NOTA PRÉVIA – “Post” muito extenso mas que, imodestamente, julgo que vale a pena ler, como abordagem filosófica e ideológica de uma crise habitualmente vista mais do ponto de vista económico. Sugiro que gravem para lerem depois.
Vi ontem o Hannah Arendt. É um filme estranho, difícil de criticar. Em qualquer filme, medimos integradamente coisas diferentes, o argumento, a realização, a fotografia, a encenação, a interpretação, a música, etc., para o valorizarmos. Neste filme, muitas destas coisas são muito boas, com destaque para a magnífica interpretação de Barbara Sukowa e de Alex Milberg e para a paleta de castanhos e claros-escuros dos interiores (o castanho, a cor da indefinição, do que vai bem com tudo), mas ficam ofuscadas pelo principal, o texto com as teses de Hannah Arendt sobre o mal e a análise do julgamento de Eichmann.
Não vou referir-me ao livro – que preciso agora de reler com mais atenção – mas ao que é dito no filme e que me pareceu muito fiel ao livro.
A primeira nota de reflexão é sobre a justiça do próprio julgamento. Para a concepção geral de justiça, exemplificada de forma talvez um pouco incongruente pela personagem Heinrich, o marido de Hannah (um seguidor de Rosa Luxemburgo a dizer isto?), Eichmann não foi condenado por nenhum crime que tivesse cometido, como pessoa, mas sim como representante de um sistema de abominável criminalidade. Não tendo o Holocausto sido explicitamente condenado em Nuremberga, era Israel que tinha de o fazer. Mas quem pode invocar o primado do sentido tradicional da justiça, de condenação de crimes concretos de um réu concreto, quando está em causa a punição e a dissuasão – não a justiça teórica – de uma monstruosidade?
Apesar da polémica mais conhecida sobre a responsabilidade de líderes judaicos, a questão principal, filosófica, é a do mal. O Holocausto foi um mal radical, quase exemplar de um mal absoluto. Não devia ter sido cometido por monstros satânicos? Observando Eichmann, Hannah confronta-se com um funcionário frio, burocrata que cumpria “o seu dever”, a que estava obrigado por juramento de oficial. É isto que Arendt discute como a “banalidade do mal”, coisa terrível, porque permite a cumplicidade de muita gente que não pertence obrigatoriamente à categoria de monstros psicopáticos.
Todavia, a ideia não deve servir para desculpabilizar todos os membros de um sistema criminoso, embora seja muito difícil desenhar a fronteira. Era criminoso o soldado alemão anónimo em Babi Yar ou em Oradour? Era criminoso, como indivíduo, um alto funcionário Eichmann “cumpridor de ordens”? Ou só eram monstros criminosos Himmler, Goering, Hess e os demais condenados de Nuremberga? Eram todos. A jurisprudência pós-guerra assentou o princípio da não aceitação da desculpa do cumprimento de ordens, embora haja medidas diferentes da culpa.
A dimensão do horror nazi pode ofuscar a nossa própria experiência portuguesa, pequenina, de fascismo fadisteiro, desta banalidade do mal. Como é que, ainda hoje, vemos fotografias de militares em Angola, em 1961, segurando cabeças de negros espetadas num pau (mas também do outro lado)? Como é que, ainda hoje, se passeiam impunes os participantes de Wiriamu? Como é que, ainda hoje, quem por cá anda da alta sociedade angolana continua a aceitar bem que, incluindo o chefe militar e depois marechal da república, cortejassem um tal São José Lopes, o director local da Pide? E até, na minha terra pequenina, que quase toda a boa sociedade local bebesse champanhe e comprasse fotografias nas exposições do fotógrafo oficial de Salazar, Rosa Casaco, lá colocado na Pide?
Ao contrário do que Arendt propõe, não creio que sejam só esses burocráticos agentes do mal e a sua cadeia de comando, superior, que geram a banalidade do mal. Julgo que somos todos nós, os coniventes. Infelizmente, em todos os casos, foram a maioria, com a honrosíssima excepção dos resistentes. Maioria de milhões na Alemanha nazi (não foram postos artificialmente nas fotos das celebrações nazis), também muitos em Portugal. É bom acabar com os mitos do povo resistente. Volto sempre à hegemonia gramsciana. Mais vale estudá-la do que embarcar nestas desculpabilizações pseudo-populares.
Também me impressionou negativamente a conferência final de Arendt, que já não me lembro se é ou não uma passagem do livro (vou ver). Parece-me que, retomando boa parte da influência que teve do irracionalismo heideggeriano (já sei que muitos vão discordar desta classificação), talvez também da sua memória afectiva pessoal, Arendt afirma que o pensamento não contribui para o conhecimento, apenas para a distinção entre o bem e o mal e para a distinção entre o belo e o feio. Isto é, o pensamento só actua na esfera ética e na esfera estética, não na cognitiva e racional. Bem sei que seria útil entendermo-nos primeiro sobre o que Heidegger considera “pensamento”, mas não considero essencial. Consideremo-lo reflexão, com regras de lógica, com isenção e distanciamento, mas na relação entre ser e estar.
Deixo de lado a questão estética, em que me parece óbvia a falta de razão. Caricaturando, conheço muita gente que pensa bem, é bem sucedida em muitos aspectos do funcionamento mental, até sabe o que é bom e é mau, mas gosta de Quim Barreiros. O juízo estético é influenciado determinantemente por muitos aspectos educacionais, culturais, vivenciais, é confrontado com padrões grupais ou tribais, até de ir com a moda.
Da mesma forma as escolhas éticas, que Hannah Arendt também reduz a um exercício do pensamento. Recuso em absoluto que sejam apenas questão de reflexão mental, o que me parece significar a absolutização elitista do ser humano dotado desse sublime dom divino. Com isto, corre-se o risco de se desculpar quem, por qualquer razão, não distinga bem e mal por falta ou nível menor da capacidade de pensar. Pensar, em ética, só tem a ver, na minha opinião, com os casos limites dos grandes dilemas éticos. E mesmo assim sobre um terreno sedimentado que não tem nada de racional.
A nível básico, as normas morais são-nos incutidas pela educação, de forma muito geral e transversal, quase que interclassista, como instrumento secular da manutenção da ordem social. Sobre isto, a cada momento da história, a adequação à formação histórica e social, pela ideologia, esta sim classista – e mais uma vez Gramsci, se quisermos estudar como é difícil vencer este constrangimento.
Além disto, distinguir ideologia e ética é reducionista. Creio que posso invocar bem a experiência de muitos dos jovens intelectuais ou estudantes da minha geração, burgueses que não fizeram o percurso esquemático (numa leitura superficial de Marx) a partir da classe de origem. Sei que, para muitos, se começava pela consciência de uma situação de injustiça. Muitas vezes, isto até vinha de uma saída mais ou menos traumática de outras influências, como a católica. Depois, desenvolviam-se valores éticos correspondentes. A seguir, a acção e a militância. Passo seguinte, o conhecimento, o estudo dos teóricos e dos doutrinadores da prática. Finalmente, a reelaboração dos tais valores éticos iniciais, a nível superior e com coerência ideológica. Razão, afectos, valores, vontade, são domínios indossiciáveis na mente humana.
O filme, na cena final, suscitou-me uma conversa muito interessante com uma pessoa muito querida que tem um grande sentido da amizade. Hans, o amigo de sempre, diz a Hannah que nunca mais a quer ver. Aliás, subentende-se que o mesmo se tinha já passado com outro grande amigo, israelita. Pode-se perder um amigo por causa de uma diferença de opinião? A F acha que não, e eu concordo, mas também sempre me disse que não suportaria outra coisa, a traição de um amigo. Em que ficamos, em relação a este caso? Foi uma traição ou uma diferença de opinião?
A principal campanha contra Arendt não foi por causa de Eichmann mas por ela ter acusado os Conselhos judaicos de passividade e de não resistência. Há quem vá mais longe e ache que alguns chegaram mesmo à colaboração, fornecendo a Eichmann listas de judeus a deportar, numa perspectiva do mal menor (como a de Pio XII, segundo muitos dos seus críticos). Tanto quanto leio, é uma discussão ainda em aberto, mas que não pode esquecer a coragem do gueto de Varsóvia e a redenção de resistência anticolonial da Haganah contra os ingleses, infelizmente continuada depois pela opressão dos palestinianos.
Arendt afirma que não tem de ser amiga do povo judeu porque só é amiga de pessoas, não de entidades abstractas. É verdade mas é utópico, porque muitas vezes somos impelidos a tomar partido nos conflitos, até por uma questão de manifestação solidária e de sentido de justiça. É difícil não compreender que judeus alemães que sofreram verdadeiramente, ao contrário de um relativamente menor sofrimento de Arendt, judeus que, mal ou bem, se refugiaram no sionismo para reconstruírem uma identidade destruída pelo nazismo, tenham considerado o escrito de Hannah Arendt como uma traição, não apenas uma diferença de opinião, racional e fria. Neste sentido, não me impressiona a frase final de Hans, “nunca mais te quero ver”.
Eichmann é considerado por Arendt um caso típico de um mal burocrático, banalizado. É errado ficarmos por aí. Em todos os sistemas satânicos houve também outros agentes do mal, os ideólogos, os controladores ou principais agentes do sistema, a inteligentzia, agora também a comunicação social.
No filme, o próprio Heidegger, visitando Hannah nos EUA, diz que, ele reitor nazi da Universidade de Freiburg, nunca tinha tido jeito para a política. Seria uma justificação patética se essa cena fosse verdade e uma posição desculpável se alguma vez se tivesse arrependido, o que nunca fez. De facto, o que se conhece de declarações dele é no sentido de ter visto no nazismo “a essência histórica ocidental da Alemanha”. Numa entrevista ao Der Spiegel, em 1966, tantos anos depois do fim do nazismo, ainda declara que “viu no nazismo um despertar (Aufbruch) que podia conduzir a uma nova perspectiva nacional e social”.
O sistema político, social e cultural é a realização prática de uma ideologia, ela por sua vez a forma de imposição hegemónica sobre toda a sociedade e, por via de uma ditadura das ideias feitas e dos “valores indiscutíveis”, da imposição do domínio económico de uma classe ou de uma aliança de classes. Queiram ou não os “pensadores modernos”, ainda há luta de classes. Note-se, aliás, que uma característica bem definidora desses “pensadores modernos” é a constante negação da validade actual das categorias tradicionais, que a prática de tempos de crise demonstra estarem ainda bem vivas: classes, luta de classes, ideologia, esquerda e direita, solidariedade, etc.
Seria abusivo comparar a crise actual com a situação das décadas de 20 e 30 do século XX que levaram aos fascismos. No entanto, há que refletir. Uma visão histórica convencional descura as raízes económicas e dialécticas da emergência dos fascismos, incluindo o nosso pequeno fascismo católico-rural (e isto sem que eu esteja a descurar também todos os outros factores, ideológicos, sociais, culturais, políticos superestruturais).
E não estamos a assistir hoje, salvaguardadas as diferenças de proporção, ao império de um mal que é absoluto porque não é conjuntural, é estrutural, embora só a crise o tenha mostrado como tal? Que se exerce em derivação de uma ideologia, de uma “perspectiva nacional (agora internacionalizada ou globalizada) e social” de que falava Heidegger apologeticamente? É um mal absoluto porque é o instrumento da perversão absoluta da visão da sociedade mundial, visão imperializada e dominante, segundo o neoliberalismo e, de facto, conduzindo a uma forma subtil de totalitarismo, de unidimensionalidade humana (Marcuse) mesmo que não evidente em formas de repressão política violenta.
Não começámos, nesta crise, por prender comunistas e socialistas, ciganos e homossexuais, nem por matar deficientes. Mas começámos por lançar centenas de milhar de pessoas para o desemprego. Não enriquecemos os cavalheiros da indústria que não temos, mas engordamos os nossos medíocres banqueiros. Não matamos judeus, mas empobrecemos até à miséria trabalhadores mais desfavorecidos e, pior, idosos reformados. Não estamos vencidos pela Alemanha numa nova guerra militar, mas deixamo-nos vencer na guerra económica.
Isto é um mal radical ou absoluto, no sentido filosófico, no sentido em que Arendt o contrapôs, como seu ponto de partida, ao que depois viu como mal banal, de Eichmann. Mas os nossos agentes do mal são agentes máximos e autodeterminados desse mal ou são agentes burocráticos e banais?
Para nossa vergonha, porque, como os tais conselhos judaicos, nos deixamos dominar por quem nem sequer tem a “grandeza” de nos permitir a desculpa de não podermos resistir, são agentes burocráticos, funcionários com uma visão banal do mal. Metaforicamente, Passos Coelho, Gaspar, Moedas, Maria Luís, Carlos Costa, etc., são os Eichmann de hoje, salvaguardadas as proporções. E nem podem dizer que obedecem a ordens, por juramento militar ao chefe. Obedecem a um poder anónimo, a um poder sistémico e porque tiram proveito pessoal dessa obediência, não apenas o sentido do “dever” cumprido.
São soldados SS de Oradour, executantes fanaticamente cumpridores, mas são desprezivelmente tratados como soldadesca, nem conseguem chegar a sargentos do novo exército da internacional capitalista europeia, com quartel general em Berlim e Bruxelas. Mas não é por serem exemplos de burocratas da banalidade do mal que escaparão à gaiola de vidro do julgamento de Eichmann.
Fazem-nos mal e ofendem-nos com a sua banalidade do mal. Lançam napalm sobre o rio, ao nascer do dia, mas nem se lembram de mandar tocar a cavalgada das Valquírias.
São funcionários do sistema oculto, são agentes da “banalidade do mal”, porque nem sequer se lhes reconhece que tenham a “ideia do mal”.