O juiz.conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, figura muito respeitável, propões hoje no Público, num artigo sobre a reforma da justiça, “uma justiça participada pelos cidadãos, dando prevalência ao júri, à intervenção de juízes sociais e à participação de assessores técnicos qualificados.” Não tenho a mínima competência para discutir juridicamente com o autor, mas esta não me parece uma questão meramente jurídica.
À primeira vista, parece uma conquista democrática que, se não erro, já vem da Magna Carta, o julgamento pelos pares. Mas nem tudo o que parece é.
Logo por coincidência, tenho estado a ver o documentário em episódios da Netflix, “Fabricando um assassino” (“Making a murderer). Não garantindo que o documentário é fidedigno, embora todo feito com vídeos oficiais, dá para pensar sobre coisa que já há muito me suscita dúvidas, o sistema de júri. Em cinema, até já é coisa antiga, com os “Doze homens em fúria”.
Muito frequentemente, os casos judiciais são hoje muito mais complexos e as modernas tecnologias forenses exigem boa formação científica para a sua avaliação. Não admira que, entre nós, só se peça júri em casos “imediatos”, tecnicamente simples, mas carregados de emotividade e de reação pública.
Sabemos das histórias que havia todo o cuidado em manter os jurados isolados, sem conhecimento da informação sobre o caso, principalmente das declarações da defesa e da acusação (no documentário, vê-se a sua importância, em época televisiva, para a construção de uma opinião pré-veredicto). Isto hoje é impossível, com TV, net, sms, a menos que se mantivessem os jurados em prisão, incomunicáveis. Muitas vezes, a presunção de inocência, base civilizacional de justiça (contra os julgamentos de Deus e coisas que tal) é substituído por presunção de culpa.
Abundam também os testemunhos de jurados com juízos preconcebidos, sem capacidade de discernimento para analisar os dados objetivos e influenciáveis pelos truques dos advogados, não obstante os inócuos avisos do juiz. Também, como diz um jurado no documentário, esses jurados teimosos e asininamente convencidos tendem a vencer os outros pelo cansaço. No “Doze homens em fúria”, o jurado personificado por Henry Fonda era raciona, praticava a dúvida metódica, era inteligente e assim convenceu os outros. Mas provavelmente a maioria dessas situações é ao contrário.
Mss provavelmente o maior problema seja a incapacidade dos jurados para avaliar corretamente o valor das provas técnicas laboratoriais. Não é fácil a um não cientista lidar com os conceitos de margem de erro, de falso positivo e de falso negativo. Por exemplo, no documentário que tenho estado a ver, um dos elementos que mais deve ter pesado na condenação de Steve Avery foi a prova de que o sangue era dele e não de uma amostra colhida pela polícia, por esta conter EDTA e não ter sido detetado esse composto no material de prova. Ora é muito menos arriscado um resultado positivo (“o sangue é de Avery”) do que um negativo (“NÃO contém EDTA”). Depende da sensibilidade do teste, da calibração do aparelho que já não era usado há anos, muitas outras razões. Se um coletivo de juízes, com peritos, pode ter dificuldades, muito mais doze cidadãos comuns, semianalfabetos em muitos condados do midwest americano, poderem chegar a uma conclusão racional.
E o “beyond a reasonable doubt”? Há coisa mais difícil de definir?
No caso americano, principalmente rural, bem descrito no documentário e não me parece que importante entre nós, avulta ainda o papel da policia. Ela é de grande confiança popular. Sheriffs, acusadores, muitas vezes os juízes, são eleitos. Representam a ordem em comunidades ainda com raízes na selvajaria da conquista do território. Pô-los em dúvida, muito mais acusá-los de crime (no caso, armadilhar um caso com falsificação de provas) é ir contra o sentimento geral do povo e do júri que dele emana.
Na complexibilidade atual, prefiro o sistema de coletivo de juízes, treinados, educados, ao menos, capazes, em princípio, de se isolarem das pressões emotivas da opinião pública e com o sistema de sabedoria secular do “juiz de fora”. Com capacidade para estudarem e ouvirem opiniões especializadas sobre questões de alta tecnicidade. E com recurso a um tribunal superior com capacidade de apreciar a matéria de facto.
Na complexibilidade atual, prefiro o sistema de coletivo de juízes, treinados, educados, ao menos, capazes, em princípio, de se isolarem das pressões emotivas da opinião pública e com o sistema de sabedoria secular do “juiz de fora”. Com capacidade para estudarem e ouvirem opiniões especializadas sobre questões de alta tecnicidade. E com recurso a um tribunal superior com capacidade de apreciar a matéria de facto.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.