terça-feira, 18 de novembro de 2014

A candidatura cidadã

Em dois dias, 1700 pessoas subscreveram a iniciativa Livre/Manifesto/3D/Renovação Comunista. Pode-lhes ser animador, mas muito pouco pensando só nos 71000 votos do Livre nas últimas europeias.
Por mim, penso que a grande maioria das pessoas está presa pelos estereotipos políticos e não percebe os modismos. Muito menos as piruetas.
A convocatória da convenção para uma candidatura cidadã é um texto redondo e ambíguo. É mais um exemplo do movimento browniano da nossa política actual, de formiguinhas desnorteadas. É mais um exemplo da manifesta falta de quadros poliicos que temos, com profunda formação teórica e com experiência da prática política, quando os que temos já estão na terceira idade (mas isto dará uma próxima entrada). Também é um texto pobre, de gato escondido de rabo de fora, a desprezar a inteligência das pessoas. Deve ser coisa de desconhecimento, de quem pensa que a maioria da “gente” consegue ao menos ler a gramática arrevesada da convocatória.
A convocatória nunca refere o PS, mas sabe-se bem, pelas múltiplas declarações dos seus promotores, que essa candidatura só lhes faz sentido se para entendimento com o PS e com a intenção de trazer o PS para a esquerda (estão a gozar comigo?). Assim.não se pode desligar disto o que diz a convocatória.
Diz a convocatória: “As próximas eleições têm de corresponder à vitória de um programa de defesa do Estado Social e do Estado de Direito e de aprofundamento da democracia em Portugal e na Europa. [blá-blá] (…) Queremos um governo progressista que recuse a austeridade como forma de sair da crise e a passividade como forma de estar na Europa. Que construa um poder democrático que governe para o povo e não seja refém de interesses privados.”
Como escrevi na entrada anterior, “vamos crer, generosamente, que toda a esquerda (à esquerda do PSD) se entende miraculosamente sobre a necessidade e propostas práticas para uma política de emprego, de reposição das perdas salariais e d reformas, de ressustentação do estado de bem-estar, de investimento, de aumento da procura interna, de substituição de importações. A pergunta inevitável (que a direita faz, atrapalhando o PS) é “onde se vai buscar o dinheiro?”. A resposta passa obrigatoriamente pelo serviço da dívida, logo pela reestruturação, pelo tratado orçamental, pelo controlo da banca, eventualmente – pelo que isso não pode ser tabu – pela saída do euro.”
O outro lado da convocatória é cosmético, é um modismo sobre a pós-democracia, um desvario de jovens políticos intelectuais pequeno-burgueses. É a chamada revolução pós-moderna, cibernética, pós-classista, da democracia. É experimentalista, como se fôssemos todos ratos de laboratório. É elitista e tonta, porque pressupõe que todos os cidadãos – e o cidadão é a célula básica da democracia desde a Grécia – tem computador, sabe usar os programas e domina as redes sociais.
Propõem um programa cujo esboço é preparado pela elite (quem?), é sujeito a emendas e propostas na net, que são finalmente discutidas e incorporadas na versão final pela tal elite. Curioso! Fora a net, era exactamente o processo de elaboração das teses para os congressos do PCP!…
Também não podiam deixar de vir as primárias abertas. Não sei quem as inventou, mas são a maior aldrabice da moderna experimentação política. Alguém tinha dúvidas de que, por exemplo, Rui Tavares ia ser, destacadamente, o primeiro candidato do Livre, em primárias abertas?
NOTA – Claro que sei que não devo fazer favores ao inimigo comum atacando os que estão do meu lado da barricada. No entanto, não vejo a acção política na sua dimensão diária, muitas vezes mesquinha, e considero que esta pode ser inimiga da política revolucionária, consequente, transformadora, imbuída de humanismo ético, que ainda hoje me move. Assim, combaterei sempre os oportunistas tanto quanto combato os principais adversários. São farinha do mesmo saco. Tenho pena é dos que são enganados. farei sempre o que puder para os ajudar. Não tomem isto como paternalismo.

2 comentários:

  1. Tinha saudades de estar assim muito aberta e unanimemente de acordo consigo. Parabéns: creio que atirou certeiro em direcção a todos os alvos. O que convoca um outro tema: o da modernidade e o da suposta modernidade. Talvez que sob esta capa de um certo pós-modernismo, não esteja mais do um manto diáfano que nos impede de ver a essência das coisas, como elas efectivamente são. Vão nessa linha os últimos escritos de Boaventura Sousa Santos, p. ex., em relação ao fenómeno PODEMOS em Espanha ou Syriza na Grécia, para logo concluír que o BE - que toma por irmão gémeo de uns e de outros - não foi ainda capaz de se reinventar, o que lhe tem impedido os resultados auspiciosos daqueles. Pois, sem descermos à essência das coisas, acabaremos sempre por ficar maravilhados com espelhos e colares de contas, segmentando as nossas opiniões não em termos das propostas concretas, mas por via desta adesão acéfala à pós-modernidade de pacotilha. Pela parte que me toca, agradeço como se aceitasse.

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  2. É caso para perguntar: "livre" de quê e para quê? Livre para entrar no "arco da governação" sem compromissos aceitáveis? Adeus liberdade...

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