sábado, 14 de maio de 2011

Sobre memos (continuando)

Não tinha intenção de escrever esta entrada, que pode parecer um pouco professoral e pretensiosa (se assim o considerarem, desde já as minhas desculpas), mas talvez se justifique tendo em conta mensagens com dúvidas que recebi e que manifestam alguma confusão ou desconhecimento de terminologia. Vou-me repetir, mas tentando ser mais esclarecedor e cingindo-me às definições consagradas. Se não nos entendemos nos nomes nunca nos entenderemos nas coisas. Norma básica de investigador, para quem a terminologia é matéria essencial.

O que é uma carta toda a gente sabe mesmo o Sr. La Palisse. Mas em que diferem um memorando tradicional (memo, para abreviar) e um memorando de entendimento (“memo of understanding”, MoU)? Por razões profissionais, memos fiz muitos e continuo a fazer. MoU faço mais recentemente, quando antes fazia ou propunha apenas acordos, convénios ou protocolos.

Um memo, tradicionalmente, é um texto unilateral em que uma pessoa expõe a outra um assunto, com fundamentos, alternativas, prós e contras, etc., para fundamentar uma decisão. Muito vulgarmente, um assessor a escrever a um administrador. Coisa velha até na nossa diplomacia, os “papeis amarelos”. Pode-se assemelhar a um relatório, a um parecer, a uma proposta, a um estudo. Pode ser solicitado ou da iniciativa do próprio. Obviamente, não tem qualquer valor legal e não compromete nem o autor nem o destinatário. Tem natureza essencialmente informativa. Relendo o tal memo para o FMI, convenço-me de que é mesmo um memo deste tipo tradicional, em que dá a saber o que são as políticas já adotadas e medidas previstas pelo governo. Não há uma única frase de compromisso e nem uma vez é mencionada a outra parte, o FMI.

Os MoU relacionam-se com os tradicionais acordos (designo assim, em geral, acordos, convénios, protocolos, etc.). São mais recentes, principalmente em Portugal e refletem a maior complexidade da elaboração dos acordos. Antes, de uma conversa entre as partes, passava-se quase diretamente à redação e assinatura de um acordo. Hoje, é frequente que o acordo tenha de passar por níveis sucessivos de decisão, mas em que cada nível quer estar seguro de bases adquiridas em níveis inferiores ou em fases anteriores. É para isto que servem os MoU, que traduzem o acordo preliminar estabelecido entre negociadores para depois ser consagrado em acordo formal. No entanto, consoante os termos concretos do MoU, ele pode já ter caráter vinculativo e legal, podendo ser um subterfúgio para evitar formalidades, como a aprovação por parlamentos ou por órgãos com competência exclusiva.

Portanto, não é um simples documento informativo, traduz já um grau maior ou menor de compromisso. No entanto, em princípio, mas com exceções, não é ainda o compromisso final. Por exemplo, no caso presente, o MoU negociado com a “troika” servirá de base para a decisão final, que compete à Comissão europeia ou ao Ecofin, ao governo do BCE e à direção do FMI. Por isto é que o acordo final até pode vir a ter algumas diferenças, como se está a ver pelas notícias de condições adicionais exigidas pela Alemanha e pela Finlândia.

Em conclusão, para quem conhece minimamente estas coisas - e devia conhecer se responsável por qualquer instituição com práticas de negociação, seja uma empresa seja um partido - o texto divulgado por Louçã, no debate, é um memo tradicional, informativo, como imagino que deve ter havido dezenas na fase de negociação. Tanto quanto consigo perceber, o único MoU, envolvendo o governo e os três componentes da “troika” é, como o próprio nome indica claramente, o “Portugal: memorandum of understanding on specific economic policy conditionality” (reproduzido na figura).

Nota 1 - um pequeno pormenor que devia ter saltado à vista. Em todo o texto do tal memorando, enumeram-se as medidas já tomadas ou a tomar com frases de tipo “our program…”, “we will…”, “we have taken care…”. É óbvio que este plural não pode ser de governo + FMI, que não teve nenhum programa nem tomou nenhuma decisão. “We” é o governo, que obviamente não escreve “I”. Portanto, é um documento unilateral, de forma alguma um MoU entre duas partes. Em parte nenhuma se usa esta fraseologia no verdadeiro MoU.

Nota 2 - Espanta-me que nenhum jornalista tivesse dado por isto, tanto mais que as afirmações de Fazenda tiveram destaque de conferência de imprensa. Mas mais me espanta que ninguém do aparelho propagandístico de Sócrates tivesse usado isto para descredibilizar tecnicamente Louçã. Devem estar bons para o chefe, sabem imenso de matreirices mas nada de coisas sérias.

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