num diálogo de surdos. Até porque, sendo marxiano, não sou mesmo marxista.
Um problema oftalmológico (espero que passageiro) obriga-me a afastar-me da escrita. Depois responderei.
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