(Comunicação ao “Congresso da Cidadania. Ruptura e Utopia para a Próxima Revolução Democrática”, Associação 25 de Abril, 2015)
O título deste congresso contém uma expressão pouco habitual: Revolução democrática. A expressão é ambígua. Pode ser, por exemplo, para Piketty, algo de indefinido, idealista, vagamente inspirado na mera vitória do Syriza. Por mim, tomo-a como rotura qualitativa com a situação vigente e não obrigatoriamente de acordo com as normas vigentes.
Entenda-se que, como sempre que se fala em revolução, não é obrigatório que se esteja a referir uma forma violenta de revolução. O que significa é uma mudança radical da filosofia, organização e funcionamento do sistema democrático.
Não é que não seja positiva uma reclamação mais simples de mais democracia, mas o necessário é uma alteração radical do contexto político, social e económico em que ela actua.
Embora a democracia não se esgote no Estado, ele é a sua expressão essencial. Em relação à reforma do Estado inserida na revolução democrática, certamente que haverá muitas propostas concretas no outro painel. Agora, preocupa-me mais o poder: quais as constrições a essa revolução, que ideias para as superar, que forças para lutar.
O capitalismo, nesta sua fase de afirmação hegemónica sob a forma de neoliberalismo, apropriou-se da democracia, reduzindo-a um jogo de espelhos em que a cidadania não tem significado real.
A questão central ainda é a do homem unidimensional, ainda mais do que quando trabalhada por Marcuse. Com esquematismo, aceite-se o emburguesamento das classes trabalhadoras tradicionais. A par disto, vem o consumismo, o gadgetismo, a massificação, a publicidade, a aquisição de símbolos de status, a inculturação, a estupidificarão dos lazeres. E imagine-se se Marcuse pudesse adivinhar em 1964 crianças agarradas a jogos electrónicos horas e horas.
A outra ressocialização egoísta é a degradação da democracia. É numa perspectiva gramsciana – admito que curta – que ligo a revolução democrática ao combate à hegemonia ideológica e cultural do neocapitalismo. Digo assim por simplicidade de exposição porque é claro que isto não se isola da dominação política e económica.
Todos sabemos a importância do conceito gramsciano de hegemonia. Segundo ele, o poder das classes dominantes sobre as classes dominadas não reside simplesmente no controlo dos aparelhos repressivos do Estado. Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes dominantes conseguem exercer, através do controle do sistema educativo, de algumas instituições religiosas e, principalmente, dos meios de comunicação.
Destaque-se, no sistema educativo, o papel de formatação pelas escolas tecnocráticas da área social (economia, gestão, sociologia, etc.), prolongada pela cultura generalizada das empresas.
A regeneração revolucionária da democracia, no processo histórico para objectivos mais distantes, é também um factor de humanização, um aspecto da desalienação pela Grande Recusa que nos propõe Marcuse.
É a luta por uma democracia real, para os nossos tempos.
Uma democracia em que as pessoas são cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas.
Que garante, harmoniosamente, a separação dos sectores privado e público da vida pessoal.
Uma democracia que reconcilie as pessoas com a política, com combate duro contra a corrupção e a promiscuidade política com os negócios.
Que promove a libertação da ditadura das verdades feitas.
Questão central é de saber se uma revolução democrática é possível sem a alteração do sistema económico. O 25 de Abril é um bom exemplo. Num jogo de forças pouco definido, com divisões até no próprio MFA, a fase até ao 11 de Março não cria a base de poder necessária e suficiente para uma democracia avançada.
No entanto, parece-me que a discussão sobre revolução estrutural e revolução socialista pode ser minimamente separável, deslocando a questão do poder mas sempre sem a omitir.
A ordem democrática, como toda a ordem política, faz parte do sistema estrutural que serve o poder económico. Como não se vislumbra no tempo de uma geração a derrota do capitalismo, a revolução democrática exige o poder mas, ao mesmo tempo, confronta-se com a dificuldade de esse poder ser obrigatoriamente limitado. As classes economicamente dominantes não ficarão indiferentes. Veja-se, por exemplo, as campanhas ferozes na América latina contra os governos progressistas e os partidos que os suportam.
O bloco histórico constituído em torno da oligarquia neocapitalista ainda hoje domina a intelectualidade orgânica do bloco democrático. Esta, sem desprimor para muitos casos, remete-se muito para a propaganda tradicional ou o “esclarecimento” de há décadas.
Não entusiasma, não mostra novidade e, assim, ainda não ganhou para o “novo” bloco histórico as largas camadas objectivamente anticapitalistas (trabalhadores, reformados, desempregados, jovens que nunca acederam ao mercado de trabalho, minorias, etc).
Muito menos lhes facultou meios de informação e reflexão sobre uma revolução democrática. Entretanto, a vida política reduz o eleitor a um papel pendular, votando sobre questões conjunturais ou, pior ainda, por questões de marketing ou clubismo partidário.
O capitalismo neoliberal não oferecerá uma nova democracia. Pelo contrário, cada vez mais reduzirá a que temos, como instrumento autoritário para sujeição das classes trabalhadoras à chamada desvalorização interna.
O outro lado da questão é a luta. Temos de a perseguir, mas ainda com muita coisa em aberto: que forças sociais se podem mobilizar? quais as tensões dialécticas que se porão em jogo? qual o papel de partidos ou de outros agentes políticos?
A luta política tradicional com objectivos quantitativos é indiscutivelmente importante, mas não concentra o foco no essencial: o combate ideológico à hegemonia do capitalismo neoliberal, ao “pensamento único” e à alienação dos cidadãos pela “ordem natural das coisas”; e a reconstrução da democracia, como expressão efectiva da cidadania nos nossos tempos, de pessoas com recursos tecnológicos, comunicacionais e informativos até há pouco inimagináveis.
Hoje, com posições ideológicas, políticas e económicas extremadas, principalmente na Europa, as forças mais conservadoras conseguiram que uma larga maioria dos cidadãos aceitasse como senso comum, acriticamente, a sua “ordem natural das coisas”. É um facto que não devemos esconder.
Um projecto revolucionário de transformação do sistema democrático defronta-se com grande resistência e exige uma ampla frente democrática, forte e principalmente estável. Mais uma vez, a revolução do 25 de Abril nos serve de lição, com o seu refluxo contra-revolucionário em grande parte às divisões que se instalaram entre os militares de Abril após o 11 de Março.
É manifesto o desejo dos eleitores de unidade política de esquerda. Para fugir à ambiguidade da categoria esquerda, hoje, aproveito o título deste tema, unidade para a revolução democrática. Não me parece que seja abusivo, porque não creio que uma nova democracia, nascida revolucionariamente, não venha acompanhada por um conteúdo de verdadeira esquerda, no plano económico, social e cultural.
Na prática, e para além de idiossincrasias partidárias, a unidade tem estado muito condicionada por factores conjunturais que não dizem directamente respeito à revolução democrática: a posição em relação à União Europeia, a questão da dívida, a defesa do estado social de bem-estar.
No entanto, tenho para mim que as novas atitudes dos eleitorados europeus, a congregar quase espontaneamente vontades unitárias, não se justificam tanto por essas matérias. Antes por um sentimento de desgosto do eleitorado, alimentado pelos vícios da democracia representativa, pela partidocracia, pelo carreirismo político, pela promiscuidade de relações entre a política e os negócios.
A situação é paradoxal e de difícil resolução.
Primeiro: os problemas de política concreta que referi seriam de mais fácil resolução num novo sistema democrático, com um poder externamente forte e com grande legitimidade interna.
Por isso, segundo: parte da chamada esquerda em sentido lato poderia ser pressionada pelos eleitores a um esforço unitário com base no seu desejo de reaproximação à democracia, a uma nova democracia, em vez de políticas concretas que eles não percebem.
Mas, terceiro: a rendição do centro-esquerda à ideologia e prática neo-liberal, desloca-o para uma área de pântano que está bem instalada na democracia que temos, e a aproveitá-la bem.
Para terminar, e pela importância da comunicação social como instrumento ideológico, deixo algumas questões concretas, como provocação ao debate sobre o controlo democrático da comunicação social.
1. Com o jornalismo em papel ou “online” ainda inacessível a muita gente, destaca-se o papel da televisão (creio que menos o da rádio, a não ser para os condutores de automóvel…). A forma mais frequente de intervenção política televisiva entre nós é o “comentarismo” (nem sequer é análise, como se dizia). Premeia-se o amadorismo e a pouca seriedade de figuras populares sem qualificação política. Com tudo a defraudar o cidadão, alienando-o numa atitude de espectador de política espectáculo.
2. Como se garante um canal público não generalista com programas de grande qualidade e com análises rigorosas e aprofundadas?
3. A entidade reguladora cumpre a função de defesa dos cidadãos, de garantia do rigor e da isenção? A sua composição e modo de designação são adequadas?
4. Deve poder ser atribuído a sectores político-partidários ou sociais um canal público de sinal aberto? Com que garantias de equidade, responsabilidade e isenção em relação aos poderes, em particular o governo e os executivos regionais e autárquicos?
5. Da mesma forma, pode haver um jornal público “online”, garantindo-se o que se acabou de dizer?
Em conclusão
Em muitos aspectos, e observando-se mudanças sociais muito aceleradas, não há ainda resposta precisa para essa tarefa. É um processo de reconstrução que se vai fazendo, necessariamente com desdogmatização do que nos tem sido imposto como pensamento único.
O que deixo são apenas algumas posições de princípio, mas tendo em conta que
- num terreno ainda pouco desbravado e dominado por esquematismos, exige-se a articulação eficaz entre reflexão e debate teórico, e a validação pela acção política.
- as ações de defesa dos interesses materiais e sociais dos trabalhadores, reformados e desempregados são inseparáveis da consciencialização e da acção para a revolução democrática.
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