O que explica que, numa época de domínio político e ideológico da direita neoliberal, um partido de esquerda radical como o Syria – assim se auto-define – passe de 4,6 para 16,8% de votos em 3 anos, para 26,9% em um mês e depois para 36,3% nos 3 anos seguintes? E o que explica, para além do cerco imperial europeu, que tal apoio popular não faça sair o Syriza e o governo grego da armadilha em que estão presos?
Em primeiro lugar, a força ilusória que lhe vem da sua fraqueza, com um programa ambíguo que atrai transversalmente muitos eleitores descontentes com as alternativas (ou alternâncias). Mais dia menos dia, passar-se-há o mesmo em Portugal, devido àquilo a que tenho chamado a pasokização do PS. Sobre os programas, escrevi em artigo anterior.
Neste, abordo a dinâmica da acção do Syriza, o seu discurso, o seu enquadramento na esquerda grega e europeia, os desafios ao pensamento moderno da esquerda.
1. A origem e natureza do Syriza
Anote-se alguns factores determinantes do percurso do Syriza: a existência de um partido forte “à esquerda do Syriza, isto é, o KKE; uma atitude menos radical do Syriza em relação à questão europeia e à divida e mesmo não radical de todo em relação ao euro; a relativa novidade do Syriza; a maior capacidade do Syriza para levar à política gente dos movimentos populares, em parte, como diremos, pela ação da sua “linha da solidariedade”.
Comecemos também por lembrar a história e composição do Syriza, a partir da coligação Synaspismos. Esta foi constituída no fim da década de 80, numa época em que o movimento comunista grego ainda sofria da cisão pós-crise checa, entre KKE-exterior, pró-soviético, e partido do interior, eurocomunista. O Synaspismos integrou, por tempo curto, o KKE-exterior, a Esquerda grega – o grupo mais forte da cisão eurocomunista do interior – e uma dissidência social-democrata de esquerda, o Partido da Social Democracia.
Pouco depois, com o colapso do mundo soviético, o KKE expulsou a sua corrente não radical e abandonou o Synaspismos, que, em contrapartida, absorveu um partido ecologista de esquerda, AKOA, e, nas eleições de 2004, outros pequenos grupos de esquerda radical ou social-democrata de ala esquerda, como o Movimento da esquerda unida na acção (KEDA), a Esquerda internacionalista dos trabalhadores, trostsquista (DEA) e outros.
Actualmente, o Syriza é um partido unificado, mas com correntes reconhecidas: Unidade de esquerda, socialistas democráticos, apoiantes de Tsipras (N. A. – Varoufakis não é membro do Syriza, o que deve ser uma surpresa para muitos portugueses), com 51% de votos no congresso de 2013; Corrente de esquerda, eurocomunistas e eurocéticos, de que se destacam Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, com 30% de votos; Ala renovadora, com 17%, também eurocomunista mas apoiando as posições de Tsipras e companheiros.
Por sua vez, a Corrente de esquerda também inclui uma apreciável diversidade de grupos e opiniões: eurocomunistas, dissidentes do KKE expulsos em 1991 e que se mantiveram no Synaspismos; três grupos trotskistas, Kokkino, DEA e APO; um grupo de esquerda dissidente do PSOK, DIKKI; e uma organização sindical, KEDA, em rotura com o KKE. Esta corrente tinha tido grande influência na relativa radicalização do Syriza, sob a direção de Alékos Alavános, entre 2004 e o congresso fundador do partido, em 2013, no qual, ironia, é Alavános quem propões Tsipras para líder do novo partido unificado.
A seguir voltaremos à questão da pluralidade ou unicidade.
2. Uma situação comparável?
É importante um exercício de análise comparativa. Muitos são, em Portugal, os entusiásticos apoiantes do Syriza que não conseguem explicar o sucesso eleitoral do Syriza e a estagnação do KKE. Ao mesmo tempo, e por causa disso, não conseguem perceber o que faz falta, em modos de Syriza, ao PCP e ao BE. Muito menos explicam que o PS se mantenha imune à Pasokização, não sendo completamente justificativo que o PS não esteja no governo – porque, no essencial, mesmo com as últimas propostas, está a léguas de ser uma alternativa antiausteritária.
É interessante comparar o percurso e sucesso do Syriza com partidos próximos, nomeadamente a IU espanhola. Muito os aproxima, em história, programa, conceções organizavas e prática política, exceto no sucesso eleitoral. Como já escrevi aqui são dois partidos irmãos. O mesmo se passa com o BE mas não, obviamente, com o PCP, afim do KKE.
(Este tema é também analisado em artigos de Alberto Sicilia, 2015, Daniel Ayllón, 2015, Rafael Pla López, 2012, Rodrigo Carretero, 2015).
Não vou entrar por discursos subjectivistas sobre o espírito português ou grego, sobre a brandura dos nossos costumes, sobre o orgulho dos filhos dos pais da democracia. Importante é estudar a dinâmica política que, para além dos programas que analisamos há dias, ou em articulação com eles, gerou uma fortíssima sintonia de vontade popular e de acção política partidária e governamental.
Um factor de situação política geral é a relação (inversa em relação a nós) entre os dois componentes da esquerda não social-democrata. Na Grécia, como vimos, o KKE e o Syriza actual começaram por juntarem forças, o que nunca aconteceu, eleitoralmente, com o PCP e o BE. Depois, o KKE não ganha força à conta do Pasok, o que acontece com o Syriza, por razões que analisaremos. Em Portugal, não se desenvolveram essas razões e manteve-se invertida a relação de força eleitoral entre os dois partidos de esquerda radical, PCP e BE.
A analogia Syriza-BE também é possível noutro aspecto, salvaguardadas as diferenças de escala: forte componente de membros jovens de camadas pequeno-burguesas intelectuais e técnicas e fraca implantação sindical, com pouca ligação ao mundo do trabalho. Mas, em contrapartida e diferentemente do par PCP-KKE, maior abertura aos movimentos populares e às causas transversais, mesmo que com algum “folclore politico”.
Uma diferença considerável entre o Syriza (ou o BE em Portugal) é a sua opção por configuração de partido, ao contrário da Esquerda unida (IU), que se mantém como coligação (por exemplo, a IU tem como coordenador Cayo Lara, comunista, mas o secretário-geral do PCE, membro da IU, é outro comunista, José Luis Centella.
A esquerda moderna não comunista parecia vir a privilegiar a natureza de movimento, difuso e organicamente flexível. Não foi a via escolhida pelo Syriza, ao passar de coligação a partido. Que importância terá tido isto, numa situação geral em que, como no caso da IU, parece adquirida a ideia de que a segmentação é um problema insolúvel, e em que até o Podemos, iniciando-se na águas movimentalistas do 15 de maio, pratica hoje um forte centralismo em torno de Iglesias e o seu grupo de amigos universitários?
Esse balanço no Syriza entre pluralidade e unicidade é único e ajuda a compreender a capacidade de resistência que o Syriza está a revelar. Mesmo que haja vozes no interior a clamar contra manobras conformistas da corrente maioritária, não é concebível que tal diversidade garanta uma vida partidária que não seja fundamentada numa cultura de pluralismo de ideias e de diálogo politico, de que não temos exemplo em Portugal, a não ser, reduzidamente, no BE. Há em Espanha, na IU, mas outro factor, que agora não podemos abordar, a emergência de algum populismo e do Podemos, faz com que a IU não tenha tido o percurso de sucesso do seu partido-irmão Syriza.
3. Dinâmicas e contradições
A principal contradição no Syriza, que já abordamos, está na radicalidade do seu programa político geral, a corresponder à grave “crise humanitária”, e no recuo progressivo do seu programa económico-financeiro, em particular no que respeita ao quadro europeu. Até que ponto a vitória do Syria se deve à passagem da radicalidade para o realismo?
A “crise humanitária” domina a situação política grega e não tem comparação com o que passamos. Maior desemprego, muito mais gente abaixo do limiar da pobreza, cortes acentuados nos salários (com destaque para a função pública) e reformas, despejos, cortes de energia, falta de assistência de saúde (os desempregados não têm direito a SNS), etc.
O programa de Salónica, com que o Syriza concorreu às eleições de 2015, dá prioridade ao combate à crise humanitária: 1. Eletricidade gratuita para os 2/3 das famílias mais pobres. 2. Programa de abrigos para os sem.teto. 3. Pensão mínima de 700 € (N. A. – mais do que o nosso salário mínimo). 4. SNS universal. 5. Cartão de subsídio (vale) aos transportes. 6. Eliminação da taxa sobre os combustíveis para aquecimento.
O segundo pilar de medidas visa o relançamento da economia: cobrança das receitas fiscais em atraso, apoio às pequenas e médias empresas, eliminação das penhoras ilegais e suspensão das que incidem sobre pessoas sem rendimentos, criação de um banco de desenvolvimento público e de um "banco mau" para limpeza da banca parasitária e do crédito vicioso.
O terceiro pilar é o da criação de emprego. Apoio ao mundo do trabalho, fortalecimento da sua capacidade negocial, reposição do quadro legal suprimido pelo memorando, salário mínimo de € 751 para todos, restabelecimento de contratos colectivos, proibição de “layoffs” maciços projecto de criação de 300.000 empregos nos setores público, privado e social da economia.
No essencial, é a quadratura do círculo: política antiausteritária mas manutenção da rede de dependências financeiras e do quadro europeu. Mesmo assim, tem a oposição total da Alemanha e das outras instâncias europeias, para que basta um pequeno gesto de firmeza para dar o murro na mesa.
Será esse desejo de quadratura do círculo cinismo e oportunismo? Dê-se o benefício da dúvida. A corrente moderada ou "realista", encabeçada por Tsipras, parece honestamente querer simultaneamente o fim da austeridade e a manutenção no euro. É o tal círculo quadrado, mas aparentemente o que o povo grego (e português) quer, embora mais atenuadamente – 72% antes das eleições, 52% em sondagem do princípio deste mês.
Imagine-se como a idêntica contradição entre o recém-proposto programa do PS e a falta de bases do programa económico-financeiro ainda é mais irresolúvel, quando a posição ideológica do PS é de alinhamento fervoroso com a ordem europeia.
4. Como se situa o Syriza em referência à esquerda?
Apesar desse possível desvio do Syriza, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
De qualquer forma, e como em toda a parte, há sempre grande ambiguidade nas palavras. Ainda há três décadas, o mundo de esquerda era comunista ou social-democrata, embora, a partir da Checoslováquia de 1968 e, antes, de escolas marxistas ocidentais (Frankfurt, New Left ou de inspiração gramsciana), germinassem novas ideias naquela fenda.
Apesar desse possível desvio, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
O que é esquerda? É esquerda, para mais não dizer, todo um vasto campo político e ideológico que faz suas as lutas sociais e de progresso e que se interroga. Sobre a estrutura de classes, hoje, e a luta de classes como motor histórico. Sobre a radicalidade destruidora da luta anticapitalista e sobre o oportunismo da visão do socialismo como gestão “avançada” do capitalismo. Sobre os limites da esquerda radical, num quadro político essencialmente dominado pelo eleitoralismo. Sobre as novas causas transversais e planetárias, como a paz, o ambiente, a luta contra a globalização, a qualidade de vida, os direitos das mulheres e minorias, os direitos democráticos e o socialismo, a concepção de partido como espelho perante a sociedade dos valores culturais e éticos que diz defender, etc.
Esse questionamento definidor da esquerda foi facilitado, como na Grécia ou na Espanha, pela pluralidade no movimento comunista. Nem sempre deu bom resultado, como se vê em Itália, lamentavelmente num país de tão rica tradição teórica marxista.
Em Portugal, não foi possível, porque a cisão no PCP foi tardia enquanto organizada (só depois do golpe de Moscovo de 1991) e pouco expressiva, só depois se tendo formado um novo partido, pouco expressivo, o BE (os quase 10% de votos e 16 deputados de 2009 foram conjuntura efémera). Muito desse percurso português se deve à resistência e qualidade política inegáveis de Cunhal e seus companheiros próximos, mas não só. Quando hoje se fala no enquistamento defensivo do PCP mas, ao mesmo tempo, na sua capacidade de enquadramento de lutas, principalmente sindicais, seria bom estudar comparativamente o percurso do Syriza, mesmo descontando que o PCP, como o KKE, não aceita o exemplo de um partido “social-democrata”.
É o Syriza (euro)comunista ou o renascimento da genuína social-democracia destruída pelo Pasok? Não sei mas, pela definição que adotei, não tenho dúvidas de que é de esquerda.
5. Realismo e radicalismo
A componente assistencial e humanitária do programa do Syriza acentuou-se até Salónica. Em contrapartida, como vimos, esbateram-se as posições de política económica e financeira. À medida que se vislumbrava um sucesso eleitoral, a direcção do Syriza passou a adoptar uma postura mais moderada. Ficou apertado entre os críticos de direita que continuaram a considerá-lo como um partido de esquerda radical e inaceitável para os padrões europeus, e os críticos de esquerda (mesmo no interior – Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, Stathakis), que acusam a direcção de preocupação excessiva com a imagem de “partido respeitável” (Nota – ler Stathis Kouvelakis, 2013).
Mais recentemente, tomou peso o protesto de um grande grupo de deputados contra o primeiro acordo com “as instituições”, em que se destaca o até então apoiante de Tsipras, economista-chefe do partido e autor do programa de Salónica, John Milios, agora co-autor de um texto devastador de crítica ao acordo. Felizmente, o Syriza é muito longe de ser só Tsipras e longe de ser monolítico.
Às posições programáticas associaram-se as atuações práticas do Syriza, com apoios aos desalojados, postos de assistência médica e outras ações de voluntariado. De partido de protesto (“linha da resistência”), passa em boa parte a intervencionista em ações assistenciais, ao mesmo que se demarca de todas as ações violentas de rua ou que lhe pudessem alienar apoios de classes médias ordeiras e conservadoras (“linha da solidariedade”).
Esta linha, adotada logo a seguir às eleições de 2012 – granjeou grande prestígio ao partido. Um dos exemplos notáveis foi o dos bancos de medicamentos organizados pelo componente Synaspismos do Syriza. Com isto, também se ocupou militantemente grande parte dos novos aderentes, cerca de 35.000, preenchendo uma lacuna de falta de militarismo do Syriza em comparação com o KKE (e BE com o PCP, em Portugal).
Vai-se também adaptando o discurso, que alguns acusam de ambíguo. Um discurso centrado no líder, “de cima para baixo”, dirigido a uma audiência nacional, transversal, mas modulado consoante os públicos: mais radical e lírico quando dirigido ao seu eleitorado tradicional e ativistas, mais sóbrio e pragmático quando dirigido aos seus novos eleitores ou potenciais apoiantes. Transforma-se progressivamente em partido “catch-all”, no sentido Kirchheimer.
Como analisa Federico Sternberg, do Real Instituto Elcano, Syriza, tal como Podemos, “cresceram exponencialmente durante a crise porque souberam canalizar o descontentamento dos cidadões (ups!…) com os partidos tradicionais. Suavizaram o seu discurso, porque “querem governar e sabem que não se ganham eleições a partir da radicalidade (N. A. – não é bem verdade; lembre-se a ascensão eleitoral do nazismo), neste caso de esquerda. Moderaram-se para captar votos de todo o espetro esquerda-direita. (…) Estão competindo para ser o partido social-democrata de referência”.
Mesmo no interior do partido, dizem analistas da sua corrente esquerda – que criticam a imagem do Syriza como “partido respeitável de governo” –, o sucesso eleitoral de 2012 causou uma dinâmica contraditória. Assistiu-se a uma grande vaga de inscrições, incluindo de operários até antes mais influenciados pelo KKE ou pela central sindical pasokiana, mas isto reflectiu-se numa atitude de passividade em relação à direcção carismática e à dinâmica de correntes, por muita nova gente abalada com a crise e desanimada durante anos com o sistema partidocrático dual.
Não custa a imaginar tal evolução num PS que tivesse tido uma vitória eleitoral com conquista no centrão e com reforço da sua ala social-democrata, em vez de singrar por uma via pasokizante. tanto mais que o PS já é de há muito um partido “catch-all”.
Mas colocar a solidariedade antes da conflitualidade resulta, para a esquerda radical tradicional, numa imagem de “partido remédio da crise” que, fora isso e o desvio troikiano do Pasok, não distinguiria o Syriza do velho Pasok social-democrata. Já agora, de muita coisa do PS português no recente catálogo programático em contradição com o documento económico-financeiro dos 12.
Tal como um pouco por toda a Europa, procura-se atingir a maioria parlamentar por apelo a uma amálgama de opiniões e aspirações de diferenciadas camadas da pequena burguesia ou das classes médias que reflecte hoje a hegemonia ideológica do capitalismo: pessoas relativamente conservadoras, de idade média considerável, com meios imobiliários embora a crédito, com atração pelo consumismo, sujeitos a grande alienação pela comunicação social. Muito importante, pessoas que, tendo sofrido fortemente com a crise, são firmemente opostos à saída do euro (cerca de 70% na eleições de 2015, mas, notavelmente, pouco mais de 50% há dias, depois do longo e vergonhoso conflito com as “instituições europeias”).
Mesmo atendidas todas estas reservas, era vital para a Grécia ter um novo governo que a libertasse do garrote do memorando e da troika, bem como capaz de proceder às verdadeiras reformas estruturais (luta contra a corrupção, contra a fuga ao fisco, pela modernização e eficácia da administração pública). Neste sentido, bem precisaríamos nós de também ter um “partido remédio para a crise”.
O resultado essencial da dinâmica criada pelo Syriza desde 2012 foi ter colocado entre a esquerda europeia, em termos concretos, a questão da tomada de um poder de estado alternativo. Teria sido possível na via exclusiva da radicalidade de esquerda ou foram necessários compromissos com receios e valores de sectores sociais mais recuados? Teria sido possível a conquista do poder por outra via? Ou, pelo contrário, para voltar a velha questão, o Syriza, conquistando o governo, terá conquistado o poder? No que se refere ao seu grande contendor nessa luta pelo poder, Alemanha e demais Europa/BCE/FMI, é cedo para se dizer.
Citei analistas que criticaram o centralismo circum-Tsipras que se gerou depois de 2012 e que foi bem visível na sua campanha para presidente da Comissão europeia, em 2014. Se pensamos em Iglesias e até Garzón, em Espanha, talvez seja isto indispensável em política (ganha quem comunica melhor). Mas é verdade que, mesmo assim, o Syriza chegou unido às eleições de 2015, constituiu governo representativo das suas correntes e tem mostrado grande solidariedade interna. Lembre-se o bloco de medidas iniciais constantes do plano humanitário do programa de Salónica, aprovadas com grande irritação dos “parceiros” europeus, bem como a firmeza com que todo o governo traçou linhas vermelhas respeitantes aos salários e às reformas.
6. O europeísmo utópico
Também vai ser instrutivo estudar outra questão, a do internacionalismo, agora em termos diferentes dos da época da 1ª Guerra e, na URSS, no conflito entre Estaline e Trotsky. No quadro europeu de hoje, com o euro a aprisionar os países em relações imperialistas que deixaram descaradamente a luz as promessas de solidariedade e de convergência, é viável a luta do governo grego fora de uma política geral europeia ou exigirá a convergência de políticas europeias dos vários países, específicas? E pode-se esperar por isso?
Por outro lado, mesmo a contemporização europeíza do Syriza não o afasta da atitude de luta, como se tem visto desde que formou governo. Está longe da submissão da social-democracia, inclusive a portuguesa. Se o discurso se tem vindo a suavizar, não deixa de ser muito firme no contraponto antiausteritário e, principalmente quanto à Europa, na denúncia do défice democrático, dos poderes oligárquicos, da exclusão social e da crise humanitária. Segundo Tsipras, que coloca o acento na mobilização e participação populares, “uma alternativa se oferece à Europa: ou persiste no impasse neoliberal ou faz a escolha da democracia”.
É certo, mas é pouco, Com todo o respeito e solidariedade com a luta heróica que o governo grego e o Syriza estão a travar, preferia ouvir ir-se mais longe no caminho da destruição desta ordem europeia muito mais do que naquilo que os europeístas criticam: ir-se também para o derrube da sua ordem político-económica.
Mesmo tendo em conta todas as dificuldades disso, o Syriza não apresenta claramente nenhum projeto de ultrapassagem do capitalismo, sobretudo no espartilho orçamental e institucional da zona euro.
7. Para reflexão teórica atenta à evolução do Syriza e do drama grego
A terminar este artigo, a que se seguirão outros, uma questão importante de prática política a que não é alheia uma visão teórica, dialética. Na actual correlação de forças, é viável a conquista de poder, num passo revolucionário (o que não quer dizer obrigatoriamente violento) pela esquerda radical, ou isto pode verificar-se por uma sucessão de conquistas (entenda-se também: não necessariamente reformistas) a abrir brechas na hegemonia do capitalismo, hoje neoliberal? É uma pergunta no cerne de velhas discussões do movimento operário e dos trabalhadores.
Não é que só se possa defender a oposição absoluta de via parlamentar e de via insurrecional, que podem compatibilizar-se por escalonamento de ambições políticas, desde que tendo sempre em mira, à distância, o derrube do capitalismo. O contrário seria fazer o jogo do inimigo. Não havendo condições objetivas e subjetivas para o seu derrube, o “purismo” revolucionário é uma atitude de expetativa passiva ou de simples resistência que pode deixar tudo na mesma.
Seja qual for a resposta, a política, programa e ação do Syriza e do governo grego aquecem, mesmo com contradições e limitações, as expetativas de muita gente dos povos europeus. No que nos diz respeito, Portugal não é cópia da Grécia nem de qualquer outro país, mas precisamos de ser solidários, aprendermos em conjunto, contra o poder unificado e hegemónico da central europeia.
Mas exemplifica o Syriza uma perspectiva dialeticamente fecunda de articulação entre a luta de classes, tradicional, personificada como seu agente num partido de esquerda radical, por um lado, e, por outro, o compromisso com a luta eleitoral, com a sua especificidade e cedências? Ou trata-se de oportunismo, o que parece estar a ser desmentido pela firmeza e coerência do confronto com os seus “parceiros”?
Não me parece que haja ainda respostas mas, mesmo em termos teóricos, mais especificamente de reflexão ideológica sob o ponto de vista marxista, são tempos fascinantes.
Um dos principais pontos em aberto é o teste prático ao europeísmo que é forte no Syriza mas que também contamina outros partidos da esquerda europeia; em Portugal, moderadamente, o BE e, extremamente, o novo LIVRE. Aonde leva a crença religiosa nas instituições europeias, nos seus fundamentos democráticos, no projecto de solidariedade dos povos em vez da solidariedade dos interesses capitalistas e imperialistas, com uma grande fronteira que já divide as duas Europas? Veremos, mas desde já o povo grego parece estar a abrir os olhos. É tema para próximo artigo.
Para já, termine-se com uma nota positiva, colhida de uma entrevista a Panagiotis Lafazanis, ministro da Reconstrução da produção, do Ambiente e da Energia, e presidente da Corrente de esquerda do Syriza: “Syriza não será um capataz do capitalismo grego neoliberal. A sua alma é a sociedade e a necessidade de uma reconstrução progressiva do país com um horizonte socialista”.
Caro Francisco, lamento ter eliminado o seu comentário, por engano. E era bem pertinente. Ainda tem o texto?
ResponderEliminarMeu caro João, sempre atento às suas notas e observações, em Janeiro e em face da vitória do Syriza, questionava-me nos termos que vão mencionados no comentário que está infra. Creio que passado este tempo, tem renovada oportunidade a questão de saber o que significa ser de esquerda e sê-lo no espaço da União Europeia e, sobretudo da União Económica e Monetária e do Euro.
ResponderEliminarNessa altura, coloquei a questão do seguinte modo:
"Francisco16 de janeiro de 2015 às 10:19
Para não ser acusado de produzir juízos prévios nem de desencadear processos de intenções, deixarei apenas uma nota: que tenhamos vida e saúde para aqui voltarmos dentro de alguns meses (uns três ou quatro após as eleições, serão já muito suficientes para se perceber que caminho indica a bússola) e procedermos a uma avaliação das mudanças que se perspectivam na sociedade grega - e sobretudo na sua relação com o espaço da UEM e do Euro, que é um aspecto nuclear do problema e por isso mesmo incontornável em qualquer discurso político sério - por via dessa expectável vitória eleitoral do Syriza."
Cumprimentos,