segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os partidos ucranianos

Numa situação tão propícia a análises ligeiras ou a informações enviesadas, como esta crise na Ucrânia, convém ir-se um pouco mais fundo. Por exemplo, tentando saber alguma coisa sobre os actores da peça. Não é fácil, à distância e com poucas fontes, mas pode-se recorrer, por exemplo, à Wikipedia. Não franzam o nariz, que não é fonte de que se deva desconfiar por princípio, muito pelo contrário.

Nas eleições de 2012, os principais partidos foram o Partido das Regiões (30%) do agora deposto presidente Yukanovitch, o Partido da Pátria (25,6%) da antiga primeira ministra Yulia Timochenko, a UDAR (14%) do ex-pugilista e benquisto de Angela Merkel Vitaly Klychko, o partido Liberdade (Svoboda) (10,4%) de Tyahnybok – o que tanto veste fato e gravata como camuflado com Kalachnikov. Fora do sistema, o Partido Comunista, com 5,4%, dirigido por P. Symonenko, agora em risco de ilegalizarão, depois de já ter visto a sua sede vandalizada.

É interessante – e preocupante – observar a diferença em relação às eleições anteriores, em 2008. Então, a UDAR não concorreu e, junto com a subida de 9,6% do Liberdade entre 2008 e 2012, este novo bloco rouba quase 24% aos partidos anteriores, o da Pátria e o das Regiões, que polarizavam a política ucraniana.

Não me parece clara a relação entre os partidos e os grupos violentos de milícias fascistas. Creio que nada indica que os fascistas tenham alguma coisa a ver com os partidos das Regiões, da Pátria e a UDAR. Por outro lado, há vários grupos fascistas que não têm ligação a partidos e que os acusam de moleza. Sem margem para dúvidas parece ser o caso do Liberdade, que actua tanto no parlamento, com a face civilizada, como na rua, com a face mascarada do fascismo.

Se formos aos programas, a situação é bastante estranha para nós. Enquanto que estamos habituados a diferentes gradações da política económica e social, lá parece ser principalmente uma questão de gradação do nacionalismo. A mais, o Pátria foca o pró-europeismo de cor ordoliberal e o Partido das Regiões alguma influência social-democrática, mas discreta. O Liberdade é retintamente fascista, anti-semita, xenófobo, anti-russo.

Mais interessante é o programa da UDAR, aparentemente o partido favorito da União Europeia, que resumo:
  • Preocupação principal com assuntos “populares”, como emprego para os cidadãos ucranianos à frente dos estrangeiros, luta contra a corrupção, contra a pobreza, contra o excessivo domínio do Estado.
  • A favor da associação à União Europeia e da entrada na NATO.
  • Sistema educativo de padrão europeu, com autonomia institucional e sistema de Bolonha.
  • Criação de uma agência independente anti-corrupção.
  • Diminuição do número de organismos públicos.
  • Exclusivo da propriedade de terras agrícolas para os ucranianos.
  • Abolição das regalias dos políticos.
  • Instituição de um sistema eleitoral de listas abertas e de referendos e iniciativas populares.
É uma mistura incongruente de tópicos, que entre nós cabem, uns num programa partidário, outros noutro. Só não é incongruente porque definida por alguma coisa que ainda não conhecemos, a nível partidário;: o populismo. Mas não estamos a receber diariamente mensagens com posições deste género?

À custa dos partidos iniciais, que de certa forma significavam uma bipolaridade tradicional, a segunda geração, UDAR e Liberdade, representam populismo e nacionalismo extremo. Nacionalismo e populismo foram o meio de cultura dos fascismos.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Carta aberta aos coordenadores do CDA e do 3D

Há dias, deixei escritas algumas questões que se me colocam sobre as relações entre o Manifesto pela Dignidade, pela Democracia e pelo Desenvolvimento (3D) e o Congresso Democrático das Alternativas (CDA). Não voltaria ao assunto se não tivesse recebido notícia de um novo documento do CDA, “O fim da troika, o regresso aos mercados, o programa cautelar... e outros mitos”, com que concordo inteiramente e que não destoa da declaração original do CDA.

Simplesmente, pensava, talvez ingenuamente, que o 3D levaria o CDA ao adormecimento, pela forte identidade das suas figuras mais conhecidas e intervenientes. O texto de agora parece mostrar que não e suscita a questão da lógica da coexistência do CDA e do 3D. Como apoiante inicial do CDA e votante da sua declaração, creio ser legítimo que me interrogue, bem como os 1600 votantes da declaração, sobre o que ele é hoje, como forma de intervenção política. Quando e em que condições é que uma posição política, como agora, vai ser tomada pelo CDA – a que pertenço – ou pelo 3D – a que não pertenço – quando, com boa probabilidade, os redactores serão os mesmos?

Certamente que os organizadores do CDA não duvidam de que o CDA “pertence” a todos os que nele se reviram e tomaram como sua a declaração. A meu ver, a declaração, ao contrário de outros manifestos diversos anteriores, ambíguos ou recuados, é um documento que vai ao encontro das ideias e vontade política de um grande número de pessoas de esquerda consequente. Julgo ter sido esta a razão do sucesso do CDA, mau grado um certo arrefecimento posterior. Pessoalmente, por não acreditar em fadas, discordo de iniciativas inconsequentes com sobrevalorização de uma salvífica convergência não se sabe para que programa. Mas mantenho o meu apoio ao CDA e desejaria ver mais força na sua continuação. E não considero que o 3D seja continuação lógica do CDA.

Os objectivos fundamentais de uma alternativa, seguindo a declaração rio CDA, eram “a) Retirar a economia e a sociedade do sufoco da austeridade e da dívida: denunciar o Memorando; b) Desenvolver a economia para reduzir a dependência externa, valorizando o trabalho e salvaguardando o ambiente; c) Defender o Estado Social e reduzir as desigualdades; d) Construir uma democracia plena, participada e transparente; e) Dar voz a Portugal na Europa e no mundo.”

De entre as muitas propostas extensamente apresentadas, desenvolvendo e concretizando esses objectivos fundamentais, destaco a que, provavelmente, mais demarcou a posição em relação a propostas recuadas do PS e até, nessa altura, da direcção do BE. Refiro-me a “denúncia do Memorando e abertura de um processo negocial com a CE, o BCE e o FMI a partir de uma posição determinada, ancorada no reconhecimento de que os pressupostos do Memorando estão errados e na reivindicação do direito ao desenvolvimento; Reestruturação da dívida colocada no topo da agenda das negociações; Preparação para os cenários adversos que podem resultar de uma atitude negativa da troika, traduzida numa suspensão do financiamento internacional (incluindo a necessidade de declarar uma moratória ao serviço da dívida).

Embora de forma não tão explícita, creio que o 3D não contraria esta posição firme do CDA, mas gostava de ver isto mais esclarecido. Então porquê o 3D? Será uma diferença de plano e forma de intervenção? Parece que sim, por várias razões. Em primeiro lugar, há uma recomposição dos promotores de ambas as iniciativas, embora se mantenha um grande núcleo de pessoas muito conhecidas, independentes. No CDA havia um forte envolvimento do BE e um pequeno núcleo do PS, no 3D não. Pelo contrário, aparecem no 3D membros da direcção da Renovação Comunista, que me parecem ter estado ausentes do CDA.

Em segundo lugar, tudo parece apontar para uma marcada diferença nas propostas de intervenção política, em relação às que fizeram consenso no CDA. Neste, aprovou-se:

“8.6.1 A defesa de um compromisso comum de convergência, que ajude a viabilizar uma governação alternativa em torno de princípios abrangentes e claros como os sugeridos nesta resolução, por parte das forças políticas democráticas que decidam apresentar-se a eleições;
8.6.2 A organização e mobilização em todo o país dos apoiantes do Congresso com vista à divulgação e prosseguimento do debate no espaço público das propostas desta resolução, ao seu enriquecimento e desenvolvimento participativo e à promoção da iniciativa cidadã em defesa das causas e dos objetivos aprovados;
8.6.3 A consolidação e alargamento da base plural de apoio ao Congresso;
8.6.4 O diálogo com forças políticas, instituições e movimentos sociais, nacionais e internacionais, inspirado pelo propósito de estimular dinâmicas de convergência na ação e de construir denominadores comuns para as necessárias alternativas políticas.”

Estas posições reflectem uma perspectiva unitária, abrangente e inclusiva, bem como distante de qualquer intervenção partidária ou para-partidária com fins imediatamente eleitorais. Pelo contrário, o 3D, tanto no manifesto como em declarações de seus membros notáveis, entende que (…) não têm de esperar por entendimentos entre toda a oposição democrática”, privilegia uma intervenção imediata no plano eleitoral, tendo “como objectivo construir um movimento político que seja o mais amplo possível”, mas afastando desde logo qualquer acção conjunta com o PCP e o PS. Como se sabe, a perspectiva, esperadamente fracassada, era a de instrumentalização da capacidade eleitoral passiva do BE, como partido, numa lista circunscrita ao BE, ao 3D e ao Livre.

Apoiei o CDA, mas não o 3D. Só vou em iniciativas e movimentações políticas pelas suas ideias e propostas, feitas de forma clara. Não vou apenas pela notoriedade dos proponentes, principalmente quando isto hoje se liga tanto ao protagonismo no círculo mediático. É assim que entendo que o manifesto 3D, com propostas não operacionais, apresentadas só na generalidade, já tenha, ao que se diz, recolhido milhares de apoios (até que ponto sobreponíveis aos do CDA, ou desviando do CDA? E com a escassa chamada a participação dos do CDA?)

As fórmulas começam a ficar estafadas, pelo afã do menor múltiplo comum da convergência. É ao posicionamento e declarações dos promotores mais em evidência que me socorro quando procuro chegar a uma conclusão, para mim próprio, do que se está a passar nesta área confusa da esquerda não partidária e na sua relação com os partidos. Não tenho dados para avaliar bem se há ou não contradição entre dirigir simultaneamente o CDA e o 3D, se as agendas pessoais são isentamente compagináveis com a participação em ambos, a nível dirigente. Como apoiante do CDA, e não duvidando da vossa seriedade política e do vosso empenhamento na dinamização da esquerda, podiam esclarecer-me? Ou sou eu que sou incoerente, apoiando o CDA (forum de debate e mobilização) e não o 3D (proto ou para-partido)?

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Notas soltas

1. “Que se lixem as eleições!”, lembram-se? “La donna e mobile”. Como as coisas se prestam agora a manipulação da informação pelos mandantes europeus e seus mandados nacionais, vai de pensar outra vez em eleições. Veja-se o que escreve hoje o Diário Económico: “(…) seguir o caminho de Dublin é uma vontade pessoal de Passos Coelho. O primeiro-ministro pensa que a opinião pública não tem clara a diferença entre cautela e segundo resgate, pelo que só a saída limpa permitirá passar a ideia de que os esforços [JVC: leia-se sacrifícios] dos portugueses valeram a pena”.

Quer dizer: o governo arrisca tudo o que é imprevisível e potencialmente lesivo num financiamento exclusivamente entregue aos mercados (taxas de juro, procura, “ratings”) só para aldrabar os eleitores. Podendo mesmo considerar, como também escreve o DE, que o plano cautelar lhe pode dificultar medidas demagógicas e eleiçoeiras, como descidas de impostos.

Mas lembre-se que o PS tem andado a afirmar que se o governo não conseguir uma “saída limpa”, será uma derrota do governo. O peixe ainda vai morrer pela boca, se Passos Coelho “conseguir” mesmo essa saída.

2. O Bloco de Esquerda está em desagregação? É o coro por que afinam ultimamente muitos jornalistas, opinadores e comentaristas. O panorama da nossa “opinion making” é confrangedor. Se, à partida, como o nome indica, é coisa com portas abertas a desinformação, pior ainda é quando é ela própria desinformada e incompetente.

Nada me liga ao BE, mas tudo me liga ao rigor e a análises fundamentadas. Afinal, o que se diz é que o BE desceu nas últimas legislativas, sem se ter em conta que o anormal foi a grande subida anterior. Que os últimos resultados autárquicos foram decepcionantes, quando o BE não tem grande força e capacidade de atracção a nível local. Que as sondagens o mostram a cair, quando não é o que eu vejo (ou melhor, infelizmente tem havido uma ligeira queda das esquerdas, não especificamente do BE). Finalmente, que o BE se está a partir por dentro, como é “provado” pelo caso Ana Drago. A quem é que interessa esta campanha?

Pode interessar à direita, obviamente. Pode interessar ao PS, para valorizar alguma ala menos à esquerda no BE. Mas não me parece fantasista nem mal intencionado pensar que também interessa a todos os que se estão a posicionar como concorrentes de um BE eventualmente aproximado do PS. E também aos que podem recear que, apesar de cerca de 20% de votos de uma frente coerente de PCP-BE – provavelmente a agregar ainda mais eleitores assim motivados, senão mesmo novas forças a aparecerem – não chegarem para governarem, abrem perspectivas para novas relações políticas. Isto sem nos preocuparmos, para já, com a separação de candidaturas em Maio. Nem tudo, ou até muito pouco, se decide nestas europeias.

3. A “melancolia da democracia” é uma expressão que, com amigos de há já vinte anos, usávamos para descrever o que, infelizmente, hoje se revela muito mais acentuadamente neste tempo de crise – sacrifícios de trabalhadores e reformados, desemprego e emigração forçada. Parece reinar o desânimo e a apatia. Não só cá. Como aconteceu com o esbatimento do movimento 12 de Março, depois com o Que se Lixe a Troika, também se foram os acampados de Madrid, os manifestantes da praça Sintagma, até, mais longe, os ocupantes de Wall Street.

Será fastidioso tentar aqui analisar o que se tem passado nestas últimas décadas e que tem conduzido a esta apatia, resignação e automutilação da cidadania, fazendo o jogo da globalização do pensamento único, socialmente e ideologicamente dominado pelo ultra/neoliberalismo. O pântano partidário ganha relevo como espelho de um grau importante de apoio mental acrítico a “verdades indiscutíveis”, como o fim das ideologias, o capitalismo como ordem natural das coisas, a redução da democracia ao estrito cumprimento de regras cada vez mais desprovidas de sentido real, até a intocabilidade da banca.

Parece-me necessário reconhecer que, em parte, também há um factor causal relacionado com o bem estar e nível de vida do pós-guerra, com uma maior osmose social, novos padrões de consumo e novas aspirações individuais/sociais, em boa parte se traduzindo em crescente avanço da mentalidade e atitude egoístas. Faz agora 50 anos que Marcuse tratou dessa alienação do “homem unidimensional”.

Não é nada fácil o combate à hegemonia e muito menos quando se aceitam as mesmas armas ou o terreno preferido do adversário, como aceitam os europeias sonhadores. O combate, não excluindo obviamente o combate ideológico, é essencialmente político e ainda muito com os instrumentos convencionais, organizados. Os novos movimentos, mais ou menos espontâneos, ou as iniciativas segmentares, são promissoras, mas como factores de desgaste mais ou menos lento da lógica da ordem dominante. Nesta fase, e sem com isto estar a defender uma perspectiva vanguardista, os partidos da esquerda consequente têm de enquadrar as lutas, fornecer alternativas. Não podem apenas seguir modas de partidos esponja “abertos à procura”. Não são apenas procuradores da plebe, não são seus representantes passivos. Representação activa é uma relação dialéctica em que cada pólo interage com o outro.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Recordando o MDP/CDE (4)

Em 1995, como aqui já recordei, o MDP/CDE admitiu um grupo considerável de dissidentes do PCP, liderados por Miguel Portas, e, por influência deles, transformou-se em aspectos essenciais, sob a forma do novo Política XXI. Muitos membros do MDP, não concordando com essa via, constituíram uma associação política, a Associação MDP (A-MDP). Não teve sucesso, em boa aperte por razões conjunturais, que em parte se repetem hoje. Havia grande pressão à esquerda, nomeadamente entre sem-partido, para uma unidade contra o cavaquismo. Muita gente viu em Guterres a possibilidade de entendimento entre as esquerdas que afinal nunca se concretizou. Mesmo com independentes, o diálogo por parte do PS, nos Estados Gerais, esgotou-se no jantar de agradecimento a seguir às eleições.

O texto que se segue (se bem me lembro, com colaboração de Mário Casquilho sobre um texto base meu) parece-me merecer atenção, ainda hoje, quase a fazer vinte anos. Anote-se que algumas omissões, principalmente as referentes a posições e acções políticas concretas, se justificam pelo carácter não partidário da A-MDP. e da vontade de agregar pessoas de variados sectores de esquerda e progressistas. Assim, por exemplo, o não se falar de uma perspectiva concreta de sociedade economia socialista, embora a postura de “socialistas alternativos” fosse comum à generalidade dos membros da A-MDP. 

Não cabendo agora e aqui definir isso de “socialistas alternativos”, aqueles que se vêem num “partido outro”, como escrevi aqui, defino-os pela negativa (coisa de que não gosto), como fazíamos então: nem marxistas-leninistas nem sociais-democratas.

 * * * * *

OBJECTIVOS DA ASSOCIAÇÃO MDP

A situação da Esquerda e o papel do MDP

A constituição da Associação MDP justifica-se pela nossa consciência de que se mantém, ou até aumentou, a importância dos valores e propostas políticas do MDP, apesar de esgotada a sua forma de partido. A Associação herda um valioso património político, que vai ao encontro das carências que muitas pessoas sentem em relação às concepções e comportamentos da Esquerda.

A Esquerda atravessa uma fase crítica, agravada pelo colapso do mundo comunista, que não afectou só os partidos comunistas e os grupos ou pessoas por eles influenciados. Duas consequências indirectas desse colapso reflectem-se também noutros sectores de Esquerda e acentuam a sua descaracterização: a dúvida, ou mesmo a descrença, sobre o papel condutor da ideologia na acção política, e a aparente inevitabilidade de uma economia de mercado.

Há uma tendência para a aceitação acrítica do “fim das ideologias”, com riscos de um centrismo pantanoso em que as propostas partidárias só diferem no estilo ou no superficial. Pactuando com este centrismo, a maioria dos sectores tradicionais de Esquerda estão a aceitar na prática a ocupação da vida política por uma “classe” tecno-burocrática desprovida de valores e de sensibilidade social e não combatem radicalmente o alastramento que se verifica do egoísmo, da falta de solidariedade e do défice democrático. Esta homogenização dos grupos políticos leva à impressão de que os poderes se instalam sucessivamente, sem grandes diferenças, reproduzindo os seus vícios e clientelas, e só mudando porque cada um apodrece ao fim do seu ciclo de poder.

A inevitabilidade do mercado leva à sua sobrevalorização e largos sectores da Esquerda de hoje dificilmente se podem considerar como anti-capitalistas, limitando-se à oposição ao chamado “capitalismo selvagem”. As políticas ultra-liberais da década passada (Reagan, Thatcher e companhia) deram à Esquerda uma espécie de alibi, porque a oposição ao ultra-liberalismo a desmarcava dessa direita radical. Quando, depois, a própria Direita recuou nessa via, a crítica de Esquerda perdeu consistência como elemento de diferenciação. O respeito pelo mercado e pela iniciativa privada aparece como uma fórmula que se esgota em si mesma, desligada de uma outra visão do mercado como instrumento regulável de desenvolvimento e de satisfação dos objectivos de toda a sociedade.

Em Portugal, estas características de desideologização e de ambiguidade programática têm sido manifestas no PS. Por outro lado, reconhecendo-se no PCP a coerência e a combatividade, o seu enquistamento ideológico, com consequente incapacidade de tirar as lições da falência do seu modelo, retiram-lhe influência e diminuem o seu papel num esforço conjunto de renovação da Esquerda. Os pequenos partidos, esses cada vez mais se remetem a uma visão de pequeno grupo, numa lógica de exclusiva sobrevivência.

O MDP transportou para a vida partidária uma “pureza” original, intimamente ligada às suas características fundadoras, de movimento antifascista. Valorizar essas características não é uma atitude passadista, fechado que está o período da luta antifascista. É uma questão de actualidade, porque, como exposto atrás, a vida política está carente dos valores que são marcantes do MDP: coerência e firmeza de ideais, visão plural e dialogante, capacidade de inovação e de autotransformação, isenção pessoal, integridade política, rejeição do oportunismo e carreirismo.

Comprovando o reconhecimento desta “personalidade” própria do MDP e da sua importância, temos o testemunho de todos aqueles que, a cada vez que se falava na extinção do MDP, nos diziam como lamentavam o que seria a perda de um património histórico e a falta de uma presença única na política portuguesa. Estes são os já convencidos pela imagem e mensagem do MDP, mas não esgotam o campo dos nossos potenciais colaboradores. A situação da Esquerda, com os seus bloqueamentos e ambiguidades, tem conduzido muitas pessoas a uma atitude de cepticismo e alheamento da política. A presença na vida política, mesmo que de forma não partidária (ou melhor, até, de forma não partidária) de uma corrente com as características do MDP marca uma diferença que pode contribuir para inverter, em muitos desses descontentes, a tendência para o cepticismo.

Os eixos de acção

O objectivo central que herdamos do MDP é a defesa do conjunto de ideias que designamos como “alternativas” e que, por simplicidade, tem sido frequentemente definido pela negativa, isto é, como a alteração radical dos esquemas fechados de pensamento, dos vícios e modos de funcionamento dos partidos tradicionais.

Na prática, esta “alternatividade”, procurada por novos partidos europeus, não é muito mais do que o conjunto de ideias e práticas já muito antes características do MDP:
  • no plano das ideias: a abertura aos problemas colocados pelas mutações sociais desta última metade de século, o questionamento do sistema, atenção aos grandes problemas transversais (a paz, o ambiente, a fome em grande parte do mundo, etc), a defesa dos valores comunitários, o conceito de desenvolvimento sustentado e a recusa do crescimento económico “sem maneiras”;
  • no plano da acção: a coerência entre as ideias e a acção, a actuação local, a participação não instrumentalizadora nos movimentos sociais, a descentralização partidária, a recusa do carreirismo.

A defesa deste perfil de “alternatividade” e a intervenção política tradicional do MDP interlaçam-se, portanto. As novas ideias políticas e a exploração de novos caminhos no questionamento ideológico permanente estão ligados a uma postura típica do MDP, pelo que convergem em objectivo final os que devem ser os dois eixos de acção da Associação:
  • na perspectiva “alternativa”, a proposta de um novo quadro de pensamento de Esquerda que desbloqueie a sua incapacidade para dar resposta aos problemas sociais que aceleradamente se têm acumulado e de que muitas vezes só se apercebem os aspectos aparentes - o egoismo e a competição agressiva, a exclusão social, a insegurança, a droga, a falta de perspectivas de futuro, a massificação.
  • na perspectiva tradicional, o exemplo de um comportamento político isento, dialogante, ideologicamente coerente.

Os condicionalismos

Saímos de uma situação em que a insuficiência dos meios de actuação do MDP impediu a actuação partidária condigna. Ao definirmos, como acima, as linhas de acção da Associação MDP, não estaremos a ser voluntaristas e a exagerar a nossa capacidade? A perspectiva mais realista para definição dos objectivos da Associação MDP é a de encontrar os “objectivos naturais”, isto é, os que decorrem mais directamente da nossa realidade interna e externa. Pensamos que a linha apontada corresponde a esses objectivos naturais, que vai ao encontro da nossa vocação e que é portanto a que resulta na maior economia de meios.

Repetindo em parte o que atrás ficou dito, as características condicionantes (para bem e para mal) do “colectivo MDP”, que a Associação MDP terá como legado, são:
  • sedimentação de um corpo de ideias e valores relativamente difuso mas suficientemente forte para que, mesmo em situações de isolamento, se sinta grande identidade entre os membros do MDP e que cada um se reconheça nas intervenções individuais dos outros;
  • grande ligação ao património político do MDP e seus símbolos, identificados com a luta antifascista e por uma democracia ampla, socialmente justa;
  • número grande de pessoas que, mesmo sem ligação orgânica, se sentem do MDP;
  • experiência e vocação para a intervenção cívica e social a vários níveis, com destaque para o local;
  • espírito unitário, não sectário, e boa capacidade de diálogo.
  • gosto pela reflexão e discussão política, no concreto;
  • relações afectivas fortes, com grande espírito de solidariedade;
  • idade média alta e limitações à actividade política intensa;
  • dispersão geográfica, com fracas ligações regulares entre os seus membros;

Para que a actuação da Associação vá ao encontro do sentimento dos seus membros e os mobilize, estas características internas parecem impor uma actuação da Associação MDP dirigida principalmente para a “política concreta”, mas principalmente a nível do debate político, como forma de aprofundamento da compreensão da vida política e guia de intervenção, e da promoção de discussão e aproximação entre organizações, grupos ou indivíduos de Esquerda.

No plano externo, devemos ter em conta:
  • insatisfação generalizada com o funcionamento do sistema partidário e da democracia institucional;
  • recuo da importância da ideologia, com atitude mais pragmática e abordagem pontual dos problemas, com dificuldade de sistematização:
  • sentimento de “aprisionamento” pelo PS, que, não correspondendo ao posicionamento mais consequentemente de Esquerda de muitas pessoas, as obriga, no entanto, ao voto útil;
  • a existência de um grande número de pessoas de Esquerda que não se revêem no PS nem no PCP; mas tendo presente que, a partir dos Estados Gerais, alguns desses potenciais simpatizantes e colaboradores da Associação MDP podem ver novas condições para uma intervenção independente junto do PS que não necessita de uma intermediação por uma associação;
  • forte desejo, entre os independentes, de entendimento e aproximação entre os dois maiores partidos de Esquerda e entre as centrais sindicais.
  • a imagem do MDP, até agora, como partido simpático, de gente séria e coerente, mas pouco actuante e com meios reduzidos;
  • mas também o desconhecimento de muitas propostas, ideias e intervenções do ex-MDP, nos últimos anos, o que, juntamente com os anos de identificação, na imagem pública, com o PCP, causa dificuldade de apreensão da identidade política e propositiva do MDP e, por extensão, da Associação MDP;

Estes condicionalismos respeitantes ao meio a que pretendemos dirigir-nos implicam, da nossa parte:
  • uma clara demarcação de diferença política, de valores, coerência de princípios e firmeza de convicções;
  • independência em relação aos dois maiores partidos de Esquerda;
  • uma atitude crítica positiva mas não hostil em relação aos partidos, com valorização daquilo em que forem indo ao encontro das críticas generalizadas ao funcionamento partidário.

A estratégia de actuação

Idealmente, a defesa da alternatividade, tal como acima a caracterizámos, faz-se pela sua prática, tanto nos movimentos sociais como pela actuação de novos partidos alternativos. É um terreno político novo, com uma composição social diferente daquela em que o MDP sempre se moveu e em que tem influência. Os novos alternativos têm muito frequentemente uma atitude radical de subvalorização do terreno político tradicional (terreno aqui entendido principalmente como as pessoas), considerando-o como não influenciável, ultrapassado e irrecuperável.

Pelo contrário, por todas os condicionalismos expostos, a Associação MDP só tem condições mínimas de actuação no terreno tradicional. Por reduzidas que alguns julguem ser as possibilidades de semear neste terreno as ideias de “alternatividade”, deve ser esta a principal linha de acção da Associação: procurar e transmitir novas ideias, mas numa linguagem e com um estilo adequados aos nossos interlocutores e mantendo a imagem que nos tem caracterizado.

Tendo presente todo este quadro e conjugando-o com a caracterização que fizémos da situação actual da Esquerda, devemos escolher temas de reflexão, discussão e intervenção que, simultaneamente:
  • permitam a afirmação de ideias e valores de “alternatividade”;
  • sendo problemas em aberto, correspondam às preocupações e incertezas de muitas pessoas e as atraiam para o debate;
  • resultem em propostas que demonstrem que é possível ter hoje uma posição de Esquerda consequente e qualitativamente diferente.

De entre esses temas, podemos exemplificar:
  • a crise das instituições da democracia formal e as formas práticas da democracia participada;
  • o papel do Estado e da sua política económica na estratégia do desenvolvimento e da justiça social;
  • a união europeia e os seus actuais vícios, a correcção das limitações derivadas da UEM;
  • a sociedade a duas velocidades: a terciarização e enriquecimento de alguns sectores, com aumento das exclusões, nomeadamente de jovens, desempregados, trabalhadores não qualificados e reformados;
  • a crise das cidades: a massificação urbana, o défice de qualidade de vida, o problema dos lazeres, as relações comunitárias;
  • o racismo e a xenofobia, o “Estado fortaleza”, a integração dos emigrantes; e, à escala internacional, as relações Norte-Sul e a Nova Ordem Mundial;
  • a crise da segurança social, do sistema público de saúde e, em geral, do Estado-providência;
  • os novos desafios à educação e formação profissional: polivalência e flexibilidade, mudanças tecnológicas rápidas e dos perfis profissionais, mobilidade de emprego;
  • a insegurança, a marginalidade e a droga;
  • a asfixia do sector primário: a necessidade de novos padrões da vida rural.
  • as questões da defesa, incluindo o tipo e missão das forças armadas e o serviço militar.

As iniciativas

Contrariamente ao que acontecia com a situação de partido, não se espera de uma associação a intervenção política no dia a dia. As tomadas de posição devem concentrar-se em questões de interesse nacional (sem prejuizo das tomadas de posição dos núcleos locais, no seu âmbito de intervenção) e devem ser tomadas com isenção, sem as peias naturais nos partidos políticos, isto é, devem ser livres de condicionalismos de conjuntura, tácticos ou eleitorais (por exemplo, à luz da polarização governo-oposição). Esta é também uma vantagem considerável da passagem de partido a associação, e vai ao encontro do espírito de rigor do colectivo MDP.

A lista de temas de intervenção, como exemplificada acima, é grande e forçosamente muito mais vasta que a nossa capacidade para os abordar. As escolhas concretas dependerão dos meios, oportunidades de colaboração e, sempre que possível, ligação a problemas concretos do momento e impacto mediático. A forma prática de abordagem é variável, a decidir em cada caso: debates privados ou públicos, comunicados de imprensa, textos a entregar a entidades ou organizações, petições, etc.

A perspectiva de revitalização interna e consolidação é prioritária, como condição necessária para o sucesso político da Associação. Como referido, são muito relevantes os componentes afectivos no “colectivo MDP”. Por isto, e para consolidação interna, as iniciativas devem incluir, sempre que possível, um carácter convivial. Por outro lado, será necessário contemplar a diversidade de interesses e experiências dos membros da Associação, diversificando o tipo de iniciativas e evitando sempre o risco de uma intervenção centralizada e “de cúpula” que esvazie os núcleos locais e dispersos. Esta preocupação de descentralização conferirá também uma perspectiva diversificada e local a todas as tomadas de posição da associação sobre problemas nacionais.

As iniciativas não podem deixar de ser modestas nos meios, com necessidade de se obter a colaboração de pessoas estranhas à Associação. As limitações práticas e economia de meios obrigam também a dar a maior importância à nossa participação e afirmação em iniciativas da responsabilidade de outras organizações.

1995.07.08

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Quase errata

Na minha última entrada, discuti algumas discordâncias que tinha com um artigo de André Freire, no Público. Uma delas dizia respeito à possibilidade colocada por André Freire de um “federalismo [europeu] mais alinhado à esquerda defendendo nomeadamente alguma uniformização fiscal e da proteção social, para evitar os dumpings e a ‘corrida para o fundo’ pelos mínimos sociais e fiscais (…)”.

Na minha resposta, considerei principalmente que o federalismo, como modelo institucional, é neutro, ao contrário das políticas concretas executadas pelo governo de uma tal federação. Dava como exemplo os governos democratas ou republicanos nos EUA ou a possibilidade de tanto Sarney como Lula, no Brasil. Pensando melhor, julgo que devo esclarecer melhor o que escrevi e que pode ser ambíguo ou até incorrecto.

Falando de ambiguidade, quero dizer que considerar o federalismo como neutro pode ser interpretado como, pelo menos, a sua não rejeição. Pela minha parte, nada menos verdadeiro. A criação de federações é decorrência lógica de processos integradores mais ou menos longos, fundamentalmente contra um adversário comum e com base em grandes afinidades quase-nacionais, culturais e linguísticas (com excepção de uma Suíça com quatro línguas oficiais ou do Canadá com duas).

O Brasil federal nasceu ao mesmo tempo que a independência e atendendo à velha autonomia dos “estados”, alguns até em campos opostos em relação à fidelidade à coroa portuguesa. A língua comum, uma economia toda ela baseada na escravatura e a experiência recente de sentido de estado, após a instalação da corte de D. João VI, fizeram o resto.

Nos Estados Unidos, havia também tudo o que se deve considerar como “espaço federal óptimo”: origem nacional única (na época da independência), língua única, da necessidade de mutualização da dívida (com Hamilton, o dólar faz de facto a federação). Mais tarde, a experiência comum da expansão para o oeste, do “nascimento de uma nação”.

A União Europeia é um projecto voluntarista que não tem nada disso. Nem uma confederação é, quando quase todas a federações actuais necessitaram de passar por essa fase. Não há uma nação europeia, só se pode falar de uma cultura europeia como uma construção de partilha de conhecimento das múltiplas culturas nacionais por uma pequena elite, enquanto que a verdadeira cultura comum (aliás não exclusivamente europeia) é a dos reality shows, dos romances de cordel e da vulgaridade da “reflexão” nas redes sociais.

As assimetrias económicas que o euro incentivou não podem ser resolvidas num quadro federal como, por exemplo, nos EUA. Não há um banco central como a Fed, com poder para financiar os estados federados, não há uma dívida federal, não há um orçamento federal. E, coisa muito comezinha, quando nos EUA o desemprego em estados pobres ou em dificuldades é facilmente compensado pela mobilidade dos trabalhadores, na Europa isso é altamente condicionado pelo factor linguístico.

Por tudo isto, e porque nada vejo de favorável, no quadro federal, ao respeito pela cultura, modo de viver, hábitos sociais e comunitários da nossa nação e, ainda mais, porque entendo que o terreno eficaz de luta popular ainda é, prioritariamente, o dos estados-nação, ainda não ultrapassados historicamente, não apoio as posições federalistas europeias, hoje até tão presentes em alguma esquerda.

A outra correcção que devo fazer tem a ver com o que disse de um “federalismo neutro”. Isto aplica-se exclusivamente à dimensão institucional do federalismo e, mesmo assim, até só limitadamente, na Europa. De facto, a evolução institucional da construção europeia, com tratados que servem de constituição, tende cada vez mais para o reforço da influência alemã em relação à inclusão nos tratados de matérias que são de política, não de configuração institucional.

Os critérios de Maastricht, limitando as taxas de défice orçamental e de dívida pública, sendo obrigatórias para qualquer “governo” europeu, limitam a sua margem de escolha política. A natureza do Banco Central Europeu, limitado ao objectivo de controlo da inflação e proibido de ser o prestamista de último recurso, idem. Todas as regras do mais recente pacto orçamental, idem, idem. É curioso que, entre nós, tudo isto seja acatado veneradoramente por aqueles que protesta, sistematicamente por a nossa Constituição ser rígida demais. Ou pelos socialistas de direita que, não só tendo votado o pacto orçamental com todo o seu partido, vão mais longe e defendem a constitucionalizarão das regras do pacto.

Por isto, a minha afirmação de que o federalismo é politicamente neutro só é justa se relativa às federações convencionais. A que o coro de pensamento único de direita europeia e os governantes nacionais querem é a aceitação submissa do ordoliberalismo alemão, blindando as instituições para cumprirem um objectivo político para o qual não há alternativas.

Sem opções não há democracia. O estado federal que nos propõem é um aparelho de funcionários eurocratas, não de políticos democratas. Alguém duvida de que a relação de forças na Europa, para a qual não se vê correcção próxima, não permite qualquer perspectiva de um federalismo alinhado à esquerda?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Barriga de aluguer

1. Partido de aluguer

Há mais um caso de utilização por empréstimo de um “partido envelope”. Primeiro foi a proposta do manifesto 3D, mal sucedida, para o BE se prestar a dar cobertura partidária – condição exigida para candidatura às europeias – ao 3D, ao Livre e à Renovação Comunista. Agora, segundo o Público de hoje, é um grupo de individualidades conservadoras, distintas da maioria da direita por terem posições eurocépticas e até anti-euro, que se propõem candidatar usando o estatuto partidário do PND.

Não comento esse fenómeno das barrigas partidárias de aluguer. Parece-me que o eleitorado não verá muito bem tal expediente e que até é um risco para os interessados, que ficam sempre afectados pela imagem que se tem do partido que se presta a esse serviço. Além disso, é também um risco para o partido, que deixa de controlar a situação e sacrifica o património político do partido, eventualmente a sua reputação. Foi o que se viu com esse grande logro político que foi o PRD, no fim transformado em albergue da extrema direita fascizante.

Interessa-me nesta nota é chamar a atenção para esse grupo de eurocépticos, intitulado já como “Portugal Independente”. Ao que sei, são conservadores, com sentido talvez tradicional do patriotismo, mas de uma direita civilizada e com repúdio tradicionalista (de bons hábitos cristãos…) da selvajaria social do neoliberalismo desbragado. 

Não será prudente negligenciar essa movimentação. Não parece nada de semelhante ao que se passa em França, em que a direita mais reaccionária, nacionalista e xenófoba, se apropriou do eurocepticismo que, como cá, era marca dos partidos comunistas. Daí a afirmação sem sentido de que os extremos se tocam sempre, bem como a desmarcarão para o eurofilismo utópico de boa parte da esquerda radical, cá bem expresso no neófito partido Livre. É também abandonar à direita bandeiras tradicionais da esquerda, como a soberania nacional e o patriotismo (claro que não o “patrioteirismo”).

No caso deste possível novo movimento de direita anti-euro, não parece haver nenhuma razão para se suspeitar de ligações à extrema-direita e pode assistir-se a um novo contributo para um debate que está a ser monopolizado pela cartilha europeia. Vale a pena estar com atenção.

2. Soluções para a desunião das esquerdas, segundo André Freire

Ainda no Público de hoje, um artigo de André Freire traça muito bem o quadro factual das relações entre os partidos de esquerda (sensu lato) e criticando todos, sem facciosismo, pelas responsabilidades partilhadas em relação a essa situação. Mais interessante, mas também para mim mais duvidoso é o resto do artigo, em que André Freire propõe soluções. Passam, essencialmente, pelo sucesso eleitoral de um partido como o Livre, que se propõe essencialmente promover a convergência; por uma cisão de esquerda no PS que desse origem à formação de um novo partido, uma espécie de socialistas de esquerda; e por uma solução eleitoral que premeie a convergência.

Quanto à primeira solução, claramente da simpatia de André Freire, se o leio bem aqui e em outros escritos, já muitas vezes manifestei – aqui e em entradas anteriores – a minha discordância a nível estratégico e o meu cepticismo, também baseado na minha opinião (admito que só palpite, mas os resultados dirão) de que, para muitos eleitores, esta questão pouco diz e que o seu desejo de mudança passa por um “partido outro” – expressão que usei para o caracterizar – não sentindo como coisa próxima as tricas características de uma vida partidária de que estão fartos. E até talvez nem seja de excluir que muitos eleitores tenham faro para o oportunismo. Além disso, um novo partido essencialmente virado para a convergência só tem o mínimo de peso para forçar os outros se, como também reconhece André Freire, tiver um bom resultado eleitoral e os outros mau resultado. De momento, ninguém sabe. Guardemos para depois esta discussão.

Passando para a segunda solução, um novo PS, é o próprio André Freire que logo admite que é irrealista, considerando que, “ao contrário de outros países, as vozes críticas da chamada ‘ala esquerda’ na ‘hora h’ parecem pensar mais nas suas carreiras do que nos seus constituintes”. 

A terceira solução, para André Freire, poderia passar por um sistema misto, com um círculo nacional a garantir a proporcionalidade e círculos uninominais à francesa, em que não basta ficar à frente numa volta única; é necessária a maioria absoluta, em segunda volta, o que promove o entendimento para apoio a cada um dos dois candidatos melhor classificados. Não vou discutir esta tese, porque não sou especialista em sistemas eleitorais, como André Freire, mas desde logo digo que não sou nada favorável a círculos uninominais, mesmo que num sistema atenuado.

Talvez de todo o artigo o que mais me tenha levado a esta nota é outra tese de André Freire: “haverá apenas um modelo de federalismo? Não seria possível defender um federalismo mais alinhado à esquerda defendendo nomeadamente alguma uniformização fiscal e da proteção social, para evitar os dumpings e a ‘corrida para o fundo’ pelos mínimos sociais e fiscais (…)?”

Creio que o federalismo, sendo assunto essencialmente institucional, é em boa parte politicamente neutro. O que diferem são as políticas exercidas no âmbito de um sistema federal, em que também contam as relações de força entre as unidades federadas. Mas, em si, os princípios institucionais e as configurações práticas do federalismo são muito comuns. Não sei o que é, institucionalmente, uma federação “mais alinhada à esquerda” ou "mais alinhada à direita”. Com a mesma constituição federal, os EUA já tiveram governos liberais (no significado americano do termo) e governos conservadores. O Brasil já teve Sarney e Lula, para só falar nas últimas décadas.

Aquilo que André Freire refere são evidentemente coisas desejáveis como política de uma eventual federação europeia. Simplesmente, na actual situação europeia e com a relação de forças que é legítimo presumir que se mantenha por muitos anos, apostar no federalismo, mesmo com essas pias intenções, é tomar a nuvem (cinzenta) por Juno e desviar a atenção do terreno privilegiado (mas claro que não único) da luta de hoje, o nacional.

(Agradeço ao meu amigo JB a interessante conversa que me levou a escrever esta entrada)

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Novamente a convergência

O Livre e o 3D, cada um à sua maneira, definem-se essencialmente pelo objectivo de promoverem, facilitarem, auxiliarem, etc., a convergência da esquerda. Obviamente, esquerda em sentido lato, representada a nível partidário por PS, PCP e BE. Não vou discutir a fantasia um pouco petulante de umas dezenas de personalidades respeitáveis ou de um protagonista com mais um grupo desconhecido de amigos se arvorarem em capazes de fazerem entender-se partidos com implantação no terreno institucional, social e eleitoral.

Outra característica comum a essas iniciativas é a sua vacuidade programática, que quase se esgota no mito messiânico dessa convergência e da constituição de um governo comum. Para governar como? Com que políticas? Com que soluções imediatas para a recusa da austeridade e para a reposição de regalias sociais que a direita expropriou às camadas populares? Com que recursos financeiros para essa política alternativa, necessariamente contrária à actual “impossibilidade” (para os troianos externos e internos) de nos libertarmos do peso da dívida e do seu serviço?

Dizem os profetas da convergência que tudo se conseguirá com um programa mínimo e credível “naturalmente” emergente dessa convergência. Quanto ao credível, leiam um pouco mais abaixo. Quanto ao mínimo, pergunto o que é isso em termos de eficácia, de coesão governativa, de confiança dos eleitores. Além disso, e em termos históricos, nunca ouvi falar de uma aliança que não tivesse à partida – e não depois do seu anúncio – a discussão de bases programáticas comuns (o que não é o mesmo que mínimas).

E não seria de esperar que, para além da agitação da bandeira sempre simpática da convergência, os novos partidos/manifestos contribuíssem para os pontos programáticos que dêem corpo ao tal programa mínimo? A declaração do Livre é uma mão cheia de nada, como critiquei, aqui e em entradas anteriores. O manifesto 3D nem chega a ser mais do que um panfleto, que, em 461 palavras, consegue o feito d e nunca empregar os termos “esquerda”, “socialismo”, “euro”, “reestruturação”.

Nas últimas eleições, o PCP (CDU) teve 552.690 votos e o BE teve 120.982. Com os 1.812.029 do PS, a esquerda consequente e a esquerda liberal têm, em conjunto, 2.485.701 votos. Ao que dizem os jornais, o Livre conseguiu 8500 assinaturas (consideremos como de simpatizantes ou pelo menos interessados na sua criação) mas só tem cerca de 250 militantes activos. O 3D parece que recolheu cerca de 5000 manifestações de apoio. Para o Livre e o 3D, são números simpáticos, mas não são nada, por enquanto, em termos eleitorais – e eleições são desde já, e até para Maio, em se colocam prioritariamente.

Um erro politicamente perigoso, com reflexo na forma como o eleitorado vê essa discussão sobre divisão ou convergência da esquerda, é considerar que ela é, para esse eleitorado, uma questão essencial e determinante das suas escolhas eleitorais. É esquecer que, para além de oscilações não muito significativas dos resultados do PCP (CDU) e do BE, bem como da abstenção, o essencial joga-se sempre ao centro, na deslocação de votos, de uma vez para a outra, entre o PS e o PSD.

Assim, que influência terão o Livre e o 3D na alteração desta situação eleitoral ou na mudança de atitude dos partidos condicionada por esses resultados? Não falo da abstenção porque ninguém sabe ao certo o que significa a tal tantas vezes referida abstenção de esquerda, a ser combatível por essas novas forças. De facto, estou convencido de que o mito da convergência não tem qualquer tradução eleitoral

O eleitor da rua, tanto quanto os que conheço, acha isso tudo bizarria de gente especialmente motivada pelo jogo político, quando não com contas a ajustar e com desejos de protagonismo ou de cura de orfandade partidária. Quem é que quer saber se Rui Tavares quer ser eleito por primárias directas, essa panaceia para a doença mortal da democracia? Não é perante os eleitores que se deve testar a tal credibilidade político-pessoal e programática? Ou é só coisa de clubes e de comunicação social?

Dito tudo isto, aceito que me acusem de incongruência, dado que tantas vezes aqui defendi a necessidade de um novo partido, como nesta entrada e anteriores. A incongruência é aparente. Usando a analogia geográfica de entradas anteriores, não defendo um partido no mesmo plano dois actuais, situando-se no meio, à esquerda, à direita ou seja lá onde for. Defendo um partido noutro plano, um partido radicalmente diferente, um “partido outro”, que conjugue o sentido de classe com o sentido de alternatividade que proponho desde há muitos anos e que justificam a publicação de velhos textos do MDP/CDE que tenho vindo a fazer. 

Preocupa-me pouco a visão táctica que está a prevalecer em relação à convergência – visão que julgo perigosa – quase como entendamo-nos já para governarmos, depois se verá como e com que propostas. Preocupa-me mais o que deve ser um novo partido que mostre ao povo eleitor o que pode ser uma verdadeira e nova política popular e patriótica, uma política alternativa de esquerda.

Cada mais vejo na net comentários de amigos políticos que manifestam, no essencial, as dúvidas e preocupações que aqui deixo. Não vejo é que estejamos a contribuir eficazmente, pela positiva, para a elaboração de um corpo de ideias e propostas que vão construindo uma alternativa real, não oportunista (uso o termo na acepção clássica, não pejorativamente). Vamos a isso?

NOTA 1 – Não gosto do termo convergência, preferindo aliança ou entendimento. São termos que preservam a noção de pluralidade e diversidade. Convergência significa um movimento de polos opostos para um ponto central, isto é, de certa forma simbólica, um esbatimento da diferença.

NOTA 2 – Falei acima, explícita ou implicitamente, de escolha estratégica ou táctica, de rotura ou de conciliação, de correcção ou de oportunismo. Por isto, transcrevo uma passagem da entrada de hoje de José Manuel Correia Pinto, no Politeia: “Somente através de uma ruptura – que em algum lado se há-de dar – se poderá sair disto. Sair no sentido de iniciar uma longa e dura luta, onde certamente vai haver, como em todas as lutas de longo alcance, avanços e recuos.”