sexta-feira, 15 de maio de 2015

O acordo ortográfico visto por um leigo

Declaração de interesses – Não sou linguista e, em relação à discussão sobre o AO90, só posso invocar três coisas: sou racional e uso de rigor intelectual; tenho bom senso; gosto da minha língua e gabo-me de a falar e escrever bem.
Há coisas surpreendentes na rede social. Por vezes escrevo ou leio coisas de fôlego, a despertar poucos comentários ou a ver-se que não aparecem porque a minha rede próxima tem muita afinidade em relação a matérias fundamentais. Outras vezes, questões menores subitamente causam torrentes de comentários, de réplicas e tréplicas, surpreendentemente por parte dos que, inicialmente, diziam não pagar para aquela paróquia. Felizmente que ainda não se perdeu o gosto pela discussão amigável.
Vejo que, em regra, os meus amigos são muito racionais. Mesmo quando discordam, não se deixam levar emotivamente e praticam o bom-senso. Um bom exemplo de tudo isto foi um “post” meu sobre o acordo ortográfico (AO90). Fico a pensar que a amostra dos meus leitores difere muito de duas outras. Primeiro, obviamente, de muitos especialistas, linguistas, gramáticos, que se têm pronunciado com comedimento académico. Depois de um grupo considerável de leigos que, não estando habilitados a usar argumentos científicos, dão bengaladas muitas vezes à traição.
Comecemos pelo mais exemplar. a) O célebre caso do cágado/cagado é fraudulento. Em parte alguma do AO90 se altera a grafia de palavras esdrúxulas, excepto na diferença brasileira do acento circunflexo em relação ao acento agudo. b) Vão-se criar homógrafos confusos, como “para” (tempo verbal) e “para” (preposição)? Não estou a ver casos em que o simples contexto não diferencie os termos. c) A argumentação de gente séria (?) em relação à supressão de consoantes mudas é confrangedora e embusteira, como os célebres casos do pacto/pato e do facto/fato. É questão de se perguntar se essas pessoas, algumas das quais com títulos, leram o acordo. Mais, como confesso em relação a mim, se não é verdade que faço erros quando julgo escrever segundo 1945 e já estou a escrever, por preguiça, à AO90. Por exemplo, lembrei-me de que escrevo enjoo e não enjôo.
Porque é que muitos leigos estão contra o AO90, nomeadamente como se vê na cadeia de comentários do meu “post”? Respeito muitas razões, mas considero-as teóricas e pouco realistas. Em oposição, há o fa(c)to indesmentível de o AO90 ser lei, estar a servir para o ensino do português e já ser impossível voltar atrás, mesmo que entendamos que haveria fortes razões para isso. As coisas são como são.
Sabe-se que houve factores políticos e económicos que talvez tenham causado danos ao rigor línguístico da discussão. Mas as coisas não voltam atrás.
Diz-se que o Brasil ficou beneficiado. Não é bem verdade, porque se está a esquecer que muitas grafias duplas até agora passam a grafia facultativa, na norma única. Também os brasileiros perdem o uso do trema num grande número de palavras. E as coisas não voltam atrás.
Isto da facultatividade leva muita gente a falar em muita confusão. Não é caso único. Abra-se um bom dicionário inglês ou americano e veja-se a quantidade de grafias duplas, facultativas mas consideradas como valendo para efeitos oficiais.
Diz-se que o processo do AO90 foi burocrático e decidido como se se tratasse de uma lei banal. É verdade que a língua é património identitário, reserva da nação, mas a língua é mais do que a convenção ortográfica. E as coisas não podem voltar atrás, além de que não se contesta a legitimidade soberana.
Não parece razoável distinguir, em relação ao AO90, pais e avós e, por outro lado, crianças e jovens. Os primeiros são co-responsáveis, com a escola, pela educação dos segundos e devem estar em condições de a facilitarem. Estes já estão a estudar pelo AO90 e as coisas não podem voltar atrás.
Diz-se que o AO90 vai causar grande confusão e propiciar (mais vale erros de ditado do que aqui escrever proporcionar…) maior frequência de erros. Duvido. Deve estar esquecida a experiência de 1911, com a eliminação de toda a tralha de ph, th, y, mn, consoantes dobradas, etc. Com excepção de Pessoa, não ficou memória de nenhum oponente.
Pelo contrário, em alguns casos, a ortografia pada a ser mais simples. Por exemplo, para quê até agora os acentos circunflexos nas palavras terminadas em <êem> ou <ôo(s)>, que agora são eliminados?
Claro que o tema que mais tem dado que falar é o das consoantes mudas. Voltarei a ele, resumidamente. Como leigo, mas sem patetices desonestas, como falar em espetadores ou em arquitetas.
Tenho muito mais dúvidas sobre o uso do hífen. Vou estudar e depois falaremos.

5 comentários:

  1. Com um texto destes, só posso fazer uma vénia e simular um levantamento do chapéu que não uso, dado que talvez tenha podido testemunhar à consolidação da sua opinião sobre o Acordo feito de uma forma brilhante. Não precisou de muitas alíneas: três, a), b) e c) para sem exaustão desmontar muita falsa questão.
    Devo dizer que também eu, inicialmente, antes de me debruçar sobre o Acordo, fui contra, mas foi uma atitude que se foi esbatendo num processo que parece ter sido idêntico ao que exemplarmente aqui deixou.
    Parabéns pelo texto. É para divulgar.

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  2. Claro que Pára é um bom argumento. Não faz sentido ter palavras de uso tão corrente (como uma preposição) que obriguem o utilizador a reflectir sobre o contexto para optar pelo que realmente leu. Há outras? Talvez, mas não são tão massivamente ocorrentes e não me parece que o tropeço no Pára/Para seja apenas falta de hábito.

    Nas Crónicas do Rochedo, o autor lembrava que "Alto e pára o baile" é substancialmente diferente de Alto e para o baile". Tem razão, não há contexto que nos salve e nos permita perceber. Nem serve o argumento de que não se costuma dizer "Alto e para o baile". A frase fica impossibilitada se alguém a quiser escrever. A ausência do acento impede que se perceba.

    Há tempos, salvo erro em Bourne Identity, o herói e a senhora querem estacionar o carro e ele ajuda-a. A tradutora traduziu a fala do herói como "Para ali". Ora, sem o inglês é impossível perceber se ele lhe diz "segue para aquele lugar" ou se lhe diz "Segue e pára naquele lugar".

    Dirá que não são relevantes, mas eu digo-lhe que escrito não há contexto que nos ajude.

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    1. No segundo exemplo, julgo que, de acordo com o novo acordo, a segunda pessoa do singular do imperativo de parar é, pelo menos de modo facultativo, com acento: "Pára ali" (no sentido de estaciona ali). Não há confusão.

      O primeiro exemplo parece-me perfeitamente irrelevante. O português, antes do acordo, já estava cheio dessas pequenas confusões praticamente inevitáveis, com palavras homófonas, já para não falar das homónimas. Esta parece-me muito pouco grave e, em geral, bem discernível pelos contextos.

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  3. Concordo com os argumentos e podia até acrescentar outro: "passamos e passamos a vida a trabalhar". Mas a questão é outra. São coisas suficientes para justificar anular um acordo já em vigor e aplicado em todas as escolas, dicionários e documentos oficiais?

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  4. Disse asneira. Afinal segundo o AO90, é facultativo usar o acento na primeira pessoa do pretérito perfeito em amos. "É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas variantes do português.
    "

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