Cada vez mais se esbatem as fronteiras entre as ciências naturais e exatas e as ciências sociais. É bom, mas é necessário clarificar essa relação no espetro da ciência. Sem me querer desviar do intento desta nota, fico por algumas características essenciais do que devem ser os critérios mínimos para a caracterização como científica de uma investigação em ciências sociais: racionalidade na hipótese, na relação entre os antecedentes que conduzem à investigação, objetivação do problema, quantificação e tratamento correto dos dados, isenção ideológica.
Numa área que indiretamente me diz respeito, a saúde pública (SP), parece-me haver uma grande mistura entre trabalho científico e trabalho “ensaístico”.
A SP começou por ser, e até ao meu tempo de jovem médico, quase que exclusivamente uma área de investigação estritamente baseada na ciência em sentido convencional. Ou era epidemiologia, um ramo particular da estatística, para conhecimento da situação da saúde e da doença (não só das doenças infecciosas) nas suas diferenças étnicas, geográficas, sócio-económicas, culturais, etc., até, hoje muito importante, nas consequências para os cuidados nas viagens para destinos exóticos Ou era investigação, com ensinamentos práticos, sobre prevenção das doenças e promoção da saúde, com relevo para a investigação sobre vacinas. Tudo isto é, indiscutivelmente, ciência.
Depois, começou a vaga das políticas da saúde: saúde comunitária, sistemas de saúde, saúde na globalização, etc.. Começo logo por desconfiar da associação de termos política e investigação. É raro eu ler um trabalho em “ciência política” em que não seja evidente um desvio ideológico.
É o mesmo no caso de muita coisa dita de SP, não mais do que discussão de questões sem critério científico, sobre a política e organização institucional da saúde. Sem análise de dados, sem estatística, sem comparações parametrizadas, muitas vezes sem qualquer estudo de terreno, tudo em trabalho de gabinete, ideológico, literário, mas certamente não científico. Nem sequer com recurso a dados objetivos, cientificamente ratados, sobre as condições sanitárias concretas.
Não falo por falar. Embora não goste de sobrecarregar os leitores com muitos dados concretos e referências (mas forneço-os sempre que pedirem) faço sempre trabalho de casa antes destas notas. Li vários artigos de três eminentes especialistas da Harvard T.H. Chan School of Public Health. Confirmam inteiramente o que escrevi. Mesmo os de política da saúde são objetivados e quantificados.
Li depois alguns de eminentes investigadores portugueses. Tudo literário, opinativo, não objetivado. Perguntei-me: em que difere isto de artigos de opinião em jornais, tantos que escrevi, por exemplo sobre política universitária? Mas nunca inclui essas coisas no meu currículo científico.
Falei de saúde pública porque julgo saber do assunto. Mas não se passará o mesmo em outras “ciências sociais”? Antes que me façam uma crítica óbvia, isto é uma pergunta, não uma afirmação generalizante.
(Imagem: o escudo da Harvard T.H. Chan School of Public Health)
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