sexta-feira, 13 de maio de 2011

Jogos de palavras (I)

Este blogue renascido começou com uma entrada em que escrevi o seguinte: “um enorme desafio à esquerda, que entre nós - veja-se o tom do debate presidencial - continua a ter um discurso tradicional. Veja-se a quantidade de gente do meu tempo que anda a escrever posts em blogues no mais velho estilo de política retórica. Ainda não perceberam que hoje o discurso político domina bem a economia política ou não tem credibilidade contra esse horroroso emprenhamento pelos ouvidos que os "economistas" de serviço estão a fazer?”. 
Faz-me impressão ler nestes dias autores políticos que muito considero, com quem muitas vezes tenho velhas afinidades e solidariedades, mas que se deixaram ficar para trás, no disse-que-disse, mentiu ou não mentiu, na análise exaustiva dos truques partidários, das tricas entre produtos da mediocridade partidária. Tendo a chamar a isso “política impressionista”, dominada por uma visão de ideologia abstrata. É jogar no sistema, mesmo que criticamente. E é esquecer que hoje, “it is the economy, stupid!”.
Mas isto tem riscos, porque a economia é “ciência” (agora não tenho tempo para justificar as aspas, com a minha visão de cientista de toda a vida) complexa e difícil de dominar. Sapateiro a subir acima da chinela é coisa horrorosa, mas quem, como eu, quer olhar para a política como cidadão tem de se arriscar a juízos de amador sobre a economia. Mas é no fio da navalha e com sentido de modéstia, como não é o caso que hoje me impressionou. Mais uma vez, a incapacidade de resistir a um convite televisivo, de dizer como muitas vezes digo, “obrigado mas não vou, não é a minha área de conhecimento”. Sobre gripe ou BSE, por exemplo, falei frequentemente na TV, sim!
O debate entre Louçã e Sócrates foi hoje longamente comentado por um jornalista veterano, muito respeitável, generalista mas com maior interesse no jornalismo cultural. José Carlos de Vasconcelos, homem da minha geração, com formação jurídica tradicional. Disse coisas espantosas, depois glosadas por telespetadores que usaram ipsis verbis o seu discurso.
Para o comentador, uma diferença radical vista ontem entre Louçã e Sócrates é que o primeiro defende a reestruturação da dívida e o segundo defende a renegociação da dita. Espantoso, repito. Desde logo, nem sendo essencial, não é verdade que tenha havido essa diferença de terminologia. Cada um usou indiferentemente os dois termos. Se o comentador, antes de ir ao estúdio tivesse feito algum trabalho de casa (coisa de que pouco se cuida entre nós, porque ninguém precisa de refrescar a sua enorme cultura), teria dado logo, por exemplo e para me ficar pela imprensa, que não por tratados de economia, com uma passagem do glossário uma vez publicado pelo Jornal de Negócios, com total equivalência dos termos: 
Reescalonamento, reestruturação, renegociação de dívida: É um processo com consequências semelhantes aos descritos no ponto anterior, mas ocorre ainda antes de os Estados chegarem ao "fim da linha". Os governos tomam a iniciativa de se sentarem à mesa com os credores, antes de entrarem em incumprimento. A História mostra que esta antecipação costuma ser premiada pelos investidores.”
Sócrates tinha dito que “reestruturar a dívida seria absolutamente trágico”. Que significava um calote aos credores, chamando a atenção para a vergonha que isto é para qualquer pessoa (esta de comparar economia do Estado com economia das famílias é velha lição salazarista…). O comentarista vai mais longe, apoiando Sócrates. Segundo ele pensa que Sócrates pensa, renegociar não é calote, reestruturar é que sim. Renegociar até se calhar vai ter de se fazer, mas reestruturar nunca, que teria alto preço e seria uma desonestidade, o tal calote. O nome da rosa! Isto é, sujar as calças com fezes evacuadas não é mau, feio é borrar-me nas calças.
“Até quando, TV, vais abusar da nossa paciência?”. Entre a unanimidade dos economistas de serviço à hegemonia neoliberal e a ignorância desinformadora de comentadores, venha o diabo e escolha.

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