Quando começou a crise, era de esperar que se abrisse um precipício para a queda das instituições privadas de ensino superior (IPES), universidades e politécnicos. Não foi assim, e é instrutivo analisar porquê.
As famílias teriam muito maior dificuldade em colocar os seus filhos nas IPES? É certo, mas merece ponderação. As propinas não aumentaram, em geral, e as IPES começaram a adoptar práticas de facilitação para as famílias, com negociação dos encargos, deferimento de dívidas, facilitação do pagamento de taxas de diplomas. O que aconteceu é que esta redução da receita foi feita à custa de considerável redução da despesa, não só e principalmente com o pessoal, mas mesmo com a despesa directamente ligada à qualidade do ensino, em particular as aulas práticas, os seus consumíveis, ou as saídas de estudo.
Também se admiram alguns de que o aumento de vagas nas universidades públicas e mais ainda nos politécnicos (no total, 14176 vagas sobrantes de 51461 iniciais) não tenha feito baixar as candidaturas às IPES. De facto, teve, a nível que, ao que me dizem, anda por 10-15%. É uma taxa considerável que, como disse, só pôde ser compensada pela enorme contracção da despesa, com consequente diminuição da qualidade.
É necessário decompor essa maior disponibilidade de vagas no ensino público, para se ver se ela tem ou não efeitos na entrada nas IPES, cuja oferta é muito assimétrica. Quase não têm tecnologias (e quando têm, sofrem as maiores quedas) e concentram a sua massa estudantil em Direito, Economia e Gestão, Comunicação Social e Informática e Multimédia. As ciências e tecnologias da Saúde foi chão que deu uvas, assim como a arquitectura, mas por razões de empregabilidade.
Todas as vagas de Direito e de Psicologia das públicas ficaram preenchidas. As públicas ofereceram 322 lugares na área das Ciências políticas e das Relações internacionais e foram todos preenchidos. Na Economia e Gestão é que ficaram algunas vagas, 196 em 923. As privadas ainda conseguem ser supletivas nestas áreas, mas até se ver. De qualquer forma, têm de ir ao sabor da onda, sem liberdade para uma estratégia própria.
Uma obscura alteração legislativa também deu alento às IPES, apesar do apregoado rigor do ministro Nuno Crato. O sistema de graus e as suas exigências era regulado pelo DL 74/2006 e foi depois alterado pelo DL 115/2013. Com níveis diferentes de exigência em relação a cada grau, impunha-se um mínimo de requisitos quantitativos e qualitativos em relação ao pessoal docente. Por exemplo, uma licenciatura precisava de um corpo docente com maioria de doutores, tal como o mestrado, que exigia também que “desenvolvam actividade reconhecida de formação e investigação ou de desenvolvimento de natureza profissional de alto nível”. Ora o DL 115/2013 passou a aceitar que essa investigação de qualidade tanto possa ser praticar intramuros como em outros centros de que o docente faça parte.
Quanto a doutoramento, estipula o DL 74/2006 que “ só podem conferir o grau de doutor numa determinada área as universidades que: a ) Disponham de um corpo docente próprio, qualificado nessa área, cuja maioria seja constituída por titulares do grau de doutor, e dos demais recursos humanos e materiais que garantam o nível e a qualidade da formação adquirida; b ) Demonstrem possuir, nessa área, os recursos humanos e organizativos necessários à realização de investigação; c ) Demonstrem possuir, por si ou através da sua participação ou colaboração, ou dos seus docentes e investigadores, em determinadas instituições científicas, uma experiência acumulada de investigação sujeita a avaliação e concretizada numa produção científica e académica relevantes nessa área.”
Tudo isto é redondo. Conheço programas de doutoramento, em públicas e privadas, em que a maioria dos orientadores de tese são doutorados sem qualquer qualificação superior, sem publicações pós-doutorais, sem agregação, sem concursos. E que, com o novo sistema de avaliação de desempenho, se batem furiosamente para ficar com esse encargo, ultrapassando colegas mais experientes.
Porque é que isto é tão importante, para as privadas? Porque o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES, L 62/2007) estipula que só pode ser reconhecida como universidade privada a que pode (…) “d) Desenvolver actividades no campo do ensino e da investigação, bem como na criação, difusão e transmissão da cultura; e) Dispor de centros de investigação e desenvolvimento avaliados e reconhecidos, ou neles participar.”
Repare-se no que respeita a centros. “Avaliados e reconhecidos” é, consensualmente, o processo a cargo da Fundação da Ciência e Tecnologia. Tendo feito uma pesquisa rápida, confesso, só encontrei duas IPES que estivessem nessa situação, mas cada uma apenas com um centro, quando as públicas têm dezenas de centros cada uma.
Posteriormente, como disse, o DL 115/2013 veio dar uma ajuda, ao permitir que a qualidade da investigação científica dos docentes seja aferida não só pela que é praticada na própria universidade como também noutros centros em que o docente exerça actividade. No entanto, isto não ajudou muito, porque muitos desses docentes, com grande qualidade e a investigarem em centros de excelência, para obterem bolsas ou contratos com a FCT, tiveram de rescindir os contratos com as IPES.
Também o artº 47º estabelece requisitos mínimos em relação ao corpo docente, a nível global:
“1 — O corpo docente das instituições de ensino universitário deve satisfazer os seguintes requisitos: a) Preencher, para cada ciclo de estudos, os requisitos fixados, em lei especial, para a sua acreditação; b) Dispor, no conjunto dos docentes e investigadores que desenvolvam actividade docente ou de investigação, a qualquer título, na instituição, no mínimo, um doutor por cada 30 estudantes; c) Pelo menos metade dos doutores a que se refere a alínea anterior estarem em regime de tempo integral.
2 — Os docentes e investigadores a que se referem as alíneas b) e c) do número anterior: a) Se em regime de tempo integral, só podem ser considerados para esse efeito nessa instituição; b) Se em regime de tempo parcial, não podem ser considerados para esse efeito em mais de duas instituições.
Na prática, isto é uma ficção. O que é tempo inteiro? Nas universidades públicas, é cumprir uma carga de trabalho semanal de 35 horas, incluindo carga docente, investigação, preparação de aulas, estudo, etc. Nas privadas, ninguém sabe o que é. Em algumas, talvez a maioria, os docentes são pagos à hora e só lá vão para darem as aulas. Nem um sítio decente têm para estudarem ou receberem alunos. Tutoria é coisa inexistente, mesmo nas que se afirmam pioneiras de Bolonha.
A constrição a que mais dificilmente escapam diz respeito ao mínimo de ciclos de estudos (L62/2007, arte 42º): “i) Seis ciclos de estudos de licenciatura, dois dos quais técnico-laboratoriais; ii) Seis ciclos de estudos de mestrado; iii) Um ciclo de estudos de doutoramento em pelo menos três áreas diferentes compatíveis com a missão própria do ensino universitário.”
Com alguma complacência da avaliação, parece que não estarão em risco no que se refere a licenciaturas e mestrados. Outra coisa são os doutoramentos, em muitos casos à tangente e com nível por vezes duvidoso.
Uma universidade, a que tem melhor posição, tem como orientadores de doutoramento (doutoramentos desdobrados para fazer número) uma maioria de professores que não pratica qualquer investigação (se tiverem paciência, vejam os currículos). Outra tem 7 programas de doutoramento, mas cada um com 4 ou 5 doutores e de fraco currículo. Outra tem só dois doutoramentos, abaixo do mínimo legal, mas continua em funções. Outra, nem um doutoramento tem. Parece-me complacência a mais da A3ES.
Para ter uma noção rigorosa das IPES, é preciso ter dados e recursos de análise para aferir da sua qualidade. Isto é muito difícil, porque elas estão mergulhadas numa lógica de marketing que falseia a transparência dos dados. Não é coisa de somenos, porque as famílias que lhes pagam a educação dos filhos têm direito a ser devidamente informadas, como “stakeholders”, de relatórios de confiança sobre a qualidade das universidades. O ensino superior não é um simples negócio, porque desempenha uma muito relevante actividade social.
Desenvolverei este tema em próximo artigo, mas deixo algumas notas.
i. Não há um estatuto de carreira docente que garanta a qualidade nos processos de recrutamento e de progressão.
ii. Ao contrário das universidades públicas, em que a escolha do reitor é hoje feita por um processo de selecção exigente, conjugando critérios estratégicos e de gestão, ela depende nas IPES de decisões discricionárias da entidade instituidora.
Em conclusão: é possível que as IPES se consigam manter, mas, a meu ver, em marcha acelerada para a perda de qualidade.
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