Na minha última entrada, discuti algumas discordâncias que tinha com um artigo de André Freire, no Público. Uma delas dizia respeito à possibilidade colocada por André Freire de um “federalismo [europeu] mais alinhado à esquerda defendendo nomeadamente alguma uniformização fiscal e da proteção social, para evitar os dumpings e a ‘corrida para o fundo’ pelos mínimos sociais e fiscais (…)”.
Na minha resposta, considerei principalmente que o federalismo, como modelo institucional, é neutro, ao contrário das políticas concretas executadas pelo governo de uma tal federação. Dava como exemplo os governos democratas ou republicanos nos EUA ou a possibilidade de tanto Sarney como Lula, no Brasil. Pensando melhor, julgo que devo esclarecer melhor o que escrevi e que pode ser ambíguo ou até incorrecto.
Falando de ambiguidade, quero dizer que considerar o federalismo como neutro pode ser interpretado como, pelo menos, a sua não rejeição. Pela minha parte, nada menos verdadeiro. A criação de federações é decorrência lógica de processos integradores mais ou menos longos, fundamentalmente contra um adversário comum e com base em grandes afinidades quase-nacionais, culturais e linguísticas (com excepção de uma Suíça com quatro línguas oficiais ou do Canadá com duas).
O Brasil federal nasceu ao mesmo tempo que a independência e atendendo à velha autonomia dos “estados”, alguns até em campos opostos em relação à fidelidade à coroa portuguesa. A língua comum, uma economia toda ela baseada na escravatura e a experiência recente de sentido de estado, após a instalação da corte de D. João VI, fizeram o resto.
Nos Estados Unidos, havia também tudo o que se deve considerar como “espaço federal óptimo”: origem nacional única (na época da independência), língua única, da necessidade de mutualização da dívida (com Hamilton, o dólar faz de facto a federação). Mais tarde, a experiência comum da expansão para o oeste, do “nascimento de uma nação”.
A União Europeia é um projecto voluntarista que não tem nada disso. Nem uma confederação é, quando quase todas a federações actuais necessitaram de passar por essa fase. Não há uma nação europeia, só se pode falar de uma cultura europeia como uma construção de partilha de conhecimento das múltiplas culturas nacionais por uma pequena elite, enquanto que a verdadeira cultura comum (aliás não exclusivamente europeia) é a dos reality shows, dos romances de cordel e da vulgaridade da “reflexão” nas redes sociais.
As assimetrias económicas que o euro incentivou não podem ser resolvidas num quadro federal como, por exemplo, nos EUA. Não há um banco central como a Fed, com poder para financiar os estados federados, não há uma dívida federal, não há um orçamento federal. E, coisa muito comezinha, quando nos EUA o desemprego em estados pobres ou em dificuldades é facilmente compensado pela mobilidade dos trabalhadores, na Europa isso é altamente condicionado pelo factor linguístico.
Por tudo isto, e porque nada vejo de favorável, no quadro federal, ao respeito pela cultura, modo de viver, hábitos sociais e comunitários da nossa nação e, ainda mais, porque entendo que o terreno eficaz de luta popular ainda é, prioritariamente, o dos estados-nação, ainda não ultrapassados historicamente, não apoio as posições federalistas europeias, hoje até tão presentes em alguma esquerda.
A outra correcção que devo fazer tem a ver com o que disse de um “federalismo neutro”. Isto aplica-se exclusivamente à dimensão institucional do federalismo e, mesmo assim, até só limitadamente, na Europa. De facto, a evolução institucional da construção europeia, com tratados que servem de constituição, tende cada vez mais para o reforço da influência alemã em relação à inclusão nos tratados de matérias que são de política, não de configuração institucional.
Os critérios de Maastricht, limitando as taxas de défice orçamental e de dívida pública, sendo obrigatórias para qualquer “governo” europeu, limitam a sua margem de escolha política. A natureza do Banco Central Europeu, limitado ao objectivo de controlo da inflação e proibido de ser o prestamista de último recurso, idem. Todas as regras do mais recente pacto orçamental, idem, idem. É curioso que, entre nós, tudo isto seja acatado veneradoramente por aqueles que protesta, sistematicamente por a nossa Constituição ser rígida demais. Ou pelos socialistas de direita que, não só tendo votado o pacto orçamental com todo o seu partido, vão mais longe e defendem a constitucionalizarão das regras do pacto.
Por isto, a minha afirmação de que o federalismo é politicamente neutro só é justa se relativa às federações convencionais. A que o coro de pensamento único de direita europeia e os governantes nacionais querem é a aceitação submissa do ordoliberalismo alemão, blindando as instituições para cumprirem um objectivo político para o qual não há alternativas.
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