terça-feira, 17 de maio de 2011

Sobre memos (conclusão?)

Afinal, parece-me agora que não é muito difícil deslindar a confusão dos dois memos ou cartas ou documentos, para a UE, para o FMI ou para ambos, assinados ou não em conjunto com o Governo. Só o percebi hoje, numa segunda leitura do MoU e não percebo como não tinha dado antes por isso. Diga-se que estive bem acompanhado na dificuldade de perceber. Talvez fosse mais sensato deixar cair este assunto, que começa a poder ser considerado uma discussão oca, mas acho que, tendo suscitado dúvidas, é meu dever esclarecer, tanto quanto penso que o posso fazer. Com isto, creio que concluo.
Recordemos. Circulam por aí dois documentos, sem assinatura, sem indicação de autoria, um deles até sem data: 1. O “Portugal: memorandum of understanding on specific economic policy conditionality”, a que chamei e vou chamar o MoU e que foi divulgado dia de aprovação do acordo e da conferência de imprensa da “troika”. 2. Um memorando unilateral intitulado “Portugal - memorandum of economic and finantial policies”, a que vou chamar o MEFP e que, tanto quanto sei, apareceu pela primeira vez apresentado por Louçã, no debate com Sócrates, como carta posterior dirigida ao FMI. 
Confusão: para alguns, o MoU dizia respeito à UE e o MEFP ao FMI. Para outros, eu incluído, o documento de pré-acordo com a “troika” era o MoU, sendo o MEFP um documento do governo, de descrição de políticas, com objetivos mal definidos (documento de trabalho para a negociação do MoU?). Ainda para outros, o documento acordado com a “troika” era só o MEFP. Outros afirmaram que estavam no MoU coisas que só aparecem no MEFP e chamaram MoU ao MEFP. Tudo isto apontei nas entradas anteriores.
Tendo criticado esta confusão e o mau uso de termos por parte de responsáveis políticos e jornalistas, quero deixar claro que não faço processos de intenção, suspeitando de manipulação propositada.
O elemento essencial de esclarecimento em que - penitencio-me - só agora reparei, é que o MoU refere o MEFP, dá-lhe clara importância. Logo no preâmbulo, diz o MoU “release of the instalments will be based on observance of (…) a positive evaluation of progress made with respect to policy criteria in the Memorandum of Economic and Finantial Policies” (“A libertação das prestações será baseada na  condição de (…) uma avaliação positiva do progresso feito em relação aos critérios políticos do memorando … - MEFP”).
Portanto, ambos os documentos valem em conjunto e articulam-se, embora com algum afastamento da caracterização formal deste tipo de documentos. Como escrevi e é coisa bem conhecida para quem anda envolvido em negociações de qualquer tipo, um “negócio” traduz-se formalmente num contrato, num acordo, num protocolo, até num tratado. Numa fase preliminar, pode-se redigir um documento menos vinculativo, um memorando de entendimento, como é o MoU de que estamos a falar. É sempre bilateral e, por isto, referindo “as duas partes”, “as duas entidades”, “os dois governos” (ocasionalmente, mais do que dois). Ou então, despersonaliza-se e diz-se apenas “vai-se fazer…”, como é o estilo deste MoU.
Na terminologia em língua inglesa, um MoU também se chama “letter of intent”, carta de intenções, assinada por ambas as partes. No entanto, também se chama por vezes carta de intenções a uma declaração unilateral, de uma só das partes, geralmente dirigida à outra. Claro que um memorando deste tipo é só assinado por essa parte, que aparece personalizada no texto. Parece óbvio que é o caso do MEFP, em que “we”, o governo, declara a intenção de desenvolver uma determinada política. E, de facto, essa política de compromisso com as regras do resgate está mais desenvolvida e clara no MEFP, unilateral, do que no MoU bilateral. Não fosse, como disse, o MoU ficar condicionado ao cumprimento do MEFP, é possível - arrisco opinião jurídica de leigo - que se levantassem dúvidas sobre o valor contratual de cada um dos dois documentos. Mas isto é discussão para juristas, não para mim.
A expressão “policy conditionality” no título do MoU é hoje corrente neste tipo de negociações ("googlem" e apanham-na em muitos processos de "ajuda") mas não é feliz, neste caso, porque não serve para distinguir essencialmente os dois documentos. De facto, o MoU, como diz esse título, lista condições que Portugal tem de cumprir para receber o empréstimo de resgate, mas afinal aquilo que, até com maior amplitude e desenvolvimento, já figura no MEFP. O que se pode dizer é que o MoU dá mais ênfase à calendarização e ao processo de monitorização das medidas com que o MEFP compromete o governo. Ou então, para ser maldoso, a distinção entre os dois documentos serve principalmente para “vergar” Portugal com um documento, o MEFP, que não é transparentemente um acordo negociado amigavelmente entre as partes, que parece mais uma contrição de baraço ao pescoço.
Afinal, todos estes aspetos formais não deixam de ser importantes, porque em política não há formalidades insignificantes e principalmente porque podem levar a suspeitar de que os erros de domínio da terminologia e dos processos formais possam ter intenções de “agitprop”. Mas mais importante é a matéria substantiva. Ela é a política de submissão aos “resgatantes” que passa por todo o MEFP. Neste sentido, obviamente que eu ter aparentemente desvalorizado o MEFP, em termos formais e de valor contratual (que, repito, estava longe de parecer evidente), não impede que, politicamente, ele seja muito mais importante do que o MoU, que até o invoca como base, tal como disse acima. 
Finalmente, nenhuma confusão teria havido se o governo, cumprindo o seu elementar dever de transparência, tivesse publicado ambos os textos e explicado o seu valor contratual e legal. Isto faz-me lembrar o que diz um texto explicativo do que são os memos de entendimento (MoU), que muitas vezes eles são usados como subterfúgio para evitar formas de acordo ou contrato que teriam de ser tornadas públicas ou homologadas.

E acabo esta discussão, porque, infelizmente, há coisas mais importantes, desde logo muito mais o que diz o memo do que o que é um memo.
Nota - E se quisesse voltar a complicar mais a questão, chamaria a atenção para que afinal os documentos em causa não são só estes dois que temos estado a discutir, mas sim três. O MoU refere ainda um outro (anexo do MEFP?), o “Technical memorandum of understanding” (TMU), que julgo que ninguém conhece. E não é para que confundir que um MoU chame um MEFP que é uma carta de intenção e não um memorando de entendimento, mas que parece incluir um desconhecido documento que volta a ser um memorando de entendimento?

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