Creio que ninguém nega que o governo grego e o Syriza estão enredados numa profunda contradição. Por um lado, defendem firmemente (quando comparado com a “esquerda” europeia no poder ou candidata) uma política popular e patriótica. Por outro, e invocando o mesmo princípio do mandato eleitoral, respeitam em absoluto o quadro europeu e não concebem, para já, a saída do euro.
De certa forma, é também a posição do BE, um pouco ambígua em relação à reestruturação da dívida e ao euro. Mais ainda quando a clara mudança de opinião de Louçã, já não dirigente mas muito influente, talvez cause perplexidade no Bloco.
Esta corrente de esquerda radical, simbolizada pelo Partido da Esquerda Europeia, fica presa pela ideologia que acompanha o neoliberalismo, isto é, o europeísmo. Segundo Kouvelakis, da ala esquerda do Syriza, “um papel central [na difusão de posições pro-Euro] é desempenhado pelo Die Linke e o Instituto Rosa Luxemburgo. Eles cumprem o papel de difundir uma série de temas em torno de uma agenda por reformas internas na União Europeia, uma compreensão comum à crise e de que a forma para superá-la seria essencialmente ligada ao tema da redistribuição.
Por detrás disto existe a ideia que temos que mudar a correlação de forças diretamente no nível da União Europeia, evitando medidas unilaterais em escala nacional. Eles também empregam a estratégia de afirmar que o retorno ao Drachma seria uma regressão, pois expressaria nostalgia pelo velho Estado-nação e este tipo de coisa.”
Esta tal esquerda quer persuadir-se e persuadir-nos de que é possível uma solução europeia,sobre um sonho de Europa federação dos povos, promotora do Estado social e da solidariedade. Não se atende a que a União Europeia e muito mais o euro são construções assimétricas, imperialistas no interior da Europa. ao serviço da afirmação do ordoliberalismo alemão e do pensamento hegemónico neoliberal, tendo de passagem conduzido à destruição de todos os socialismos, das diversas correntes.
O PCP constitui excepção, mas não deixa de mostrar alguma incerteza, tendo passado, aparentemente, de uma prioridade à reestruturação da dívida à prioridade da saída do euro, considerando, tal como também tem defendido João Ferreira do Amaral, que a reestruturação, absolutamente necessária, só é possível sem nos constrangimentos do quadro político e ideológico europeu.Mesmo assim, basta ver opiniões bastante divergentes de economistas comunistas, como Octávio Teixeira e Eugénio Rosa, para se perceber que a procissão ainda vai no adro. Bom é que seja fundamentada em estudos económicos sólidos sobre o peso relativo das vantagens e dos contras de uma saída do sistema do euro. Digo fundamentada e não determinada, porque determinada será sempre politicamente, a nível interno eleitoral, na capacidade de luta do governo e nas forças estrangeiras hostis.
Tendo lido muito de Varoufakis, inclusive a sua Proposta Modesta (Modest Proposal, paráfrase de Jonathan Swift), tive dúvidas sobre se ele cumpria esses requisitos. Consciente das constrições estava, quando escreveu na Proposta que a Europa está aprisionada por falsas escolhas: estabilidade e crescimento, austeridade e estímulo, resgate de bancos insolventes por governos insolventes e união bancária, princípio (nos tratados) da independência das dívidas e necessidade de ajuda dos excedentários, soberania nacional e federalismo. Daí quatro constrições principais: 1. o BCE não terá autorização dos países ricos para monetizar dívida; 2. o OMT (“outright monetary transactions”) só será autorizado sem compra de títulos. 3. os excedentários não aceitam qualquer mutualização da dívida. 4. a situação económica e financeira não permite esperar-se por soluções federalistas.
Ora, contra isto, a Proposta modesta é mesmo muito modesta e limitada ao plano europeu, sem propostas internas para os países mais afectados, que é o que interessa agora à Grécia e mais tarde a nós.
Assenta em quatro políticas, em resumo: 1. programação bancária caso-a-caso, com recapitalização e nomeação de administradores pelo Mecanismo de Estabilidade Europeia (ESM, actual participante nos resgates, com o BCE e o FMI) e evitando ao máximo o “haircut” de depósitos. 2. conversão limitada da dívida nacional até ao limite de Maastricht, 60% do PIB, sem possibilidade de utilização como colaterais, e implementação do OMT. 3. plano de investimento e crescimento financiado por títulos conjuntos do BEI e do FEI, que não devem contar para o cálculo da dívida pública nacional. 4. plano de solidariedade social de emergência, orientado para idosos, jovens, desempregados, emigrantes forçados, sem abrigo, carenciados de electricidade e aquecimento, e financiado pelos TARGET2 (movimentos de capitais entre os bancos centrais).
É um plano bem intencionado, mas totalmente dependente de um consenso europeu, que joga contra, e que não resolve, a curto prazo, os problemas de falta de liquidez e de insustentabilidade da dívida dos países devedores.
Por outro lado, desde 2012 (data do segundo resgate), a posição de Varoufakis é extrema, em relação à Grécia: falência no quadro do euro, aceitando, com recurso a outras fontes, o congelamento dos mercados financeiros. Só não percebo como a eurozona aceitará isto, quando a menos radical reestruturação da divida já leva a “nein”s intransponíveis. Anote-se que, na entrevista em que defende esta posição, Varoufakis afirma ser a Proposta modesta o seu plano B. Parece difícil entender, um plano B que está nas mãos do adversário, para quando ele mostrou a força de impedir o plano A.
Os programas do Syriza
As posições programáticas do Syriza têm oscilado nas últimas legislaturas. O programa de 2012 era muito influenciado pela herança eurocomunista do Synaspismos e dava ênfase a: nacionalização da banca; nacionalização de todos os serviços públicos estratégicos (água, energia, etc.); moratória sobre o serviço da dívida; negociações para o seu cancelamento, com recurso a fundos de pensões e pequenos aforradores; auditoria da dívida. Para não haver dúvidas, diz-se “A dívida nacional é primeiro, e antes de tudo, um produto das relações de classe, que são desumanas em sua própria essência. É produto da evasão fiscal dos ricos, do saque aos fundos públicos e gastos exorbitante em armas e equipamentos militares.” Não há menção directa ao euro, podendo-se presumir que fosse matéria incluída nas renegociações com a troika, a viabilizar “por todos os meios possíveis”.
Defendia-se também “o desligamento da OTAN e fim das bases militares estrangeiras em solo grego”. Junto a ela se soma a “abolição de toda cooperação militar com Israel” e uma política de paz voltada à Turquia, inimiga histórica da Grécia
Desde então, a questão do euro é a mais problemática no Syriza. No congresso de transformação da coligação em partido, em 2013, de novo a questão do euro não é abordada explicitamente e mesmo a expressão “por todos os meios possíveis” foi eliminada do documento de fundação do partido, e a ambiguidade mantém-se: “Assim como foi expresso no nosso antigo slogan “nenhum sacrifício pelo euro”, a prioridade absoluta do Syriza é impedir o desastre humanitário e cumprir demandas sociais, e não nos submeter às obrigações assumidas por outros que hipotecaram o país. Comprometemos-nos a derrubar qualquer ameaça ou chantagem dos credores por todos os meios que conseguirmos mobilizar, estando inteiramente preparados para lidar com qualquer futuro acontecimento, tendo clareza que em tal caso contaremos com o apoio do povo grego.”
Ao mesmo tempo, algumas propostas vincadamente anti-capitalistas foram flexibilizadas pela ala majoritária do partido (60%); por exemplo, a defesa da “dissolução” da NATO em vez da saída unilateral. Também a nacionalização do sistema financeiro foi substituída pelo melhor “controle social”, o “cancelamento” da dívida externa por “renegociação”, sendo também apresentada a ideia de uma divisão da dívida entre uma parte legitima e outra ilegítima.
Daí para cá, Tsipras enredou-se em declarações no sentido realista da “recentragem” e da “respeitabilidade”, que não favoreceram a imagem de coerência do partido. Por exemplo, as famosas tiradas nos EUA sobre o New Deal e tendo então afirmado que nunca abandonaria o euro. Desde então, ficou refém da UE. Resta saber é se teria sido eleito se tivesse proposto aos eleitores a saída do euro ou a reestruturação da dívida. Da mesma forma, como veremos em próximo texto, dá-se mais ênfase à política de solidariedade do que à política económica.
Em contrapartida, a ala esquerda, “Plataforma de Esquerda”, propôs ao congresso uma séria de posições programáticas, rejeitadas pela maioria de cerca de 60%, mas sem que daí – e bem – tenha resultado qualquer cisão: 1. denúncia do memorando e, se necessário, suspensão do serviço da dívida; 2. preparação séria da eventual saída do euro; 3. nacionalização de todo o sector bancário; 4. cancelamento das privatizações em curso; 4. nacionalização sob controlo popular dos sectors estratégicos da economia (telecomunicações, energia, infraestruturas rodoviárias e aeroportuárias); 5. estratégia de alianças com a restante esquerda, excluindo a direita nacionalista do ANEL. Como se vê, estas posições reafirmam o programa de 2012, contra o arrepio decidido pelo congresso fundador de 2013.
A contestação ao congresso, principalmente pela Plataforma de Esquerda, não foi apenas programática. A questão central, contra a qual se bateu o veterano da resistência Manolis Glezos, foi a inflexão orgânica para um partido presidencialista, com supressão paulatina das tendências e com esvaziamento dos órgãos políticos, afastados da eleição do presidente pelo congresso. Segundo o respeitado dirigente Stathis Kouvelakis, o congresso ficou marcado pela falta de intervenção de activistas no terreno, pela precipitação da realização de reuniões preparatórias, pelo número inflacionado de delegados e pela teia de redes personalizadas, com vasto recurso à internet, a opção por listas fechadas exclusivas, por tendência.
O programa de Salónica, de fins de 2014 e com o qual o Syriza se apresentou às eleições de 2015, aponta principalmente para medidas sociais cuja quantificação parece dar a ideia de que seriam possíveis sem recurso a novos financiamentos da troika nem a diminuição do serviço da dívida. A lista de propostas é longa, dividida em quatro temas: enfrentar a crise humanitária; retomar a economia e promover um sistema de impostos justos; retomar os empregos; transformar o sistema político para aprofundar a democracia.
Novamente, é excluída a hipótese de saída do euro e, agora, já não se fala de “todos os meios” para garantir a renegociação da dívida,antes de um contexto europeu cuja garantia não está na capacidade do governo grego: “uma Conferência da Dívida Europeia, como ocorreu na Alemanha em 1953. Pode também ocorrer no sul da Europa e na Grécia; uma “cláusula de crescimento” na reposição da parte remanescente da dívida, para que ela seja baseada em crescimento e não no orçamento; um período significativo de suspensão (moratorium) no serviço da dívida para salvar recursos para o crescimento; excluir investimentos públicos das restrições no pacto para estabilidade e crescimento; um “New Deal Europeu” de investimento público financiado pelo banco de investimento europeu; flexibilização quantitativa pelo banco central europeu com compra direta de títulos soberanos.
Sendo Varoufakis o ministro das Finanças (mas não membro do Syriza e, ao que se diz, com pouco peso político no partido), não se fala da sua posição de 2012, insolvência no seio do euro. Não se está muito longe da Proposta modesta e, se Varoufakis falhou, não foi portanto por dogmatismo ou falta de confiança na fada europeia, mas por ingenuidade e falta de um plano B do governo grego. Lá iremos, em texto seguinte.
(NOTA – repare-se na semelhança de propostas com os novos pequenos partidos de esquerda em Portugal, mas aqui como forma de não ser tão evidente o seu namoro ao PS).
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