segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Os equívocos do populismo

Tinha-me comprometido a escrever sobre o Podemos, um fenómeno político que me deixa perplexo, por vezes desagradado e ao mesmo tempo me suscita reflexões interessantes e instrutivas. Foi o que se passou, por exemplo, na última sexta feira, na sessão organizada pelo BE.
No entanto, antes de escrever sobre o Podemos, parece-me útil limpar algum mato que tem contaminado a discussão, misturando, a propósito e a despropósito, um termo muito ambíguo, o populismo. Não gosto dele. Ao longo de dezenas de anos, vi usá-lo com significados diferentes, que confundem. E, agora, até o vejo referido, bipolarmente, a uma situação particular, a da União Europeia. É difícil entendermo-nos.
Passando rapidamente, ao longo da história, pelos poíticos que governaram, com respeito pelas regras dos seus sistemas, mas a favor do povo, contra a aristocracia, como os romanos Públio, Druso, Rufo, Catilina, Mário, César, chegamos aos que, o fizeram com base em poder pessoal e ditatorial. Na Europa, um exemplo é o reformismo napoleónico ou bismarkiano, mas mais frequentemente intitulado (leia-se Marx) de bonapartismo. O poder legislativo perde poder para o executivo, mas este procura construir uma imagem carismática de um representante popular.
Próximo desta concepção – e era o exemplo que tínhamos em mente na minha juventude – foi o populismo latino-americano, fundamentalmente o Estado Novo de Getúlio e o peronismo. O elemento central da sua definição é uma relação indissociável de autoritarismo demagógico e carismático (e francas simpatias com os fascismos europeus) com um suporte de progressismo e de medidas sociais de cariz popular – mas também não foi o que fizeram os fascismo europeus?. Quem lê Graciliano Ramos horroriza-se com o “Tarrafal” getuliano onde estavam os presos comunistas do Getúlio. Também nos lembramos da entrega aos nazis, para ser morta, da mulher do secretário geral comunista, Luís Carlos Prestes.
No entanto, restaurada a democracia depois da guerra, Getulio foi eleito esmagadoramente, promoveu reformas sociais importantes (férias pagas, salário mínimo) e nacionalizações e, com isto, foi impiedosamente perseguido pelos interesses oligárquicos e pela imprensa, que o acossaram até ao suicídio.
(Tenho um estimado amigo brasileiro com quem partilho grandes afinidades da nossa juventude coetânea. Na universidade, andou, com responsabilidades, pelos meios comunistas. Andou na resistência ao golpe militar de 64. Depois.muito próximo de Brizola, foi cofundador do PDT, mas de que já é crítico pela esquerda. Tem grande admiração pelo Getúlio do pós-guerra. Mas nunca me conseguiu explicar como situa o Estado Novo. Será com a provocação deste “post”?) 
Nesta confusão, eram os próprios populistas que se apresentavam como desafiadoras da democracia clássica, com uma representividade fundamentadada diferentemente: a democracia encarna-se num movimento político que demonstre representar os interesses das classes populares – e por elas seja reconhecido como tal na rua e na movimentação social –, sem as limitações formais clássicas e poliárquicas da democracia liberal, afinal sujeita, de uma forma ou outra, à imposição de uma minoria económica à “classe política”.
Os governos e movimentos progressistas actuais (a Venezuela, o Equador, a Bolívia, o Uruguai, menos o Brasil, no futuro talvez a Argentina e o Chile) são herdeiros directos desse populismo? Creio que só vestigialmente. Em primeiro lugar, são governos legalistas que, apesar do que diz a imprensa, só reprimem uma oposição muito forte por medidas estritamente legais. Em segundo lugar, porque têm de lutar com aspectos novos do imperialismo – globalização, predação, dívida. Em terceiro lugar, porque ainda é frágil a teorização que dê coerência a essa acção políica progressista e anti-imperialista. O chamado “Socialismo de século XXI" está cheio de contradições e o seu ideólogo, o alemão Heinz Dieterich, marxista e estudioso crítico do fim da União Soviética, acabou por cortar as relações de colaboração com Hugo Chávez.
No entanto, sendo progressistas, não os podemos considera ainda como socialistas. As suas políicas sociais avançadas não têm posto em causa a estratificação social, a enorme disparidade da distribuição da riqueza, a não apropriação estatal da propriedade de sectores estratégicos. O caso exemplar é o do Brasil, em que o inegável progresso do nível de vida das classes populares mais desfavorecidas não foi acompanhado por uma revolução do sistema económico.
Como se classificam estes países? Ditaduras populistas, como são apodados por toda a máquina comunicacional ao serviço dos interesses dos poderosos? Ou novas construções de poder popular? Não sendo socialistas, prefiro chamar-lhe “países progressistas anti-imperialistas” ou regimes anti-oligárquicos.
Isto também marca outra diferença, também terminológica. Na Europa. o termo populista está associado a governos que não estão no poder, que não mostraram ainda esse eventual carácter ”populista”, sem medidas a favor do povo já concretizadas. Casos exemplares são o 5 estralas italiano e, com mais ênfase na denúncia demagógica de podridão do Estado,mas sem alternativas, como tudo o que venha a ser, em Portugal, a corte de Marinho (e) Pinto. Não têm um programa coerente, não se lhes vê facilmente o posicionamento em relação às questões económicas e sociais, usam os aspectos mais epidérmicos do descontentamento (corrupção, escândalos, benefícios) para ganhar votos. A isto, em vez de populismo, prefiro chamar demagogismo.
Aliás, não faz sentido falar em populismo, ou melhor demagogismo, de esquerda e de direita. O demagogismo é um método poliico de manipulação, por natureza avesso ao debate que caracteriza as ideologias e assenta fundamentalmente no carisma e na capacidade oratória e persuasiva dos líderes. Nos tempos modernos, só dispensa as camisas castanhas ou pretas.
O populismo apresenta obras que lhe ganham apoio real. O demagogismo faz discursos, que lhe ganham votos iliusórios.
Mais desrazoável é outra atribuição do termo populismo, em termos de oposição à União europeia e ao euro. Não consigo descortinar a razão. A consequência, a acrescentar a confusão, é ter de se distinguir o “populismo” de esquerda do grupo parlamentar GUE/NGL, a que pertencem os eurodeputados do PCP, do BE, do Syriza, do Podemos; e os “populistas” de direita, fascisantes e xenófobos, como a Frente Nacional francesa e o UKIP inglês.
Continuemos na Europa. A crise que atravessa o sistema político tradicional de democracia parlamentar representativa já vem detrás. No fim dos anos 80, apareceram os partidos alternativos, entre os quais, em Portugal, o renascido MDP, de que já bastante tenho falado. No entanto, a crise ainda era larvar, escrevia que “a alternatividade partidária ainda ainda se define principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização.”
Ainda hoje, com base nisto, costumo dizer que, mais do que ”um novo partido”, precisamos de “um partido novo”.
Hoje, já estamos perante uma crise da representação política, de uma crise do sistema democrático parlamentar. 
As pessoas não se sentem representadas, têm vergonha de quem elegeram mas não puderam fazer outra coisa, vêem as maioria dos políticos afogados num pântano de incompetência da formação nas jotas, de carreirismo, de paralelismo e clientelismo no partido, de falta de ética, de promiscuidade com os negócios.
Vêem que os milhões de pessoas simples, honestas, trabalhadoras, estão dominadas por uma oligarquia que se autoprotege, que dirige a vida pública e governa os bens nacionais, que vão todos aos clubes internacionais mais ou menos secretos que governam o mundo, que uma vez um outra vez outro vão deixar a mão de Merkel e outros que tal. É a oligarquia, que Podemos popularizou agora com o nome de “casta”.
É sintomática a preocupação de muitos políticos, a cada escândalo, em afirmar “que os políticos não são todos iguais”. Também eu o disse muitas vezes, por considerar que essa afirmação contra a “classe política” era típica do demagogismo antidemocrático, com o qual não alinho. Penando melhor, não devo ter tantos escrúpulos. Em vez dessa proclamação, os deputados honestos têm o dever é de corrigir o sistema, a começar pelos vícios do seu próprio partido, a falta de elaboração ideológica, de reflexão.
A democracia representativa está em crise, mas devo admitir que não vislumbro bem o que poderão ser, no concreto, as suas alternativas – democracia participativa, democracia com forte componente de democracia directa, democracia assente nos corpos intermédios? Sei que todas têm vantagens e também inconvenientes, até grandes limitações práticas. 
Essencial é que o poder seja devolvido ao povo e que a oligarquia deixe de sequestrar a democracia.
E dito tudo isto, e vindo tudo a propósito do Podemos, o que é o Podemos? Populista? Demagogista? Progressista? Neo-socialista? Alternativo?
Fica para a próxima.

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