Como disse no último texto, toda o rigor intelectual e histórico da nossa discussão política actual esbarra numa pergunta difícil: o que é a esquerda?
Para uns, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação. Para outros, é uma metáfora, um conjunto de indicadores que, a cada momento, e em tensão dialéctica, ajudam a localizar e a definir na prática formações políticas e sociais, bem como mentalidades e expressões culturais.
E até pode acontecer que, em certas circunstâncias, o purismo louvável dos que querem ser intelectualmente honestos e que se referem à esquerda se choque com o pragmatismo de a melhor defesa dessa esquerda seja, em certas condições de combate ideológico, ajustar ao sentido comum o uso do termo esquerda. Lembrando o gato de Deng Xiaoping.
Como é bem sabido, o termo esquerda vem da Revolução francesa, dos lugares ocupados na assembleia pela ala radical, do terceiro estado. Tão forte é a metáfora que muito depois, na nossa constituinte, foi fácil colocar no plenário os partidos, por essa convenção.
Na essência da metáfora, está o respeito escrupuloso pelos três princípios, igualdade, liberdade, fraternidade. Mas também as suas consequências políticas práticas, na altura: a destituição do rei, a abolição dos direitos senhoriais, o livre-pensamento.
A seguir, a dicotomia esquerda-direita evolui sempre em relação à situação histórica concreta: emergência dos movimentos de trabalhadores nas revoluções de 1848, comuna de Paris, social-democracia alemã e francesa e bolcheviques do início do século XX, movimento comunista, social-democracia norte-europeia do pós-guerra, guerrilha latino-americana, movimentos anticoloniais.
Mas não se esqueça que a esta esquerda convencionalmente política se ligaram sempre movimentos menos convencionais, como os de defesa do ambiente, os de defesa dos direitos das minorias sexuais, os pacifistas, os de mobilização comunitária. No conjunto, parece-me que se reúnem num paradigma actual de esquerda, o de transformação social, de um novo humanismo, de protesto anti-sistema, de luta contra a desigualdade e a marginalização.
Por isto, não reconheço proprietários da esquerda, se vista como uma esquerda que, como disse atrás, é uma categoria política estável, que enquadra a priori formações políticas, sem olhar para a evolução político-social e que as fixa nessa classificação.
Depois, há a própria evolução de formações que muitos continuam a aceitar, mesmo que criticamente, como de esquerda. Como é que se pode considerar de esquerda, e com isto elaborar construções mentais que caem pela base, pela sua falsidade, partidos que renegaram completamente essa sua qualidade? Como pensar que eles, mesmo em coligação mas com forças de peso negligível, vão corrigir essa inflexão que fizeram em direcção ao inimigo principal?
Repetindo, é erro grave considerar a dicotomia esquerda-direita como estática. Alguns aspectos sobressaem numa fase, outros noutra. Como exemplo flagrante, há vinte anos, o conflito militar. Hoje, a luta contra o neoliberalismo. O PS foi de esquerda há 40 anos? O PS é de esquerda hoje?
Isto também se articula com o uso de outras categorias. Como e quando usamos hoje os termos trabalhadores, povo, cidadãos, pessoas, gente? Não são cientificamente equivalentes, mas a política, a mobilização das pessoas, o leva.las à conquista do poder, é uma ciência de académicos ou uma arte que aproveita dessa ciência o que interessa para iluminar a acção?
É preciso chegarmos ao povo de esquerda. Quem são?Talvez muitos que nem gostem que lhes chamem assim, que votam centrão, enganados, e estão fartos, mas que sabem o que perderam desde que, há vinte anos, lhes criaram uma ilusão de pote de ouro, que descrêem do sistema, que continuam a ter uma miragem de um utópico PS mas já não acreditam em Seguros e Costas.
Mas que também, indignados, se revoltam só a dialogar com a televisão, que não sabem ler os textos da esquerda intelectual, que nem fazem ideia do que é isso de primárias abertas.
É preciso chegar às pessoas, àquelas que não sabem que são de esquerda e que até nem querem que lhes digam que são.
Era bom que relêssemos alguma coisa sobre o conflito entre mencheviques e bolcheviques, entre Fevereiro e Outubro. E também as teses de Abril. Não é para copiar, mas para reflectir. Como, por exemplo, numa entrevista recente, Pablo Iglesias, do Podemos, ter dito que uma das coisas mais geniais em política tinha sido a síntese de Lénine, “paz, terra, pão”.Vendo as coisas hoje, e não subestimando a análise estrutural, eu diria que as grandes bandeiras mobilizadoras passam pela compreensão de que toda a miséria política, social e económica passa por duas coisas que não precisam de grandes análises teóricas. 1. O capitalismo devorou a democracia, instalou a corrupção, destruiu a cidadania, construiu um sistema partidário que deixou de representar os cidadãos. 2. O capitalismo instaurou uma ordem económica baseada no garrote económico, na destruição do estado de bem-estar duramente conquistado, o que não se muda sem alívio da dívida e, eventualmente, saída do euro.
A esquerda, hoje, é essencialmente a luta contra estes dois vectores.
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